Ambiente Jurídico

Litígios climáticos na China

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29 de janeiro de 2022, 8h00

A China é o maior emissor mundial de gases de efeito estufa, neste cenário o seu governo estabeleceu os objetivos de atingir o pico das emissões de carbono antes de 2030 e de alcançar a respectiva neutralidade antes de 2060 [1]. Não será tarefa simples a ser executada pelo capitalismo de Estado chinês definido magistralmente por Stiglitz e Kennedy [2].

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O país possui um Ministério Público especializado em todos os níveis, que pode ajuizar demandas ambientais e climáticas contra o governo. Apenas, no ano de 2020, o Ministério Público ajuizou 80 mil casos ambientais. Aliás, a Procuradoria Popular Suprema publicou, faz pouco, artigo de opinião esclarecendo e instigando os promotores a instaurarem litígios climáticos [3]. Portanto, e já reconhecido em doutrina, o país está abrindo as portas para a litigância climática [4].

Na organização judiciária do país, existem tribunais ambientais especializados em todos os níveis, e é crescente a ideia de que as Cortes devem desempenhar um papel ativo em suas decisões para estimular a transição energética e o combate ao aquecimento global. O Supremo Tribunal Popular possui uma definição e classificação técnica de casos climáticos expostos no White Paper [5] publicado pelo mesmo. Neste documento constam casos ajuizados específicos de mitigação e de adaptação que envolvem a emissão de substâncias que impactam direta ou indiretamente o sistema climático [6].

O papel do Judiciário no combate às mudanças climáticas também foi enfatizado na Conferência Judiciária Mundial, que foi coorganizada pelo Supremo Tribunal Popular e pelo Pnuma, em Kunming, em maio de 2021. A Declaração de Kunming resultante da Conferência Judicial Mundial sobre Meio Ambiente exige que os tribunais desempenhem um papel proativo no combate às mudanças climáticas e prevê expressamente litígios climáticos para (a) a redução do carbono, (b) para o estímulo ao mercado de redução de emissões e (c) para o incremento das finanças verdes [7]. Uma gama diversificada de medidas judiciais estão estipuladas no documento, incluindo o manejo de litígios preventivos e precautórios, com pedido de suspensão cautelar de projetos nocivos para o sistema climático e, igualmente, litígios climáticos de cunho mandamental para restauração do meio ambiente degradado.

Embora a China ainda não tenha uma lei dedicada especificamente às mudanças climáticas, o vice-premier Han Zheng instruiu o Ministério da Ecologia e Meio Ambiente a começar a trabalhar em um anteprojeto de lei sobre o tema. Bom sempre esclarecer, no entanto, que boa parte dos litígios climáticos no mundo foram ajuizados sem previsão legal e constitucional de tutela do sistema climático. Na China, por exemplo, os promotores e as organizações não governamentais têm ajuizado casos climáticos invocando as leis já existentes como o Código Civil, a Lei de Proteção Ambiental, a Lei de Avaliação de Impacto Ambiental, a Lei de Energia Renovável, a Lei de Prevenção e Controle da Poluição Atmosférica, o Regulamento Nacional do Mercado de Carbono, o Regulamento de Licenças Ambientais, entre outros diplomas legais e regulamentações administrativas.

Neste cenário, extremamente promissor, é que sobreveio decisão do tribunal da província de Zhejiang, sudeste da China, no último ano, que tornou-se um marco no direito das mudanças climáticas no país e, também, mundial. Procuradores chineses ajuizaram, de modo exitoso, litígio climático, contra empresa violadora, por ação e omissão, das regulações e das políticas estatais concernentes as emissões de gases de efeito estufa no âmbito nacional [8].

A demanda foi possível em virtude da aprovação da reforma na legislação processual de 2017 que garantiu a legitimidade ad causam para os promotores ajuizarem litígios ambientais e climáticos em toda a extensão territorial e política da China sem quaisquer restrições. Neste período, de um pouco mais de quatro anos, foram ajuizados mais 150 mil litígios de interesse público, ambiental e climático.

As procuradorias passaram por uma reestruturação e valorização no sentido de instrumentalizar ações do governo para reduzir a poluição, em especial, em nível local, em virtude de ações e omissões dos órgão neste âmbito. Presente neste ponto a máxima do direito ambiental internacional de pensamento global e de ação local. As procuradorias, a propósito, o que há alguns anos seria impensável, possuem legitimidade para processar agências governamentais e reverter ações políticas de governo prejudicais ao meio ambiente.

A empresa estatal, no caso concreto, foi demandada por utilizar ilegalmente substâncias que empobrecem a camada de ozônio e também causam o aquecimento global. A demandada foi considerada culpada por utilizar especialmente o freon. Referida substância cuja fórmula molecular, aliás, é CCl2F2, é um gás muito utilizado ainda em vários produtos em todo o mundo. Nos congeladores, para um melhor esclarecimento dos leitores, ele circula por todo o circuito (compressor, válvula de expansão, evaporador e condensador). Além de ser usado como agente refrigerante, o gás freon é empregado como propulsor de aerossóis (sprays propelentes). Como a própria estrutura revela, este gás clorado e fluorado é derivado do metano e é altamente inflamável.

Apesar da empresa durante o litígio tentar destruir e descaracterizar as provas, a procuradoria local, trabalhando em conjunto com o tribunal e o gabinete do Ministério da Ecologia e do Ambiente (o que é permitido no sistema processual chinês), conseguiu demonstrar o nexo de causalidade entre as ações e as omissões da empresa e os danos ao meio ambiente e ao sistema climático causados pela parte demandada. A empresa foi condenada a pagar mais de 460 mil yuans para compensar os danos ecológicos que causou e, ainda, 150 milyuans para cobrir os custos processuais e perícia.

Outro caso em curso relacionado com as alterações climáticas foi ajuizado pela ONG Amigos da Natureza, em 2018, contra duas empresas regionais de redes elétricas no noroeste da China. Os Amigos da Natureza alegaram que as demandadas violaram a Lei das Energias Renováveis que obriga as empresas de redes de energia elétrica a comprarem energia renovável onde quer que esta esteja disponível. A demandada, State Grid, estava comprando energia produzida pela queima de carvão prejudicando o setor de energia eólica local na província de Gansu. Ainda não foi proferido, mister enfatizar, julgamento definitivo neste caso.

De outra banda, também existe a possibilidade dos autores climáticos invocarem a Lei de Estudos de Impactos Ambientais para fundamentarem as suas ações. O Ministério Público e ONGs podem buscar a anulação judicial de licenças de instalação e de funcionamento de usinas recém propostas, ou recentemente aprovadas, movidas a carvão, gás ou petróleo, se o estudo de impacto ambiental possuir vícios procedimentais ou de mérito. A divulgação insuficiente de informações e a necessidade de participação das comunidades afetadas pelas usinas também podem ser fundamentos empregados nos litígios climáticos do estilo [9].

O Ministério Público também possui legitimidade para ajuizar litígios de interesse público contra departamentos de governo provincial, se estes não cumprirem a sua obrigação legal de promoção da transição de uma economia de combustíveis fósseis para de baixo carbono, assim como quando estes entes deixarem de formular e implementar, de modo apropriado, as metas regionais de pico de carbono e de controle de consumo de energia e de emissões de gases de efeito estufa, assim como de redução das supercapacidades.

Em suma, parece que os litígios climáticos são um instrumento importante para a China alcançar o seu objetivo de neutralidade de carbono e o arcabouço legal do país está sendo incrementado e sofisticado com a adoção de leis, regulamentos e documentos políticos importantes. A China possui um imenso potencial não apenas para a transição energética profunda de sua economia, mas para a consequente redução de emissão de gases de efeito estufa que é essencial para a estabilização global do clima no planeta.

 


[1] ZOU, Luming. China.Org.Cn. China's Carbon Peak and Neutrality Goals Show its Resolve to Address Climate Change.03.05.2021. Disponível em: http://www.china.org.cn/opinion/2021-05/03/content_77451598.htm. Acesso em: 20/1/2022.

[2] KENNEDY, David; STIGLITZ, Joseph (Ed.). Law and Economics with Chinese Characteristics: Institutions for Promoting Development in the Twenty-First Century. Oxford: Oxford University Press, 2013.

[3] THE SUPREME PEOPLE´S PROCURATORATE OF THE PEOPLE´S REPUBLIC OF CHINA. Expecting China's Procuratorial Public Interest Litigation to Do More in Addressing Climate Change. Disponível em: https://www.spp.gov.cn/spp/llyj/202106/t20210604_520414.shtml. Acesso em: 20/1/2022.

[4] Li, J. (2020). Climate Change Litigation: A Promising Pathway to Climate Justice in China? In J. Lin & D. Kysar (Eds.), Climate Change Litigation in the Asia Pacific (pp. 331-364). Cambridge: Cambridge University Press. doi: 10.1017/9781108777810.014.

[5]BUSINESS AND HUMAN RIGHTS RESOURCES CENTER. Supreme People's Court Releasing White Paper on China's Environmental Resource Trial. Disponível em:

https://www.business-humanrights.org/en/latest-news/supreme-peoples-court-releasing-white-paper-on-chinas-environmental-resource-trial/. Acesso em: 20/1/2022.

[6] THE SUPREME PEOPLE´S COURT OF THE PEOPLE´S REPUBLIC OF CHINA. About. Disponível em: http://english.court.gov.cn/2015-07/16/content_21299713.htm. Acesso em: 20/1/2022.

[7] UNITED NATIONS PROGRAMME. Kunming Declaration. Convention on Biological Diversity. Disponível em: cop-15-05-add1-en.pdf (cbd.int).

[8]THE SUPREME PEOPLE´S COURT OF THE PEOPLES REPUBLIC OF CHINA. Deqing, Zhejiang: Handling the first public interest litigation case for illegal use of ozone-depleting substances. Disponível em: https://www.spp.gov.cn/dfjcdt/202104/t20210401_514557.shtml. Acesso em: 20/1/2022.

[9] DE BOER, Dimitri. China Concil for International Cooperation on Environment and Development. Is China Ready for Climate Litigation? Disponível em: https://cciced.eco/climate-governance/is-china-ready-for-climate-litigation/. Acesso em: 20/1/2022

Autores

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    é juiz federal, professor no programa de pós-graduação e na Escola de Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), pós-doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), professor de Direito Ambiental na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe-RS), visiting scholar na Columbia Law School (Sabin Center for Climate Change Law) e na Universität Heidelberg (Institut für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht) e presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

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