Opinião

Responsabilidade civil por atrasos e cancelamentos de voos

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2 de julho de 2022, 15h14

Segundo pesquisa do Ministério do Turismo, por meio de relatório anual da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), os aviões são o meio de transporte mais requisitado pelos turistas, sendo que 68% dos brasileiros preferem viajar de avião a qualquer outro meio. Notavelmente essa preferência se dá pelo ganho de tempo que se tem ao escolher esse meio de transporte, pois, trechos de 1.000 km, por exemplo, que um automóvel levaria em torno de 10 horas, tem-se 1h20 de voo, e a vantagem de assumir outros compromissos no ponto de chegada [1].

Pode-se dizer que os aviões ganharam não só o espaço aéreo mas a preferência pelas pessoas por esse meio de transporte, por sua rapidez e praticidade, seja a trabalho ou turismo.

Vista disso, com o aumento do uso desse meio de transporte, a farta oferta das companhias e procura pelas pessoas, notou-se alguns problemas na relação de consumo, principalmente quanto aos atrasos e cancelamentos de voos, de modo que, surgiu a dúvida se esses episódios extrapolam o mero dissabor e atingem a responsabilidade civil, se deve a fornecedora do serviço indenizar o lesado, ou ainda, como está sendo visualizada essa relação no judiciário?

Primeiramente, essa relação mercantil estabelecida entre passageiro e companhia aérea é uma relação típica de consumo, e, quanto a isso, tem-se por pacificado o entendimento no Superior Tribunal de Justiça, no sentido de "[…]prevalência das normas do Código de Defesa do Consumidor, em detrimento das disposições insertas em Convenções Internacionais, como as Convenções de Montreal e de Varsóvia, aos casos de falha na prestação de serviços de transporte aéreo internacional, por verificar a existência da relação de consumo entre a empresa aérea e o passageiro, haja vista que a própria Constituição Federal de 1988 elevou a defesa do consumidor à esfera constitucional de nosso ordenamento" [2].

Ou seja, a defesa do consumidor é vista em esfera internacional diante da constitucionalidade do direito, de modo que, o referido consumo não é apenas no uso do meio de transporte, mas do contrato estabelecido e a relação que se inicia desde a compra do bilhete até a efetiva prestação de serviço de transporte de pessoas ou coisas [3]. Existe um ponto inicial a um ponto final do contrato.

Não apenas isso, embora se encontre outras normas e tratados que regulam a forma que se dará a prestação de serviço aéreo, a defesa do consumidor possui status constitucional, de sorte que é o Código de Defesa do Consumidor (CDC) que garante o direito de ser indenizado em caso de não cumprimento de normas que regulam a relação consumerista.

O fato é que o CDC tem prevalência sobre as demais normas do ordenamento jurídico e sobre os tratados internacionais que sejam com ela incompatíveis, esse é o entendimento pacificado entre os doutrinadores e tribunais superiores. Assim sendo, superada a aplicação do CDC nas relações de consumo do meio de transporte aéreo, passa-se à breve análise do dever de indenizar. Acerca disso, sabe-se que o moti de indenizar surge a partir do momento em que o prestador de serviço deixa de observar os preceitos normativos vigentes, bem como, deixa de cumprir com sua obrigação conforme contratada, de modo a ser responsável civilmente pela lesão.

Frente a isso, o presente estudo discorre apenas a respeito da responsabilidade civil das transportadoras aéreas nos casos de atrasos e/ou cancelamentos de voo. E, para tanto, se dá um caso hipotético: João residente em Florianópolis, empresário com agenda cheia de compromissos, é convidado a participar de um evento em São Paulo dia 11/12/2021 às 17h. João efetua a compra de bilhete de passagem aérea para o respectivo dia 11/12/2021, com chegada ao seu destino final São Paulo prevista para às 16h. No momento da compra João, ante a vasta opções de voos ofertados, decide por comprar o voo de nº "x", com tarifa três vezes maior do que as disponíveis para o mesmo dia em horários diferentes, ante a necessidade de chegar em São Paulo naquele horário. João então paga o bilhete aéreo com tarifa mais onerosa, a fim de garantir sua presença no evento, no dia e horário.

Cumpriu com todas as exigências da transportadora aérea, teve sua partida frustrada ante ao atraso na decolagem do voo sobre justificativa de manutenção na aeronave. A companhia aérea prestou todo o suporte material necessário, ofereceu alimentação durante o tempo de espera e disponibilizou relocação em voo mais próximo com assento disponível, todavia, com chegada prevista em São Paulo às 23h55, ou seja, após o evento.

Pois bem.

O instituto da responsabilidade civil, foi tradicionalmente amparado na culpa, mas ao longo do tempo, percebeu-se sua ineficiência, ante ao desequilíbrio existente na relação entre o consumidor e a empresa aérea, onde o consumidor não possuía meios de comprovar a culpa para obtenção da responsabilização. Até por isso, o CDC objetivou a responsabilidade objetiva do fornecedor reconhecendo a hipossuficiência do consumidor no que diz respeito a técnicas probatórias, garantindo assim, a inversão do ônus da prova. E, iminente penalidade, nos casos de não observância das normas, as transportadoras se viram obrigadas a desempenharem sua prestação de serviço com mais primor e zelo, implementando metodologias de prevenção de danos [4].

No caso hipotético anteriormente apresentado, evidentemente, temos um contrato alterado unilateralmente pela prestadora do serviço, embora não se tenha detalhado nenhum sentimento negativo por parte do consumidor, tampouco a perda de uma chance, é evidente que o atraso ocasionou a perda de um evento que não volta mais no tempo e era motivo principal de sua viagem. Então, ainda que nesse caso o consumidor tenha obtido a prestação tardia do serviço, a viagem perdeu todo o sentido de existir.

Segundo Silvio Venosa [5], a indenização tem duas funções precípuas, que é de punir quem pratica ato ilícito e de compensar quem sofreu dano com a prática de tal ato, sendo essencial a efetiva ocorrência do dano, para que seja caracterizada a responsabilidade. Nesse sentido afirma ainda que:

"Não se trata, portanto, de mero ressarcimento de danos, como ocorre na esfera dos danos materiais. Esse aspecto punitivo da verba indenizatória é acentuado em muitas normas de índole civil e administrativa. Aliás, tal função de reprimenda é acentuada nos países do common law. Há um duplo sentido na indenização por dano moral: ressarcimento e prevenção. Acrescente-se ainda o cunho educativo, didático ou pedagógico que essas indenizações apresentam para a sociedade. Quem, por exemplo, foi condenado por vultuosa quantia porque indevidamente remeteu título a protesto; ou porque ofendeu a honra ou imagem de outrem, pensará muito em fazê-lo novamente" (VENOSA, 2017, p 461).

O dano pode ocorrer tanto na esfera patrimonial quanto na moral, e diante disso, Maria Helena Diniz ensina:

"Prejuízo ressarcível experimentado pelo lesado, traduzindo-se, se patrimonial, pela diminuição patrimonial sofrida por alguém em razão de ação deflagrada pelo agente, mas pode atingir elementos de cunho pecuniário e moral (…) lesão (diminuição ou destruição que, devido a um certo evento, sofre uma pessoa, contra a sua vontade, em qualquer bem ou interesse jurídico, patrimonial ou moral" [6] (DINIZ, 2007, p.62).

Pode-se dizer que na esfera patrimonial, o dano é efetivo prejuízo econômico que o passageiro sofreu com o cancelamento ou atraso do voo, como gastos com alimentação, hotel, transporte, entre outros. Todos esses gastos excedentes suportados pelo passageiro, são considerados prejuízo causados pela não prestação de serviço na forma contratada, gerando nesse caso o dever de indenizar o passageiro. De outro lado, entende-se que os "danos morais serão aqueles que atingirão direitos da personalidade. São aqueles que lesionam qualquer dos aspectos que compõem a dignidade da pessoa humana, tais como igualdade, integridades física e psíquica, liberdade, atingindo virtudes da pessoa como ser social" [7] (AFONSO, 2017, p. 194).

Aqui faz-se uma pausa para ressaltar ao leitor que o clímax do presente artigo é a responsabilidade civil frente aos atrasos e cancelamentos de voos, mas não se pode identificar o dano moral sem brevemente diferenciá-lo do mero aborrecimento.

O mero aborrecimento são aquelas situações cotidianas, ainda que por erro do prestador de serviço causam aborrecimentos, mas não excedem a ponto de violar a integridade moral da pessoa. O mero aborrecimento ou dissabor cotidiano deve ser compreendido, como a lesão cujos efeitos não ofendem a integridade física e psicológica da vítima, e somente no caso concreto é que poderá ser caracterizada. E para esse mesmo doutrinador, o instituto do mero aborrecimento ou dissabor cotidiano, não conferem caráter indenizatório [8].

Acerca disso, o Superior Tribunal de Justiça já trouxe um entendimento de que os atrasos de voos poderiam ser considerados como mero aborrecimento cotidiano, inerente à vida em grandes centros urbanos. Consignou ainda, no acórdão do Resp. Nº 1.269.246 – RS (2011/0113658-0):

"[…]O aborrecimento, sem consequências graves, por ser inerente à vida em sociedade notadamente para quem escolheu viver em grandes centros urbanos , é insuficiente à caracterização do abalo, tendo em vista que este depende da constatação, por meio de exame objetivo e prudente arbítrio do magistrado, da real lesão à personalidade daquele que se diz ofendido. Como leciona a melhor doutrina, só se deve reputar como dano moral a dor, o vexame, o sofrimento ou mesmo a humilhação que, fugindo à normalidade, interfira intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, chegando a causar-lhe aflição, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar. Precedentes. 6. Ante a moldura fática trazida pelo acórdão, forçoso concluir que, no caso, ocorreu dissabor que não rende ensejo à reparação por dano moral, decorrente de mero atraso de voo, sem maiores consequências, de menos de oito horas que não é considerado significativo, havendo a companhia aérea oferecido alternativas razoáveis para a resolução do impasse […]".

Sob o argumento de evitar a possível banalização do instituto do dano moral, no corpo da mesma decisão à uma citação do Ministro Raul Araújo9, in verbis:

"[…]O mero dissabor experimentado nas contingências da vida carece de proteção de ordem moral porque se situa na esfera de aborrecimentos cotidianos e previsíveis, e que decorrem da própria convivência em sociedade. Permitir que qualquer evento que traga desgosto seja capaz de atrair reparação de cunho moral é banalizar o instituto e fomentar a indústria da indenização moral IV. Desse modo, nesse ponto, a sentença deve ser reformada porque não configurado dano moral".

Contudo, abre-se um parênteses, dia e horário constituem termos do contrato, tanto que caso o consumidor não cumpra com esses termos de dia e horário de embarque, que são estabelecidos previamente no momento da aquisição do bilhete, perderá sua viagem, terá de comprar nova passagem e algumas vezes a anterior não reembolsável.

Dito isso, entende-se que dia e horário não são apenas termos acessórios do contrato, mas constituem parte do termo principal. A escolha do dia e horário em que se dará a prestação de serviço influem diretamente no valor da tarifa cobrada na prestação de tal serviço, além de que, clara é a intenção de quem opta por esse meio de transporte em obter economia de tempo, sendo que na ocorrência de atraso, o motivo determinante da contratação desse serviço se perde.

O fato é que com o advento do instituto do mero aborrecimento as empresas aéreas têm se valido desse argumento cada vez mais para afastar o dano moral, considerando muitas vezes ser mais vantajoso correr o risco de pagar indenizações impostas a atuar de modo a reduzir danos, tendo em vista o baixíssimo valor em que as indenizações estão sendo arbitradas. A não responsabilização da companhia aérea em casos de atraso, por parte do judiciário, é o mesmo que dizer que essa pode deixar de cumprir parte do contrato sem que nenhuma penalização lhe seja imposta, o que acaba por deixar o consumidor hipossuficiente da relação a mercê de ver o serviço entregue nas condições contratadas.

Destarte, não seria forçoso concluir que, ao efetuar a compra do bilhete, a relação de obrigação se estabelece não apenas quanto ao transporte de um lugar inicial ao lugar final, mas que, esse transporte seja efetuado nos moldes contratados no momento da adesão, qual seja: lugar, dia e horário. O consumidor que paga tarifa pelo voo, daquele dia e horário, e não recebe a contraprestação, ainda que justificada, merece ser indenizado ante o não cumprimento de contrato, não em relação à perda de uma chance ou à perda de tempo útil, mas pela conduta por si só que fere a base da boa-fé e inviabiliza eventos da vida e rotina do passageiro/contratante. Portanto, deve gerar responsabilidade civil das transportadoras aéreas nos casos de atrasos e/ou cancelamentos de voo.

 

[1] Disponível em: https://www.gov.br/anac/pt-br/noticias/2020/mercado-aereo-registra-maior-numero-de-passageiros-transportado s-da-serie-historica. Acesso dia 27/01/2022

[2] AgRg no AREsp 145.329/RJ, relator ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 20/10/2015, DJe 27/10/2015

[3] "Artigo 730. Pelo contrato de transporte alguém se obriga, mediante retribuição, a transportar, de um lugar para outro, pessoas ou coisas" (Código Civil/2002).

[4] FURUKAWA, Adriana Tayano Fanton. Responsabilidade civil contratual no transporte aéreo: hipótese de não incidência à luz do Código de Defesa do Consumidor. Reflexões de magistrados paulistas nos 25 anos do Código de defesa do Consumidor, Escola Paulista da Magistratura, São Paulo, 2015.

[5] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: obrigações e responsabilidade civil. 17. ed. V. 2. São Paulo. Atlas, 2017.

[6] DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro: Responsabilidade Civil. São Paulo: Saraiva, 2007.p. 62

[7] AFONSO, Luiz Fernando. Direito do Consumidor: Coleção Prática e Estratégia 1. Ed. Revista dos Tribunais, 2017.

[8] FARIAS, Cristiano Chaves de; NETTO, Felipe Peixoto Braga; ROSENVALD, Nelson. N. Novo Tratado de Responsabilidade Civil. São Paulo. SaraivaJur, 2019.

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