Opinião

Violência contra a mulher: ferida complexa que precisa ser encarada

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3 de julho de 2022, 6h33

Os índices de violência contra a mulher no Brasil são assustadores. Em que pese os esforços legislativos nacionais e a incorporação de importantes instrumentos internacionais sobre a temática, o que, de certa forma, já representa um avanço, o fato é que as mulheres brasileiras são violentadas diariamente das mais diversas formas.

A Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher da Organização das Nações Unidas (Cedaw) [1] é o primeiro tratado que dispõe amplamente sobre os direitos humanos das mulheres, não abordando diretamente o tema da violência contra a mulher, em que pese reconhecer que mulheres sofrem abusos e outras formas de violência que precisam ser combatidas.

A Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção Belém do Pará) define a violência contra a mulher assim como os âmbitos em que tal violência pode ocorrer:

"Artigo 1: Para os efeitos desta Convenção, entender-se-á por violência contra a mulher qualquer ato ou conduta baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher, tanto na esfera pública como na esfera privada.
Artigo 2: Entende-se que a violência contra a mulher abrange a violência física, sexual e psicológica: a) ocorrida no âmbito da família ou unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, quer o agressor compartilhe, tenha compartilhado ou não a sua residência, incluindo-se, entre outras formas, o estupro, maus-tratos e abuso sexual; b) ocorrida na comunidade e cometida por qualquer pessoa, incluindo, entre outras formas, o estupro, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, seqüestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, serviços de saúde ou qualquer outro local; e c) perpetrada ou tolerada pelo Estado ou seus agentes, onde quer que ocorra" [2].

Em âmbito doméstico também ocorreram avanços legislativos e jurisprudenciais, tais como a Lei Maria da Penha que ampliou os tipos de violência contra a mulher previstos na Convenção Belém do Pará ao trazer também a violência moral e patrimonial dentro do ambiente doméstico, familiar ou em qualquer relação íntima de afeto:

"Artigo 7: São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras: (…) IV – a violência patrimonial, entendida como qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de seus objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades; V – a violência moral, entendida como qualquer conduta que configure calúnia, difamação ou injúria" [3].

Ademais, ainda em âmbito nacional houve a inserção do feminicídio enquanto espécie de crime qualificado nos termos do artigo 121, parágrafo 2, inciso VI, Código Penal; a Ação Declaratória de Preceito Fundamental 779 que entendeu pela inconstitucionalidade da tese da legítima defesa da honra nos casos de feminicídio; além de alterações no Código Penal e outras legislações e normativas que objetivam coibir a violência contra a mulher.  

Ressalte-se, ainda, que o Brasil foi condenado em setembro de 2021 pela Corte Interamericana de Direitos Humanos pelo feminicídio de uma mulher praticado por um parlamentar que se beneficiou indevidamente de sua imunidade parlamentar para não ser responsabilizado no plano interno [4].  

Essa violência é consequência do machismo estrutural arraigado em nossa sociedade, que, infelizmente, ainda mantém raízes profundas e difíceis de serem extirpadas. Como o machismo é um sistema social que busca garantir vantagens para homens e mulheres sem letramento de gênero, muitas pessoas estão coletivamente comprometidas com a preservação de prática discriminatórias contra as mulheres, utilizando o controle sobre instituições públicas e privadas para tal objetivo [5].

A violência contra a mulher transcende o âmbito da ação individual, e, muitas vezes, as suas condições acabam sendo reproduzidas pelas próprias instituições para o estabelecimento e a manutenção da ordem social. Trata-se de uma decorrência da própria estrutura social, ou seja, da maneira costumeira como se constituem as relações econômicas, políticas, jurídicas, trabalhistas, familiares e outras. A sociedade normaliza esse tipo de violência e muitas vezes tenta justificar ou invisibilizar as mesmas, pois o machismo passa a ser a regra e não a exceção.

Essa violência contra a mulher se manifesta das mais diversas formas e nos diferentes meios sociais. Além das violências que já foram mencionadas acima, é possível citar: a violência obstétrica praticada por profissionais de saúde contra gestantes, parturientes, e mulheres no puerpério [6]; a violência estética que impõe às mulheres um padrão de corpo perfeito e inalcançável; a violência dos seus direitos sexuais e reprodutivos que impedem que mulheres tomem decisões sobre os seus corpos, sua sexualidade e sobre a sua reprodução; o ostracismo que é o banimento de mulheres dos espaços de poder e a tentativa de invisibilização dos seus trabalhos [7].

O clico de violência contra a mulher é tão perverso que, muitas vezes, quando ela decide denunciar a violência que está sofrendo, ela acaba sendo violentada novamente e culpabilizada pelo fato que aconteceu. De vítimas, elas viram algozes. Justificativas como "ele matou a esposa por ter sido traído", "ela foi estuprada, mas também estava na rua sozinha com uma roupa curta", "você é cruel por estar expondo a sua família e o seu agressor", "não vou contratar, pois se ela engravidar não vai conseguir ser uma profissional competente", infelizmente ainda encontram eco em uma sociedade com marcas do patriarcado. Por isso, muitas mulheres reprimidas e envergonhadas acabam por silenciar. Mulheres geralmente possuem um mar de palavras não ditas sobre as violências que sofrem cotidianamente, e fazem isso em busca de uma falsa quietude social [8].   

Outro aspecto importante a ser considerado na violência contra a mulher é a conscientização da necessidade de combate desse tipo de violência pelas próprias mulheres. Não basta ser mulher para ser antimachista, é preciso ter letramento em gênero, ou seja, é preciso que mulheres não reproduzam concepções equivocadas utilizadas historicamente para impedir a mobilização política em torno da pauta feminista.

Dentro desse cenário é possível falar no fenômeno do tokenismo, que ganha espaço a partir do momento em que as vozes não podem ser mais contidas, havendo necessidade de representatividade das mulheres nos espaços de poder. As instituições passam a ser cobradas sobre a presença de mulheres na composição de seus cenários, e, objetivando dar uma resposta social para tal situação, colocam mulheres em determinadas posições estratégicas, e tais mulheres passam a atuar  de forma consciente ou inconsciente  na invalidação do discurso das demais que apontam a existência de barreiras. O que acontece, de fato, é apenas uma inclusão simbólica, superficial e artificial para dar uma aparência de igualdade de gênero dentro da instituição. Entretanto, uma análise mais profunda mostrará as graves violações de direitos das mulheres que lá ocorrem, mormente daquelas que não se enquadram nos perfis dóceis e questionam os abusos cometidos [9].

A violência contra a mulher é uma ferida aberta que está em chagas. A resposta para o seu tratamento não é simples. Exige mobilização coletiva de diversos atores sociais no sentido de práticas que trabalhem na mudança das distorções ocasionadas pelo machismo estrutural, assim como invistam na prevenção e na correta repressão desse tipo de violência. A desigualdade de gênero não se resolve apenas com soluções pontuais, é primordial o investimento em soluções coletivas.


[2] Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. Disponível em http://www.cidh.org/basicos/portugues/m.belem.do.para.htm. Acesso em 27.06.2022.

[4] Falcão, Bruna Cavalcanti. Caso Márcia Barbosa de Souza e outros X Brasil: análise da sentença da CIDH. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2022-jan-03/falcao-marcia-barbosa-souza-outros-vs-brasil Acesso em 27.06.2022.

[5] Solnit, Rebeca. A mãe de todas as perguntas: reflexões sobre os novos feminismos. 1 edição. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

[6] Nesse sentido vide Projeto de Lei 878 de 2019 que objetiva positivar o conceito de violência obstétrica.

[7] Bennett, Jessica. Clube da luta feminista: um manual de sobrevivência para um ambiente de trabalho machista. 1 edição. Rio de Janeiro: Editora Rocco LTDA.

[8] Gênero, feminismos e sistemas de Justiça: discussões interseccionais de gênero, raça e classe / Luciana Boiteux, Patricia Carlos Magno, Laize Benevides (Orgs.) — Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2018.

[9] Bennett, Jessica. Clube da luta feminista: um manual de sobrevivência para um ambiente de trabalho machista. 1 edição. Rio de Janeiro: Editora Rocco LTDA.

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