Opinião

Nova Lei de Improbidade Administrativa: bala de prata?

Autor

  • Tiago do Carmo Martins

    é juiz federal do TRF-4 doutorando em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí (2016) diretor da Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina (Esmafesc) professor do curso regular da Esmafesc na disciplina de Direito Administrativo e autor dos livros "Anotações à Lei de Improbidade Administrativa" (Editora Verbo Jurídico 2012 e 2017) e "Improbidade Administrativa: Análise da Lei 8.429/92 à luz da doutrina e da jurisprudência atualizada segundo a Lei 14.230/2021" (Editora Alteridade 2022).

2 de julho de 2022, 7h11

"Bala de prata é expressão" informalmente usada para designar munição capaz de neutralizar inimigos com forças sobrenaturais, difíceis de derrubar. Mas o que isso tem a ver com a nova LIA, instrumento usado para combater atos desonestos, que caracterizam corrupção?

Por falar em corrupção, aliás, é preciso registrar que falar sobre este assunto no Brasil já se tornou enfadonho (quando não associado a discurso autoritário). São tantos os escândalos que os mais recentes nem chocam mais. Isso é muito ruim, pois conquanto não atraiam atenção, os desvios seguem lesando a sociedade.

Em 2009, a Fundação Getulio Vargas (FGV) já estimava que de 1 a 4% do PIB nacional era perdido para a corrupção, cerca de R$ 30 bilhões naquele ano. A Confederação Nacional da Indústria apontou que a cada Real desviado, resulta um dano de R$ 3 para a economia e para a sociedade [1].

Estimativas indicam que nas compras de insumos para saúde pública, em procedimentos eivados de vícios, é comum o pagamento de valores até cinco vezes maiores pelo Estado, que vem acompanhado da exposição da população a risco, pela aquisição de materiais de baixa qualidade ou realização de procedimentos desnecessários, como implantação de stents cardíacos ou próteses ortopédicas em pacientes que não demandavam tais intervenções, feitas apenas com intuito de lucro por parte dos agentes envolvidos [2].

Mesmo em cenário de emergência em saúde pública, por conta da pandemia de Covid-19, em que os recursos estatais se fazem ainda mais essenciais para socorrer a população, a Controladoria-Geral da União identificou indícios de fraude e outras irregularidades na ordem de R$ 1,9 bilhão, em um total de R$ 6 bilhões em contratos examinados [3].

No que se refere à educação, também há provas de que a corrupção afeta a eficácia das políticas públicas nessa área essencial. Segundo estudo realizado por FERRAZ, FINAN e MOREIRA, "a existência de corrupção e o aumento de um desvio padrão na incidência de corrupção aumentam respectivamente 2,6% e 3,1% a taxa de abandono das escolas", também estando associada à redução significativa da "habilidade cognitiva em português e matemática dos estudantes da 4ª série" [4].

Saúde e à educação, aliás, direitos fundamentais e cujo atendimento é essencial para o desenvolvimento do país, são sistematicamente violados: ataques a eles representam 70% dos escândalos de corrupção desvendados entre 2005 e 2018 [5].

Mas antes do desânimo, imperava uma aura de otimismo, que permeou os movimentos populares de 2013 e se amparava em avanços palpáveis, materializados no julgamento do caso conhecido por Mensalão [6] e na operação "lava jato" [7], episódios que responsabilizaram grandes figuras por atos desonestos, rompendo claramente com ideia muito disseminada, com boa dose de razão, de que a Justiça só alcança os escalões mais baixos da delinquência.

Toda ação comporta uma reação, conforme se extrai, sinteticamente, da 3ª Lei de Newton. A política e o Direito, assim como a Física, são campos em que se verifica sua aplicação.

Como denota estudo feito pela Transparência Internacional [8], embora as eleições de 2018 tenham sido pautadas por temas anticorrupção, as promessas de campanha não se refletiram em ações concretas; ao contrário, "o Brasil passou por uma série de retrocessos em seu arcabouço legal e institucional anticorrupção".

Dentre os retrocessos, destacam-se tentativas de interferência do presidente da República em órgão de controle "e a aprovação de legislação que ameaça a independência dos agentes da lei e a accountability dos partidos políticos". Ainda, aponta-se "perda de independência e crescente ingerência política sobre órgãos fundamentais como a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal"; e "pressão política e institucional que levou ao desmantelamento das forças-tarefa 'lava jato' e Greenfield", modelo que "junto com os acordos de leniência e colaboração premiada, ofereceu condições centrais para o avanço das investigações sobre grandes esquemas de corrupção no país" [9].

O Poder Judiciário também é responsabilizado pelo arrefecimento das iniciativas de controle, ao não ofertar balizas seguras e estáveis ao tratamento de casos de corrupção, especialmente por ter revisto, muito tempo depois de fixadas compreensões originais, sua jurisprudência sobre pontos nevrálgicos da temática anticorrupção, como o critério de determinação da competência territorial para julgar casos da operação "lava jato", a definição da competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes de corrupção conexos aos eleitorais e o reconhecimento extemporâneo da parcialidade do juiz Sergio Moro, influenciado por mensagens hackeadas, para conduzir processos da operação envolvendo o ex-presidente Lula.

Após os novos entendimentos fixados, verificou-se o reconhecimento de prescrição em parte significativa dos processos e dificuldades da Justiça Eleitoral em dar seguimento aos sob sua condução, diante da configuração daquele ramo do Judiciário, não talhado para a função que ora lhe foi atribuída [10].

Do Legislativo também se pode inferir esteja em curso um movimento reativo contra os avanços feitos nos últimos anos, em contraposição ao que se convencionou chamar de "criminalização da política". Como destaca o cientista político LUCIANO DA ROS, tem havido "uma reação ampla, suprapartidária, do sistema político, não somente contra a 'lava jato', mas contra boa parte das condições que permitiram que ela acontecesse". Tudo isto cria um ambiente que vem influenciando o desenrolar de outras investigações anticorrupção, dando sinais de um retrocesso de longo prazo no controle de atos lesivos ao Estado e à sociedade [11].

Pode-se acreditar que todos esses eventos não passem de retrocessos pontuais, os quais, afinal, são parte do processo evolutivo, que não se faz linearmente. Há, contudo, quem os insira em contesto de "des-democratização" vivenciado por algumas nações, dentre as quais o Brasil. Sob essa ótica, líderes antidemocráticos e populistas põem a democracia em xeque, com reflexos sensíveis na seara anticorrupção, cuja agenda é apropriada para sustentação de poder e para calar adversários [12].

No caso da corrupção, é natural que grupos postos em evidência por escândalos busquem reagir para frear o avanço da luta anticorrupção, inclusive com medidas legislativas que obstaculizem investigações, responsabilizações e coloquem os agentes e órgãos de controle sob risco de penalização por exercer o próprio ofício.

É provável que o país esteja passando por um processo de manutenção de status quo patrimonialista, dentro de contexto denominado por PRADO como corruption by design [13], que consiste na promoção de medidas que perpetuam a corrupção, embora talhadas com roupagem que sugira justamente o contrário.

Com efeito, é necessário reduzir o controle para manter a "ação coletiva da corrupção: o incentivo à prática de atos ilícitos quando se assume que todos os demais atores do jogo também o farão" [14].

Para esta finalidade, mais que atingir instituições, é necessário também precarizar seus instrumentos de trabalho, seja seu orçamento, força de trabalho e até mesmo a legislação que dá poderes investigativos e punitivos às instâncias de controle.

Aí se insere a Lei 14.230, publicada em 25/10/2021, que alterou drasticamente a Lei de Improbidade Administrativa, tirando grande parte de seu poder didático e dissuasório. Como pontuou o ministro Herman Benjamin, a nova lei cria um "buraco negro no combate à corrupção": "Para os servidores públicos, para os corruptos, para as empresas, a lei foi enfraquecida, com vários mecanismos de blindagem. Já no caso dos partidos, haverá um vácuo, que deixa ilicitudes gravíssimas sem punição, exceto a penal. (…) São dezenas de dispositivos que favorecem, com nome e sobrenome, as grandes empresas, conglomerados econômicos" [15].

Longe de episódio isolado, a mudança da LIA, que desconsiderou quase totalmente abalizado anteprojeto elaborado por uma qualificadíssima comissão de juristas, parece se inserir em contexto maior, de desinstitucionalização, ou "pacote pró-corrupção" que cria "regras de descontrole e do favorecimento da informalidade patrimonialista", que seria composto: "por lista exemplificativa: a reforma administrativa (PEC 32); a reforma do Ministério Público (PEC 5); a reforma eleitoral, que limita transparência e prestação de contas; leis ambientais que extinguem licenciamento, encorajam crime organizado e a grilagem; regras da nova lei de improbidade; PEC dos precatórios; Auxílio Brasil. Entre outras" [16].

A Lei 14.230/2021 é cheia de ambiguidades nos termos que emprega [17], cria prescrição intercorrente com prazo exíguo, não disciplina seus efeitos no tempo, criando séria instabilidade e risco severo de afetação dos processos em curso, restringe as figuras típicas, limita penas, dificulta o bloqueio de bens dos suspeitos de lesar o patrimônio público, enfim, rompe com tradição de três décadas de aplicação jurisprudencial e, contra os entendimentos firmados, inaugura outros, sem maturação doutrinária nem critérios legais claros para aplicação [18].

Então, seja pelo contexto que se insere, seja pela breve discussão que a antecedeu [19], seja pelas novas regras introduzidas no microssistema anticorrupção, antes de avanço, a nova LIA pode ser a "bala de prata" que faltava para enfraquecer de vez o enfrentamento à corrupção no Brasil.

 


[1] SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Edição do Kindle, p. 133.

[2] ROCHA, Lilian Rose Rocha. Corrupção: os efeitos deletérios sobre as políticas de saúde. Brasília: Universitas Jus, v. 27. nº 3, 2017, p. 173-189.

[4] FERRAZ, Cláudio; FINAN, Frederico; MOREIRA, Diana Belo. Corrupção, Má Gestão, e Desempenho Educacional: Evidências a partir da Fiscalização dos Municípios. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&cad=rja&uact=8&ved=2ahUKEwj767P3webqAhUhGLkGHWRtCT4QFjAAegQIBRAB&url=http%3A%2F%2Fwww.anpec.org.br%2Fencontro2008%2Fartigos%2F200807211421560-.pdf&usg=AOvVaw0eeDRVHwgeD74CKx5ahkA1. Acesso em 16/7/2020.

[5] UNIDOS CONTRA A CORRUPÇÃO; TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL — BRASIL; FGV DIREITO. NOVAS MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO. Disponível em: https://s3-sa-east-1.amazonaws.com/tibr-downloads/pdf/sumario-novasmedidas-bloco2.pdf. Acesso em: 26/7/2021.

[6] Foram condenados um ministro de Estado, um ex-ministro, onze deputados ou ex-deputados federais, inclusive o presidente da Câmara dos Deputados, dentre outros ocupantes de cargos destacados na Administração Federal e dirigentes de partidos políticos.

[7] Ao quinto ano da operação, em março de 2019, 155 pessoas já haviam sido condenadas 476, dentre elas dirigentes de partidos políticos, administradores de grandes empresas privadas, diretores de entidades públicas e pessoas que ocuparam cargos como os de governador, deputado, senador e até um ex-presidente da República, que cumpriu pena por quase dois anos, sendo solto após o Supremo Tribunal Federal revisitar sua jurisprudência, para impedir a execução da pena antes do trânsito em julgado da condenação.

[8] TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL. Índice de percepção da corrupção 2019, p. 13. Disponível em: https://www.transparency.org/en/cpi/2019/results. Acesso em 21/6/2022.

[9] TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL. Retrospectiva Brasil 2020. Disponível em: https://comunidade.transparenciainternacional.org.br/retrospectiva-brasil-2020. Acesso em: 21/6/2022.

[10] TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL. Retrospectiva Brasil 2021, p. 64 e 67. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/ipc/. Acesso em: 22/6/2022.

[11] BÄTCHOLD, Felipe. Enfrentamento do STF ao bolsonarismo esvaziou Lava Jato, diz cientista político. Folha de S.Paulo, São Paulo, 8 de nov. de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/11/enfrentamento-do-stf-ao-bolsonarismo-esvaziou-lava-jato-diz-cientista-politico.shtml. Acesso em: 8/11/2021.

[12] AMUNDSEN, Inge; JACKSON, David. Rethinking anti-corruption in de-democratising regimes. U4 Issue 2021:5, p. 12. Disponível em: https://www.u4.no/publications/rethinking-anti-corruption-in-de-democratising-regimes. Acesso em: 11/5/2021.

[13] PRADO, Maria da Graça Ferraz de Almeida. Corruption by design and the management of infrastructure in Brazil: Reflections on the Programa de Aceleração ao Crescimento — PAC. London School of Economics and Political Science, Dissertation submitted in partial fulfilment of the requirements of the degree, 201, p. 11.

[14] MELO. Marcos André. Ministérios e corrupção na Alemanha e no Brasil. Folha de São Paulo, São Paulo, 28 de nov. de 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcus-melo/2021/11/ministerios-e-corrupcao-na-alemanha-e-no-brasil.shtml. Acesso em: 1/12/2021.

[15] BÄTCHOLD, Felipe. Nova lei de improbidade cria 'bônus-corrupção' e pode gerar caos na Justiça, diz ministro do STJ. Folha de S.Paulo, São Paulo, 29 de out. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2021/10/nova-lei-de-improbidade-cria-bonus-corrupcao-e-pode-gerar-caos-na-justica-diz-ministro-do-stj.shtml. Acesso em: 29/10/2021.

[16] MENDES, Conrado Hübner. Pacote pró-corrupção: reduzir institucionalidade para expandir o arreglo. Folha de S.Paulo, São Paulo, 3 de nov. 2021. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/conrado-hubner-mendes/2021/11/pacote-pro-corrupcao-reduzir-institucionalidade-para-expandir-o-arreglo.shtml. Acesso em: 3/11/2021.

[17] O que se quer dizer, por exemplo, com "Considera-se dolo a vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito tipificado nos arts. 9º, 10 e 11 desta Lei, não bastando a voluntariedade do agente"? Ou "atos de menor ofensa aos bens jurídicos tutelados por esta Lei"?

[18] O que é "continuidade de ilícito", para fins de unificação de sanções?

[19] "Na primeira aprovação do projeto pela Câmara, o texto final da proposta foi apresentado formalmente aos deputados apenas 18 minutos antes do início da sessão de votação. Muitos dos parlamentares — e a sociedade brasileira — desconheciam os termos exatos da legislação que estavam aprovando". TRANSPARÊNCIA INTERNACIONAL – BRASIL. Retrospectiva Brasil 2021, p. 50. Disponível em: https://transparenciainternacional.org.br/ipc/. Acesso em: 25/1/2022.

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    é juiz federal, doutorando, mestre em Ciência Jurídica pela Univali (Universidade do Vale do Itajaí), diretor e professor de Direito Administrativo da Esmafesc (Escola Superior da Magistratura Federal de Santa Catarina).

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