Observatório Constitucional

Supremas Cortes podem participar do processo de seleção de seus membros

Autor

  • Beatriz Bastide Horbach

    é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo mestre em Direito pela Eberhard-Karls Universität Tübingen (Alemanha) assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

29 de janeiro de 2022, 11h19

A escolha de um novo ministro para a mais alta Corte do país depende de uma série de fatores que atuam diretamente na dinâmica desse processo. De uma parte, questões pessoais do indicado como currículo, sua prévia vinculação a temas que serão por ele possivelmente julgados ou sua conexão com determinados partidos políticos são bastante avaliadas. De outra, em maior ou menor medida, concessões e apoios políticos precisam ser costurados para garantir a aprovação do nome selecionado.

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É certo que o contexto político em que realizada a escolha impactará o grau de dificuldade de tais articulações. Em tese, esse procedimento deveria ser célere. Na prática, com a incidência de tantas variantes, há aprovações que acabam por demorar mais tempo do que seria razoável. Mencione-se, nesse sentido, o processo de nomeação do mais novo integrante do Supremo Tribunal Federal, Ministro André Mendonça, que durou cerca de cinco meses.

A partir dessa realidade, propostas de emenda à Constituição Federal já foram apresentadas com o objetivo de definir prazos para que o Presidente da República indique e nomeie um candidato, ou para que o Senado leve adiante o procedimento de aprovação[1].

Discussões sobre eventuais limitações temporais para indicação e para realização de sabatinas de candidatos ao Supremo Tribunal Federal costumam focar em definir prazos para o Presidente da República apresentar um nome, ou para o Senado Federal sabatiná-lo e aprová-lo. Enquanto a centralidade desse jogo político e o tempo de sua duração permanece nas mãos dos Poderes Executivo e Legislativo, à Corte cabe seguir suas atividades, procurando administrar o impacto que a ausência de um de seus membros pode gerar na prestação jurisdicional.

Nesse cenário, a questão que aqui se coloca é: seria possível ao STF participar, de alguma forma, da seleção de seus integrantes, na hipótese de morosidade dos demais Poderes em levar adiante o processo de nomeação de novos Ministros?

É certo que a demora na escolha de juízes constitucionais não é realidade que se manifesta apenas no Brasil, mas se trata de efeito colateral comum da ausência de consenso em sistemas que demandam a conjugação de forças políticas como requisito de validação de uma indicação. Entretanto, da análise de ordenamentos estrangeiros levando-se em consideração, claro, especificidades locais , é possível identificar arranjos que preveem, em certa medida, a atuação e a influência da própria Suprema Corte na seleção dos juristas que a integrarão.

Nesse sentido, interessante exemplo de certa participação do Poder Judiciário é previsto na Lei do Tribunal Constitucional Federal alemão, que dispõe sobre o chamado direito de sugestão (Vorschlagsrecht), ou direito de recomendação. Trata-se de prerrogativa conferida à Corte para apresentar listagem suplementar própria, com indicação de candidatos, na hipótese de não haver consenso quanto à seleção após dois meses da vacância do cargo.

Tal dispositivo foi introduzido em 1956, junto com outras reformas que procuraram imprimir maior dinamicidade à escolha dos juízes constitucionais, aumentando-se a funcionalidade da Corte[2]. Com esse mesmo objetivo, diminuiu-se também o quórum de aprovação dos candidatos, de três quartos para dois terços. Os anos anteriores mostraram ao então recém instituído Bundesverfassungsgericht a complexidade dos jogos políticos e o atraso que poderia ser daí gerado na confirmação de novos membros. Uma designação chegou a durar dois anos, claramente não por ausência de profissionais qualificados, mas por disputas entre os partidos dominantes[3].

O processo de indicação de um juiz para o Tribunal Constitucional alemão envolve a destinação de três (de um total de oito) vagas de cada um dos dois Senados a juízes que tenham atuado em tribunais superiores por pelo menos três anos. Os demais integrantes da Corte não precisam obedecer a esse requisito, formando-se composição total de dezesseis membros. O apontamento é feito de forma alternada pelo Parlamento Federal (Bundestag) e pelo Conselho Federal (Bundesrat), seguindo critérios definidos na Lei do Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgerichtsgesetz – BVerfGG).

Essa mesma lei também especifica os prazos que devem ser observados. A seleção de um novo juiz deve ocorrer no mínimo três meses antes do final do mandato do seu antecessor. Válido enfatizar, aqui, que os membros do Tribunal Constitucional da Alemanha cumprem mandatos de doze anos, o que significa que a data em que a vaga deverá ser aberta costuma ser previamente conhecida. Na hipótese de vacância imediata, por morte, invalidez ou outro motivo, a definição do sucessor deverá ser realizada no mais tardar em um mês, pelo mesmo órgão que indicara o magistrado[4].

Nesse contexto, a BVerfGG prevê que, caso a vaga permaneça em aberto dentro de dois meses após o término do mandato ou da aposentadoria antecipada de um juiz, o membro mais antigo do Comitê de Eleição do Bundestag, ou o presidente do Bundesrat (ou seu representante) deve imediatamente solicitar à Corte propostas de candidatos ou seja, o Tribunal Constitucional é chamado a exercer o direito de recomendação (§7a, BVerfGG). A formação da lista compete ao Plenário, que decidirá por maioria simples quem a integrará. Devem ser sugeridos três nomes, na hipótese de haver apenas uma vaga aberta, e, caso mais de uma, a proposta deve conter o dobro de candidatos ao número de cadeiras vacantes.

O procedimento interno para elaboração da lista é descrito nos §§57-59 da Lei de Organização do Tribunal Constitucional Federal alemão (GO-BVerfG), que define minuciosamente o formato de votação, na qual todos os juízes têm direito a apontar um nome. Há quem entenda que a complexidade e a riqueza de detalhes conferidos a esse ato demonstrariam que a Corte atribuiria maior importância à definição dos seus futuros membros, primando pela qualidade das recomendações, ao mesmo tempo em que ajudaria os demais Poderes a solucionar quadros de complexas escolhas políticas[5].

Entretanto, a prerrogativa do Vorschlagsrecht não possui efeitos vinculantes. O próprio dispositivo que o estabelece determina que o direito do órgão a eleger um candidato permanece inalterado, independentemente da sugestão recebida. Por não ter caráter obrigatório, o efetivo grau de influência desse instrumento no processo de escolha dos juízes constitucionais é por muitos contestada. Na arena política, questiona-se até que ponto a aceitação de nome sugerido pelo Tribunal Constitucional Federal não significaria o enfraquecimento do órgão eleitoral, que estaria a admitir sua incapacidade de selecionar um candidato exitoso. Fala-se, ainda, que o direito de recomendação poderia significar uma indevida politização da Corte[6].

Na prática, a primeira lista de recomendações elaborada nos termos do §7a, BVerfGG, foi apresentada em 1961 ao Conselho Federal, que não acolheu nenhum profissional sugerido. Todavia, dez anos depois, em contexto político conturbado, o próprio Bundesrat acabou por eleger a primeira sugestão da lista encaminhada pelo Tribunal Constitucional, dando maior esperança de que esse instrumento realmente apresentaria alguma relevância. Atualmente, o direito de recomendação parece ter condições de servir, de fato, para auxiliar os órgãos de escolha a obter consenso sobre candidatos com qualidades jurídicas reconhecidas pela própria Corte que o receberá. Seria, por assim dizer, uma espécie de "selo de qualidade", a expressar que determinados profissionais seriam bem-vindos, ao mesmo tempo em que sinalizadas alternativas ao jogo político.

Além do aspecto positivo, o Bundesverfassungsgericht também pode se valer da lista como forma de expressar contrariedade a nomes que estão sendo ventilados para sucessão de seus membros. Em 1981, ao ser requisitada a listagem, em obediência ao disposto na lei, a Corte recebeu a informação de que os nomes eventualmente propostos não seriam considerados, uma vez que já havia consenso em relação a possíveis candidatos. O Tribunal, apesar disso, fez questão de enviar suas sugestões, inclusive para indiretamente demonstrar divergência quanto aos juristas que estariam sendo considerados.

Na lista, incluiu indicações que, de acordo com seu entendimento, estariam mais qualificadas para a função, apresentando, com isso, alternativas técnicas a um cenário de discussões permeado por visões políticas. Com o recebimento das escolhas, o processo de seleção acabou sendo postergado e, por fim, o terceiro nome sugerido pelo Tribunal Constitucional foi eleito[7]. Ao agir assim, a Corte mantém oficialmente seu caráter apartidário, já que sua recomendação seria técnica, mas não deixa de interferir, de certa forma, nos rumos políticos da seleção de seu futuro membro[8].

Vê-se, portanto, que seria possível considerar arranjos que retirem, em alguma medida, o caráter passivo normalmente conferido a Supremas Cortes durante a escolha de seus integrantes. Especialmente em processos de indicação que demorem longos períodos, instrumentos que assegurem uma garantia institucional de efetivo funcionamento do Tribunal poderiam ser aventados, uma vez que é este que enfrenta diretamente o impacto prático da larga espera que, consequentemente, acaba por afetar os próprios jurisdicionados.

 


[1] Nesse sentido, e.g., a PEC 59/2015, proposta pela então senadora Marta Suplicy, prevê o estabelecimento de limite temporal para o chefe do Poder Executivo indicar um nome (em até três meses após a vacância), bem como para nomear o candidato aprovado (em até quinze dias da aprovação pelo Senado Federal). Determina, ainda, o sobrestamento de todas as deliberações legislativas, exceto das que tenham prazo constitucional, caso o Senado Federal não se manifeste sobre a indicação em até 45 dias. Na hipótese de rejeição do nome, determina que o chefe do Poder Executivo terá dois meses para nova indicação, e que o descumprimento dos prazos importará crime de responsabilidade.

[2] Cf. BENDA / KLEIN. Verfassungsprozessrecht. CF Müller: Heidelberg, 2020.

[3] No caso, o processo de nomeação de Karl Heck, em 18.3.1954, dois anos após a saída de Kurz Zweigert. (Cf. BURKICZAK/DOLLINGER/SCHORKOPF (Org.). BVerfGG-Kommentar. CF Müller: Heidelberg, 2015)

[4] Cf. § 4 BVerfGG.

[5] KISCHEL, Uwe. Die Wahl der Richter am deutschen Bundesverfassungsgericht zwischen rechtlicher Theorie und politischer Praxis. Revista do Direito UNISC. Santa Cruz do Sul, n. 36, p. 12—141, jul-dez 2011.

[6] Id. Ib.

[7] Id.Ib.

[8] Por outro lado, o Bundesverfassungsgericht também já se utilizou do diálogo entre os órgãos constitucionais para, em situações excepcionalíssimas,  atrasar o processo de indicação do futuro membro. Nos termos do § 4, 4, BVerfGG, o juiz constitucional deverá permanecer no cargo até que o próximo seja nomeado. Em 1995, todavia, a então presidente da Corte, Jutta Limbach, em conversas com o Bundesrat, solicitou que o processo de escolha fosse adiado – apesar de já haver consenso quanto aos nomes dos futuros indicados. Isso porque importante processo sobre direito de asilo já tivera o julgamento iniciado, inclusive com audiências orais. Após quatro meses, o acordo não conseguiu resistir a pressões políticas e novos juízes foram, enfim, indicados.

Autores

  • é doutoranda em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito pela Eberhard-Karls Universität Tübingen (Alemanha), assessora de ministro do Supremo Tribunal Federal e membro do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional.

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