Opinião

PIS e Cofins e o gross up tributário

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2 de julho de 2022, 13h08

No RE 574.706, o STF definiu que o ICMS não compõe a base de cálculo das contribuições ao PIS e a Cofins. Dado que o valor arrecadado não se incorpora ao patrimônio do contribuinte, representando mero ingresso ou trânsito contábil integralmente repassado ao fisco estadual, o STF concluiu pela exclusão do imposto da base de cálculo da PIS e da Cofins.

A essa discussão se seguiram as chamadas "teses filhotes", dentre elas a exclusão da PIS e da Cofins de suas próprias bases, com maior ou menor sucesso nos diferentes tribunais do país.

Antes de tudo, é importante distinguir esse debate do que foi decidido no RE 212.209, em que o Supremo Tribunal Federal entendeu ser constitucional que o ICMS integre sua própria base de cálculo.

O imposto estadual incide sobre o valor da operação de circulação e é tributo indireto, que tem como contribuinte de fato o consumidor final. Por essas razões, especialmente a natureza de tributo indireto e não-cumulativo, o STF entendeu ser constitucional a realização do "cálculo por dentro" do ICMS.

A fundamentação do precedente dá bastante atenção à "mecânica" do imposto estadual, em que seu custo é carreado inteiramente ao contribuinte de fato, adquirente no fim da cadeia econômica. Na visão do STF, o cálculo por dentro do ICMS impossibilita o último vendedor de "(…) apropriar-se daquilo que estava embutido no preço da diferença (…)" entre o montante do ICMS devido nas operações passadas e aquele recolhido por ele ao Estado. O exemplo prático dado pelo Min. Nelson Jobim sobre o que aconteceria, segundo o entendimento dele, caso o ICMS fosse calculado "por fora", foi o seguinte: 1) 'A' vende para 'B' a mercadoria de $100, em que o ICMS é de $18 e, assim, a operação é feita a $118; 2) 'B' agrega mais $100 à mercadoria, fazendo com que a base de cálculo seja $200 e o ICMS $36, havendo $18 de crédito. Nessa operação, com o cálculo do imposto "por fora", o ministro argumenta que o vendedor 'B' se apropriaria de $3,24, que seria a diferença entre o ICMS recolhido ($18 por 'A' + $18 por 'B') e o valor da operação, que, no exemplo dado por ele, seria de $239,24 [1].

A Corte entendeu que o cálculo por dentro do ICMS "(…) faz parte do 'conjunto que representa a viabilização jurídica da operação'", isto é, que tal técnica viabilizaria a não-cumulatividade do imposto.

Como se sabe, a decisão do STF quanto à constitucionalidade do cálculo por dentro do ICMS foi reiterada no RE 582.461/SP, em repercussão geral.

As diferenças entre o ICMS e a contribuição ao PIS e a Cofins não permitem que o decidido em relação ao cálculo por dentro do imposto estadual seja estendido à inclusão das contribuições em suas próprias bases.

A começar, o aspecto material da PIS e da Cofins é a receita, que não se confunde com ingressos, tampouco com o valor da operação de comercialização de mercadorias ou serviços.

O aspecto temporal dos tributos também difere. O ICMS incide sobre o valor da operação, que ele mesmo integra, no mesmo átimo da sua ocorrência. Há uma simultaneidade, uma sobreposição temporal. O imposto acompanha a mercadoria ou serviço. No caso da contribuição ao PIS e da Cofins, essa coincidência temporal não existe. Elas incidem sobre receita auferida, o que mostra que o fato jurídico tributário é posterior  e não simultâneo  à venda.

Outra diferença entre ICMS e as contribuições ao PIS e a Cofins é a sistemática da não-cumulatividade. Esta se opera, no caso do imposto, por meio de créditos correspondentes ao montante do que é devido nas operações anteriores. Já no caso das contribuições, a não-cumulatividade se dá pela sistemática da base contra base. Os créditos de PIS e Cofins são apurados com a aplicação da alíquota sobre os insumos empregados na atividade do contribuinte, independentemente do quanto foi devido nas operações anteriores. Essa diferença impede a transposição do entendimento adotado pelo STF de que o cálculo por dentro é necessário para instrumentalizar a não-cumulatividade tributária.

Além disso, as contribuições, ao contrário do ICMS, não são tributos indiretos suportados por terceiro. Pela própria materialidade (receita auferida), é evidente que as contribuições não gravam operações sucessivas.

A inserção de valores correspondentes a PIS e Cofins em documentos fiscais de venda são, apenas, aproximações do impacto da tributação na formação de preços pelos agentes econômicos, que levam em consideração diversos custos e despesas, dentre os quais os tributos que recolhe, para determinar o preço da sua mercadoria ou serviço. Trata-se de prática baseada no intuito de lucratividade, inerente à atividade negocial, e que não se restringe aos tributos previstos na Lei 12.741/2012 [2].

Entretanto, ainda que os tributos pagos pela pessoa jurídica ou física, no exercício de atividade econômica, sejam considerados na composição do preço, isso não é suficiente para torná-los tributos indiretos. Caso assim fosse, todos os tributos seriam indiretos, exceto, talvez, as taxas (cobradas pelo Poder Público pela prestação de serviço público e pelo exercício do poder de polícia).

Por todas essas razões, não há espaço para aplicar o mesmo entendimento que foi alcançado em relação ao cálculo por dentro do ICMS, para a discussão da inclusão das contribuições ao PIS e a Cofins em suas próprias bases.

Além da distinção da discussão do cálculo por dentro do ICMS, é importante pontuar, também, algumas diferenças entre a "tese do século" e a inclusão da contribuição ao PIS e da Cofins em suas próprias bases.

Antes mesmo do julgamento do RE 574706, o STF já havia estabelecido que a base de cálculo das contribuições é o somatório das receitas operacionais, que são as provenientes da atividade negocial ("vendas e serviços"), não incluindo os meros ingressos de caixa  valores que não se incorporam ao patrimônio do contribuinte (e.g. RE 540.706/PR; RE 240.785/MG; RE 606.107/RS). Com base nesse entendimento e o de que o ICMS corresponde a simples ingresso e não a receita do contribuinte, o STF concluiu pela sua exclusão da base de PIS e da Cofins.

No caso das contribuições, não se pode falar nem mesmo em ingresso, pois elas não integram o valor da operação, como ocorre com o ICMS. Não há recebimento das contribuições, seguido do recolhimento aos cofres da União Federal. As contribuições incidem sobre riqueza gerada por negócios e atos jurídicos, sem se confundir com esses mesmos negócios e atos.

A afirmação de que as contribuições ao PIS e a Cofins são pagas pelo adquirente de bens ou serviços  e, portanto, ingressam na contabilidade do contribuinte  é tão verdadeira quanto a de que o mesmo se dá em relação ao IRPJ e à CSLL, por exemplo.

Economicamente, talvez seja possível dizer que todos os tributos correspondem a ingressos, dado que toda riqueza é, em última instância, riqueza transferida de uma pessoa a outra. Entretanto, a análise que deve ser feita é se juridicamente é correto afirmar que as contribuições ao PIS e Cofins representam receitas do contribuinte.

As contribuições passaram a ser incluídas em suas próprias bases por remissão ao artigo 12 do Decreto-Lei 1.598/1977, que trata das receitas bruta e líquida. Ao conceituar como líquida a receita deduzida dos tributos sobre ela incidentes (dentre outras deduções), partiu-se para a conclusão de que a receita bruta é composta por tais tributos, daí a inclusão das contribuições em suas próprias bases.

Para a contabilidade, "o melhor seria [a sociedade] (…) só chamar de receita o que de fato lhe sobra" [3] . A definição de receita líquida atende o objetivo de informar os leitores das demonstrações financeiras dos recursos econômicos restantes depois de liquidadas as obrigações da sociedade.

Contudo, é preciso ter a compreensão adequada dos conceitos. Pelo artigo 12, receita líquida é a receita bruta deduzida de certos valores, dentre eles os tributos sobre ela incidentes. A receita bruta, por sua vez, corresponde ao ingresso de recursos definitivos, incondicionados e de titularidade da sociedade.

A base de cálculo criada artificialmente não corresponde à receita bruta, mas sim à receita bruta majorada por PIS e Cofins. A expressão matemática da base de cálculo que se tem hoje é a seguinte: receita bruta ÷ [1- (7,6% + 1,65%)], onde os percentuais correspondem ao acréscimo das contribuições em suas próprias bases.

A contabilidade, para calcular a receita líquida, deduz os tributos sobre ela incidentes. A União, para cobrança das contribuições ao PIS e a Cofins, adiciona à receita bruta o valor das contribuições (acrescentando-as em suas próprias bases).

Além da compreensão adequada do que se dá contabilmente e matematicamente, é certo que as regras contábeis não definem a materialidade tributária.

É por isso que, caso as Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 sejam alteradas e deixem de prever a exclusão de vendas canceladas e descontos incondicionados da base de cálculo das contribuições, tais valores deverão continuar a ser excluídos, uma vez que não correspondem ao conceito constitucional de receita.

O que ocorre, atualmente, não é a incidência das contribuições sobre receita auferida, mas sim sobre receita bruta incrementada pela adição do valor das contribuições em suas próprias bases. É o gross up tributário.

A tese defendida pelos contribuintes não é que a base de cálculo das contribuições deve ser a receita líquida, mas sim que elas não incidam sobre o que sequer é receita. O que se pretende é que deixe de haver o acréscimo, na base de cálculo, de montante que não corresponde a receita (e nem mesmo a ingresso).

O tema será definido pelo STF, que reconheceu a repercussão geral no RE 1.233.096/RS (Tema 1067), sem suspensão da discussão no território nacional, possibilitando que os contribuintes ingressem em juízo para pleitear a adoção da base de cálculo das contribuições em acordo com o art. 195, I, b, da Constituição Federal.

 


[1] Em voto, o ministro Nelson Jobim ofereceu exemplos matemáticos, em que expôs os números e valores aqui reproduzidos exatamente como dados naquele acórdão, sem alterações.

[2] Em sua redação original, constavam, ainda, IRPJ e CSLL, o que foi vetado, não porque tais tributos não influenciem na formação do preço, mas pela dificuldade de implementação.

[3] ARIOVALDO DOS SANTOS [et al.], Manual de contabilidade societária: aplicável a todas as sociedades: de acordo com as normas internacionais e do CPC, 4ª ed., Barueri [SP]: Atlas, 2022, p. 385

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