Opinião

Mitos e verdades sobre regulação de contrato de seguro de grandes riscos no exterior

Autor

  • Vitor Boaventura

    é advogado sócio de Ernesto Tzirulnik Advocacia (Etad) e membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

1 de julho de 2022, 11h05

No embalo das discussões travadas no Supremo Tribunal Federal (STF) no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 7.074, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores para discutir a (in)constitucionalidade da Resolução nº 407, de 2021, do Conselho Nacional de Seguros Privados (CNSP), que dispõe sobre os contratos de seguro de grandes riscos, muito se tem afirmado sobre a experiência internacional na regulação desses contratos.

Não é raro ouvir atores celebrarem a iluminada resolução como uma panaceia. Ela "atualizaria" o mercado nacional aproximando-o das boas práticas internacionais. A própria Susep, quando da elaboração do primeiro rascunho do que viria a ser a proposta de Resolução nº 407, apresentou, na exposição de motivos da medida proposta, a justificativa de que estaria a espelhar as outras jurisdições referenciais, entre os quais, Reino Unido, Singapura, Estados Unidos, Espanha, Alemanha. 

Ocorre, no entanto, que há uma diferença fundamental entre o que os países ressaltados fazem quando do exercício da regulação dos contratos de seguros de grandes riscos, e o que o CNSP fez, ao editar a Resolução nº 407.  Em nenhum dos países mencionados pela exposição de motivos, por exemplo, há a modificação de regime jurídico próprio dos contratos de seguro, para reclassificar os contratos de seguros grandes riscos, tornando-os, pela via regulamentar, contratos paritários.

Por mais que exista uma evidente lacuna normativa entre as disposições gerais e abstratas do Código Civil e a prática do setor de seguros, inexiste no ordenamento jurídico brasileiro qualquer dispositivo normativo através do qual o legislador federal tenha delegado ou CNSP ou à Susep a sua precípua função, legislativa, normatizadora. Trata-se de matéria de competência privativa do Poder Legislativo da República para legislar sobre a matéria, por iniciativa de propositura do Poder Executivo.

Conforme será a seguir explicitado, não se encontra na experiência internacional exemplo similar ao da Resolução nº 407, do CNSP. Em nenhum dos casos analisados a seguir foi possível localizar a atribuição de regramento jurídico próprio para os contratos de seguros de grandes riscos pela via administrativa.

Chile
A separação entre os seguros e a atribuição de liberdade negocial foi feita pelo Congresso chileno, e não pela sua autoridade reguladora.

Singapura
E
mbora o Insurance Act de Singapura expressamente divida as operações de seguro em duas classes de negócios, não se identificou qualquer exceção à incidência do regramento geral da norma sobre os contratos de seguros de danos de grandes riscos.

Reino Unido
No Reino Unido, é o Insurance Act de 2015 que distingue os contratos de seguro entre aqueles contratos de consumo, que seguem a definição do Insurance Consumer Insurance Act de 2012 e aqueles que não estão submetidos ao regramento consumerista.

Como se pode perceber, a exceção no Reino Unido é feita pelos parlamentares e diz respeito unicamente ao âmbito de incidência da Lei Especial de Seguro em relação aos contratos consumeristas. Além disso, a aplicação do regramento da Lei Especial de Contrato de Seguro não é afastado e inexiste qualquer exceção legal à sua incidência sobre os seguros de danos de grandes riscos.

Espanha
A Espanha, embora não confira idêntico tratamento jurídico e regulatório aos contratos de danos e aos massificados, não afasta a aplicação de sua lei geral à interpretação dos contratos de seguro. Ao contrário, a sua lei especial de contrato de seguro (Ley 50/1980) excepciona, em seu artigo 44, a aplicação do seu artigo 2º aos contratos de seguro de grandes riscos, tão apenas com o objetivo de afastar a aplicação imperativa dos preceitos da sua lei geral, o que é compreensível na realidade daquele país, e do seu contexto emergente, de consolidação e aprofundamento da União Europeia.

Com efeito, é que mais adiante, o artigo 107, ao disciplinar as normas de direito internacional privado, dispõe que nos contratos de seguro por grandes riscos as partes terão livre eleição da legislação aplicável. E torna obrigatória a aplicação da Lei Espanhola (Lei Especial de Contrato de Seguro incluída) quando referente a riscos localizados em território espanhol e o tomador do seguro tenha nele a sua residência ou sede administrativa, e quando o contrato decorrer de obrigação de cobertura imposta pela lei espanhola.

Percebe-se assim que na Espanha, assim como se observa no Reino Unido, e diferentemente do que se fez no Brasil, quando há, o destacamento dos seguros de grandes riscos ocorre por iniciativa legislativa, sendo que a sua sujeição a um regramento eventualmente mais flexível não significou a inauguração de regramento próprio e excepcional por parte do regulador. 

Alemanha
Na Alemanha, ao contrário do que dizia a exposição de motivos da minuta de Consulta Pública da Susep, no qual se lê que "embora o órgão regulador, ao editar o Insurance Contract Act (VVG), tenha conferido ampla liberdade de negociação/contratação para a categoria seguro de danos relativos a grandes riscos (…)",  a verdade é que o Versicherungsvertragsgesetz — VVG é uma Lei Federal Alemã, editada pelo Parlamento Alemão. A exceção feita pela norma foi feita por aquele ente competente, e não pela autoridade de supervisão alemã (BaFin — Federal Financial Supervision Authority).

Estados Unidos
O país tem um particular sistema federativo, e a regulação de seguros é partilhada entre os Estados, aspecto secular reforçado pela Suprema Corte e pelo McCarran-Ferguson Act (15 U.S.C. §§1011-1015), tendo o legislador federal atribuído maior atenção à questão da solvabilidade das empresas, especialmente aquelas Sistemicamente Relevantes (Systemically Important Financial Institutions  SIFI'S), no bojo da evolução da regulação financeira no pós crise de 2008, de que representativa é a promulgação do Dodd-Frank Wall Street Reform and Consumer Protection Act (12 U.S.C. Ch. 53) no ano de 2010.

Assim, as partes celebrantes dos contratos de seguros de danos de grandes riscos ficam sujeitas à regulação estadual, com o foco da supervisão voltado para a solvência das companhias seguradoras.

O fato de existir, todavia, no plano federal dos EUA, uma maior atenção à solvência das empresas, com a regulação e supervisão da conduta e produtos distribuída entre os estados da federação, não é suficiente para concluir que as partes celebrantes estejam submetidas a um regime de liberdade contratual ampla, sem qualquer regulação a conformar este negócio jurídico. Ao contrário, os estados regulam a questão aplicando variadas estratégias, não sendo possível que se conclua aprioristicamente tratar-se de um ambiente de predominante 'liberdade econômica'.

Apenas para citar dois exemplos significativos, nos estados da California (Insurance Code, as enacted by Stats. 1935, Ch. 145), e Nova Iorque (Insurance Code ISC)inexiste qualquer separação ou exceção concedida especificamente aos seguros de danos de grandes riscos conforme previsão da Resolução 407 do CNSP para o mercado brasileiro.

Itália
Na Itália, o Codice delle Assicurazione Private, conforme modificação pelo Decreto Legislativo de 12 de maio de 2015, em atendimento à Diretiva 2009/138 do Conselho Europeu (Solvency II), conceitua e diferencia os seguros de danos de grandes riscos, mas em nenhum momento afasta por completo a incidência do regramento geral conferido pelo Codice delle Assicurazione Private a esses contratos (cf. artigos 27 e 184). Cumpre ressaltar que se trata de ato editado pelo parlamento italiano, e não ato administrativo.

Conclusões
Com efeito, o que se observa é que a defesa da Resolução nº 407, de 2021, do CNSP, baseada na experiência internacional parte de mitos e incompreensões sobre a maneira como ocorre a regulação dos contratos de seguros de grandes riscos no exterior.

Quando analisada a realidade da amostra de países apresentada, a tendência identificada é a do respeito à divisão de poderes e, sobretudo, do preenchimento das lacunas e adaptações normativas pela correta via e instrumentos institucionais.

Nessa perspectiva, o que a Resolução nº 407, de 2021, do CNSP faz é afastar a realidade brasileira da prática internacional. Por esse motivo, oportuna é a discussão provocada pelo PT a respeito da (in) constitucionalidade da Resolução, que poderá funcionar como uma espécie de "freio de arrumação".

Autores

  • é advogado, sócio de Ernesto Tzirulnik Advocacia (Etad) e membro do Instituto Brasileiro de Direito do Seguro (IBDS) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

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