Embargos Culturais

"Suprema Corte dos Estados Unidos", de João Carlos Souto

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

30 de janeiro de 2022, 8h00

Conheci João Carlos Souto em 1994. Estávamos em evento de trabalho em Foz do Iguaçu. Souto era Procurador da Fazenda Nacional em Minas e eu, no Paraná. Souto havia escrito um livro sobre a União em juízo. Conversamos. Fiquei impressionado com as suas intuições, bom humor e habilidade para concatenar história, direito e literatura.

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Souto é da Bahia, e parecia conhecer todos os intelectuais, artistas e políticos baianos, especialmente os que eu mais admirava. João Mangabeira, um deles. Em 2003, Souto publicou um artigo na Revista do Senado, "João Mangabeira: Múltiplo", que é um estudo muito sério sobre o grande admirador de Rui Barbosa, outro baiano.

À mesma época Souto deu continuidade a seus estudos sobre direito norte-americano. Eu havia estagiado na Universidade de Boston e voltava com dois livros sobre os temas do common law. Souto havia estudado em Delware e depois em Cambridge (Harvard). Nos encontramos mais tarde em um curso em San Diego. O direito norte-americano estimulava nossas conversas.

Falávamos sobre Marbury v. Madison e de nossa discordância à interpretação rápida dos livros de direito constitucional a respeito. O caso Marbury v. Madison, segundo senso comum, marcaria a mais importante contribuição do direito norte-americano à teoria do Direito Constitucional. Teria assentado o princípio da supremacia do Poder Judiciário. Teria dado início ao "judicial review" ou controle pelo judiciário da constitucionalidade das leis. O mentor de tal concepção foi o juiz Marshall, festejado como a iluminada mente que nos legou o controle de constitucionalidade. Concordávamos que se tratava de um processo essencialmente político. Marshall contornou um confronto direto com o presidente norte-americano. Não deixou de criticá-lo, disfarçando recuo inevitável, com ato de afirmação contra o partido que estava no poder. No quadro de um estudo sobre o presidencialismo, pode se insinuar que, naquele momento, o fortalecimento de fato era do Poder Executivo.

Em 1801, nos últimos dias do governo de John Adams, William Marbury foi legalmente nomeado juiz de paz no distrito de Columbia. Thomas Jefferson, então eleito presidente, ordenou que seu secretário de Estado, James Madison, não empossasse a Marbury, e a nenhum dos outros juízes nomeados por Adams. O preterido requereu ordem contra Madison, que não se defendeu. Jefferson ameaçou a Corte com um "impeachment", caso o pedido de Marbury fosse deferido. O conflito estava posto.

Marshall astutamente inverteu o exame da ordem das questões. Declarou que Madison agiu ilegalmente ao não dar posse a Marbury, cuja nomeação para o cargo de juiz fora perfeita e legítima. Porém, e aqui o ato político, declarou que a Suprema Corte não tinha competência para conduzi-lo ao cargo porque o pedido fora diretamente feito àquele tribunal, com base numa lei judiciária de 1769. Segundo Marshall, competência era matéria estritamente definida na Constituição. Não poderia ter sido dilatada por uma lei judiciária. Era, assim, inconstitucional e nulo o art. 13 dessa lei discutida, que atribuía à Suprema Corte competência originária para expedir ordens nestes casos. Marshall censurou Jefferson, criticou Madison, deu razão a Marbury, porém recusou-se a garantir a decisão com base na inconstitucionalidade da Lei Judiciária de 1769.

Inaugurou o controle de constitucionalidade de leis por parte do poder judiciário. Por outro lado, não afrontou ao Presidente Thomas Jefferson que, naquele momento, e naquele contexto, saiu fortalecido. A decisão, olhando-se na perspectiva atual, resulta numa emenda constitucional de fato. Demorou cinco horas para ser lida; e é só no seu fecho que se compreende o seu resultado. E só muito tempo depois se compreende seu impacto.

Esse é um dos temas que o leitor encontra na obra magna de Souto, "Suprema Corte dos Estados Unidos, Principais Decisões", que sai em 4ª edição pela Gen-Atlas. Souto apresenta e explica o funcionamento do Poder Judiciário (Federal) nos Estados Unidos, partindo da construção conceitual dos Artigos Federalistas. Segue com um explicação profunda e abalizada da Suprema Corte norte-americana, explicitando suas origens, organização, funcionamento, competência e fórmulas de processo decisório. O excerto sobra as escolha dos juízes da Suprema Corte é de tirar o fôlego, especialmente no que se refere às discussões em torno das indicações polêmicas de Donald Trump.

Souto também retomou uma das mais complicadas indicações para a Suprema Corte nos Estados Unidos, o famo caso de Robert Bork, "a indicação que sacudiu a América", como se lê no livro. Indicado para a Suprema Corte, por Reagan, em 1987, para substituir a Lewis Powell Jr., Bork foi hostilizado pelo Senado norte-americano, então com maioria democrata. Foram escrutinados inclusive os filmes que Bork alugava, ainda no tempo dos videoclubes. Seu nome foi rechaçado. Origina-se desse episódio o neologismo "to bork", que nos remete a alguém que de alguma forma fora injustamente criticado por suas posições pessoais. As cenas de enfrentamento no Senado são memoráveis. Bork, que fora juiz federal (indiciado por Reagan em 1982), teve que explicar a maior parte das decisões que proferiu, nas quais, sempre, a maioria democrata alcançava um pensamento antidemocrático. No fim, Anthony Kennedy levou a vaga.

O livro de Souto explora os temas centrais da Suprema Corte ao longo dos anos: questões raciais, liberdades públicas, questões de Estado, direitos fundamentais, guerra, terrorismo, prerrogativas constitucionais de estrangeiros. O caso Korematsu, um dos mais importantes da história constitucional norte-americana, definido como um “precedente constrangedor”, é um dos pontos altos do livro. Nesse emblemático caso, discutiu-se o confinamento de japoneses durante a 2ª Guerra Mundial, no estado da California, então governado por Earl Warren, que muitos anos depois, como presidente da Suprema Corte, se tornará o campeão das liberdades democráticas.

A par do resgate histórico mais pretérito, há também no livro de Souto um levantamento da era Trump no contexto narrativo da Suprema Corte. Souto tocou em um tema pouco conhecido: as Ordens Executivas. O estudo das ordens executivas permite uma avaliação da autoridade presidencial, de um ponto de vista substancialmente pragmático; é o tema do poder unilateral do chefe do Executivo.

Isto é, as ordens executivas qualificam a materialização do exercício formal da autoridade presidencial nos Estados Unidos da América. Por muito tempo se entendeu que as ordens executivas se prestavam tão somente para a realização de tarefas rotineiras da Administração; por isso, não chamam a atenção quando fixam ponto facultativo para servidores públicos no dia do Natal, tabelas de pagamentos de salários, uso de cinto de segurança por parte de servidores públicos, entre outras medidas. Presidentes usam ordens executivas para criar e modificar importantes programas e linhas de ação. O capítulo sobre Pearl Harbor e a Ordem Executiva 9066 ilustra o tema.

Souto lembra-me o politico que estudou: João Mangabeira: Múltiplo. Advogado público, líder de sindicato, publicista, escritor, professor e constitucionalista, seu estudo sobre a Suprema Corte dos Estados Unidos é um trabalho fundamental para quem gostamos de direito comparado. Trata-se de um livro bem definido em seus contornos, e bem assentado em seus alicerces. Aqui não vai nenhum exagero do amigo. Aqui fica o registro do admirador sincero, ao ensejo de quase 30 anos de lutas e interesses comuns.

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