Diário de Classe

Faticidade e o texto de lei: importância da Filosofia para o Direito

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29 de janeiro de 2022, 10h23

No Direito, normalmente, se discute se um rol de hipóteses previstas em lei é exaustivo ou exemplificativo. Em 2018, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o rol das hipóteses expressas de interposição de agravo de instrumento previsto no art. 1.015 do Código de Processo Civil (CPC) era de taxatividade mitigada (Recurso Especial Repetitivo Tema 988  1.696.396 e Recurso Especial 1.704.520). A tese firmada foi: "O rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação".

A compreensão da tese acima passa por dois pontos: (a) entender o debate que levou ao referido julgamento do STJ; (b) entender que o não dito do debate tem como pano de fundo dois problemas filosóficos e de Teoria do Direito: a faticidade e a diferença entre princípio e regra. Este artigo se aterá à questão da faticidade.

No Direito processual civil brasileiro as partes não podem criar recursos processuais por meio de negócios jurídicos pré-processuais e processuais (CPC, art. 190), "de maneira que somente são recorríveis as decisões que integrem um rol taxativo previsto em lei. É o que se chama de taxatividade".[1] Um exemplo seria o art. 1.115 do CPC.[2]

O primeiro ponto tem em seu seio o debate travado na doutrina e nos julgados sobre a exaustividade (ou não) do rol posto no art. 1.015 do CPC, o que ensejou três correntes:

(i) rol não é taxativo e sim exemplificativo, ou seja, existem diversas situações não previstas no rol do art. 1.105 do CPC que, com base no devido processo legal, não podem deixar de sofrer o controle judicial mediante a interposição do agravo de instrumento.[3]

(ii) rol taxativo com interpretação ampla, isto é, há uma taxatividade do rol do art. 1.015 do CPC, todavia as hipóteses podem ser interpretadas de maneira extensiva de cada uma das hipóteses legais, “que amplia o sentido da norma para além do contido em sua letra”.[4]

O STJ, por exemplo, aplicou a interpretação extensiva na lista de serviços tributáveis para a incidência de ISS (ex.: Enunciado 424 da Súmula do STJ), nas hipóteses de cabimento de recurso em sentido estrito no processo penal (CPP, art. 581) (ex.: RESP 1.078.175) e não se discute na doutrina e nos julgados que as hipóteses de cabimento no processo civil de demanda rescisória são taxativas e admitem interpretação extensiva, que “opera por comparações e isonomizações, não por encaixe e subsunções”.[5]

(iii) rol taxativo com interpretação restrita, uma vez que a finalidade do rol do art. 1.015 do CPC foi diminuir as hipóteses de decisões interlocutórias agraváveis.[6] “Assim, a conclusão não pode ser outra, que não a de que as hipóteses do CPC 1015 foram descritas em rol fechado, em numerus clausus, taxativamente, não admitindo ampliação, quer por meio de interpretação extensiva, quer analógica, incabíveis e impertinentes no caso de rol taxativo”.[7]

Como visto, o STJ entendeu pela mitigação da taxatividade do rol do art. 1.015 do CPC e não se aliou integralmente a nenhuma das correntes acima. No presente texto não se objetiva discutir o acerto (ou não) da decisão acima[8] e sim trazer à baila um problema filosófico e de Teoria do Direito: a faticidade. Nessa linha a pergunta a ser respondida neste texto é: um artigo de lei pode, a priori, abarcar todas as hipóteses de aplicação dos casos concretos que incidirá?

A discussão alusiva ao art. 1.105 do CPC, independentemente do acerto (ou não) da resposta conferida pelo STJ, possibilita discutir como a faticidade deve ser observada para que os casos concretos sejam corretamente compreendidos e decididos.

Do ponto de vista filosófico, Heidegger, em 1923, no texto denominado Ontologia: hermenêutica da faticidade[9], reflete sobre como lidamos com mundo no qual estamos inseridos, independentemente da subjetividade de cada um de nós, o que traz à tona a faticidade para a Filosofia.

Isso coloca a faticidade no bojo da existência humana, sem tornar necessário um sistema filosófico de viés ideal ou transcendental que apreenda uma compreensão humana radical. Desse modo, para Heidegger, “compreender já sempre, e antes de qualquer coisa, é vida fática. É faticidade (STEIN, 2011[10])”.[11]

Com isso, altera-se o foco da hermenêutica, pois ela deixa de se restringir à interpretação de textos e abarca a faticidade.[12] Lenio Streck esclarece:

Mas o que é faticidade? Para explicar o giro ontológico de Heidegger, podemos dizer que o filósofo dá ao homem o nome de Ser-aí e que o seu modo de ser é a existência. Todavia, este ente – que somos nós –, chamado Ser-aí, é o que ele já foi, ou seja: o seu passado.

Podemos dizer que isso representa aquilo que desde sempre nos atormenta e que está presente nas perguntas: de onde viemos? Para onde vamos? A primeira pergunta nos remete ao passado; a segunda, ao futuro. O passado é selo histórico imprimido em nosso ser: faticidade; o futuro é o ter-que-ser que caracteriza o modo-de-ser do ente que somos (Ser-aí): Existência. Portanto, a hermenêutica é utilizada para compreender o ser (faticidade) do Ser-aí e permitir a abertura do horizonte para o qual ele se encaminha (existência). Aquilo que tinha um caráter ôntico, voltado para textos, assume uma dimensão ontológica, visando à compreensão do ser do Ser-aí.

Antes de Heidegger, pensar significava relacionar, ou seja, colocar alguma coisa em determinada relação e sobre ela se fazer uma afirmação que se chama juízo. O pensamento avançava de uma relação à outra e de um juízo a outro. Porém, a nova experiência introduzida por Heidegger indicou que pensar significa mostrar, isto é, fazer com que algo se mostre. Assim, a partir de 1923, Heidegger oferece a primeira análise exaustiva de uma articulação categorial do que chamou de vida factual, em que a questão da faticidade representa a via através da qual unicamente é possível e necessário responder à pergunta sobre o ser.

No momento em que ocorre esse encurtamento hermenêutico na tradição filosófica, a sua tarefa se coloca apenas onde há o homem jogado na precariedade da sua existência (STEIN, 1988). O espaço da filosofia se torna, então, o espaço da faticidade. Por isso, a tarefa de Heidegger será a de analisar essa faticidade não a partir de uma teoria ou de uma dialética, mas de uma hermenêutica. Esse é o corte monstruoso com a tradição metafísica ocidental.

Hermenêutica da faticidade é a expressão que, no fundo, quer dizer que a interpretação do mundo é a interpretação da condição fático-existencial do ser humano, somando-se a isso a circunstância de que a faticidade também incorpora todos os elementos históricos e culturais nos quais estamos enraizados. Na hermenêutica, todos esses elementos entram em consideração e com isso se produz uma ruptura fundamental na filosofia.[13]

Nessa linha, as análises lógicas da realidade são insuficientes, visto que sempre precisamos interpretar, a apor a faticidade para além da objetividade lógica e, relacionando-se ao texto, da semântica.[14]

Além disso, a hermenêutica da faticidade heideggeriana substitui a subjetividade moderna de erguimento da racionalidade filosófica para explicar o conhecimento, uma vez que, agora, perguntamos sobre as condições de possibilidade do compreender, isto é, “significa que nesse momento ele já compreendeu o mundo de alguma forma, e por isso já habita um mundo fático do qual não pode escapar”. [15]

Percebe-se, destarte, que a faticidade se coliga com a singularidade, a afastar a ideia de existência de “coisas em geral” que se encaixam com os entes do mundo concreto, ou seja, os sentidos se configuram à faticidade. Diante disso, Heidegger afirma que inexiste um “lagarto em geral” e sempre “um dado lagarto”.[16] Sempre há um conteúdo de sentido específico para cada palavra ou fato no mundo.

No Direito, a hermenêutica da faticidade ratifica que não é possível que “textos jurídicos que abarquem de antemão todas as hipóteses de aplicação. Não há universalidades que contenham todos os sentidos. Os sentidos se dão na faticidade”.[17]

O sentido de um texto jurídico perpassa pela resposta à pergunta de como quem interpreta tal sentido, a confirmar que “hermenêutica é existência, é interpretar o mundo a partir da faticidade. É vida. O intérprete não é um outsider do processo hermenêutico, do mundo vivido. Há um já-sempre-compreendido em todo processo de compreensão. No conto está o contador, ou de outra forma, o mensageiro já vem com a mensagem, como sempre lembrou Heidegger em vários livros e textos”.[18]

Essa faticidade possibilita a superação de um Direito composto somente por regras e que estas sejam completas, com o Direito atual sendo composto por princípios e regras que se diferenciam e que, ao mesmo tempo são interdependentes, pois o princípio precisa de uma regra para ser aplicado e a regra está fundada em, no mínimo um princípio, sendo que ambos precisam ser produzidos, compreendidos e aplicados de maneira democrática.

Altera-se, outrossim, a relação texto e norma, visto que o texto (enunciado normativo) enuncia de forma sempre precária suas hipóteses de incidência, já que a norma não mais é o texto em si, mas a atribuição de sentido que se confere ao texto em um caso concreto, cujo sentido deve ser acorde com a principiologia e com as regras que incidem no caso concreto analisado.

Por fim, pensar que um texto legal, contratual, de enunciado de súmula ou de súmula vinculante pode conter todas as hipóteses de aplicação futura, nada mais faz do que retomar, assistematicamente, uma jurisprudência dos conceitos, cujos conceitos “pretendem abarcar todas as hipóteses de aplicação futura”. [19]

Acertou o STJ, portanto, ao não chancelar que o art. 1.015 do CPC abarcaria de antemão todas as hipóteses futuras de interposição de agravo de instrumento contra decisões interlocutórias no processo civil. Podemos discutir se os fundamentos pelos quais esta resposta foi dada ensejaram uma resposta constitucionalmente adequada, o que pode ser feito em outro texto.

Algo se mostrou incontroverso no referido julgamento do STJ: a faticidade, que, de forma consciente ou inconsciente, permitiu que o STJ afastasse uma interpretação totalizante do texto que impedisse de novas hipóteses de agravo de instrumento nos diversos casos concretos postos a julgamento, sendo necessário, para tanto, que as novas hipóteses de agravo de instrumento observem a estabilidade, a coerência e a integridade, a fim de que tais hipóteses sejam universalizáveis para todos os casos concretos semelhantes e que permitam a distinção ou a superação nos futuros casos concretos que serão julgados acerca da aplicação do art. 1.015 do CPC.

 


[1] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 18.ed. Salvador: Juspodivm, 2021, p. 268.

[2] Ibid.

[3] Ver por todos: LEAL, Rosemiro Pereira. Comentário ao art. 1.015 do CPC. In: ASSIS, Araken de; LEITE, George Salomão; ALVIM, Angélica Arruda (Coords). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 1175.

[4] Ver por todos: DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da., p. 269.

[5] DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da., p. 270-271.

[6] Ver por todos, NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Art. 1.015. Código de Processo Civil comentado. 20. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2022, p. 1.193.

[7] NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade., p. 1.193.

[8] Críticas fundadas à decisão do STJ por seguidores das citadas diferentes correntes postas no citado debate veja: NERY JÚNIOR, Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade., p. 1.193; DIDIER JR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da., p. 271-274.

[9] HEIDEGGER, Martin. Ontologia: hermenêutica da faticidade. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 2012.

[10] STEIN, Ernildo. Introdução ao pensamento de Martin Heidegger. Porto Alegre: Edipucrs, 2011.

[11] STRECK, Lenio. Faticidade. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais de acordo com a crítica hermenêutica do direito. 2.ed. Belo Horizonte: Letramento, 2021, p. 107-110, p. 107.

[12] STRECK, Lenio. Faticidade., p. 107.

[13] STRECK, Lenio. Faticidade., p. 107-108.

[14] STEIN, Ernildo. Aproximações sobre hermenêutica. 2. ed. Porto Alegre: Edipucrs, 2010, p. 74.

[15] STRECK, Lenio. Faticidade., p. 108.

[16] HEIDEGGER, Martin. Que é uma coisa? Doutrina de Kant dos princípios transcendentais. Tradução de Carlos Morujão. Lisboa: Edições 70, 2002.

[17] STRECK, Lenio. Faticidade., p. 109.

[18] STRECK, Lenio. Faticidade., p. 109.

[19] STRECK, Lenio. Jurisprudência dos conceitos. Dicionário de hermenêutica: 50 verbetes fundamentais de acordo com a crítica hermenêutica do direito. 2.ed. Belo Horizonte: Letramento, 2021, p. 149-157, p. 155.

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