Controvérsias jurídicas

As polêmicas do caso Robinho

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

27 de janeiro de 2022, 8h00

Em um dos casos de maior repercussão na mídia nos últimos tempos, o jogador Robinho foi condenado em sentença transitada em julgado, proferida pela 3ª Seção Penal do Supremo Tribunal de Cassação de Roma à pena de reclusão de 9 anos e ao pagamento de multa de 60 mil euros, pelo crime de violência sexual em grupo. Conforme consta, em meados de 2013, o jogador, na companhia de alguns amigos, no interior de uma boate de Milão, manteve com a vítima inúmeros atos libidinosos, sem que esta pudesse exteriorizar seu consentimento em razão de estar desacordada e sob efeito de álcool.

Historicamente, o crime de estupro sempre foi considerado um dos mais abjetos, endossando os clássicos dizeres de Magalhães Noronha no sentido de que, de todos os delitos carnais é o estupro certamente um dos que mais demonstram a temibilidade do delinquente[1]. Pelo alto grau de reprovabilidade da conduta do agente, o Direito Romano punia a violência carnal com a pena de morte pela Lex Julia de vi publica. A pena capital também era prevista nas antigas legislações espanholas, tal como a do Fuero Viejo, que com uma “declaración de enemistad”, outorgava aos parentes da vítima o direito de dar a morte ao ofensor.[2]

No Brasil, o crime cometido por Robinho encontra-se definido no artigo 217-A, § 1º, c.c. o art. 226, IV, a, do Código Penal como estupro coletivo de vulnerável: manter conjunção carnal com alguém que, por qualquer causa, não pode oferecer resistência.  A pena será aumentada de 1/3 a 2/3 se o crime for praticado mediante o concurso de dois ou mais agentes.

Em função de sua gravidade, nossa legislação reserva tratamento diferenciado ao crime, considerando-o hediondo (Lei nº 8.072/90, artigo 1º, VI), sendo insuscetível de anistia, graça, indulto ou fiança (Lei nº 8.072/90, art. 2º, I e II), com regime inicial fechado (Lei nº 8.072/90, artigo 2º, § 1º), livramento condicional após 2/3 da pena (CP, artigo 83, V) e progressão de regime após o cumprimento de 40% da pena se for primário, 50% se do crime resultar a morte da vítima, 60% se o agente for reincidente em crime hediondo ou 70% se reincidente em crime hediondo com resultado morte (LEP, artigo 112, “e”, “f”, “g” e “h”).

Ocorre que o crime foi cometido em território italiano, ficando submetido ao regramento jurídico daquele país. No momento do trânsito em julgado da decisão condenatória, Robinho já se encontrava no Brasil e não poderia mais ser preso, salvo apresentação espontânea à justiça italiana ou prisão em país estrangeiro que tenha tratado de extradição com a Itália.

É importante ressaltar que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, LI, dispõe que nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes de sua naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei.

Embora inequívoca a proibição de extradição de brasileiro nato, o Brasil aprovou em 2017, a Lei de Migração (Lei nº 13.445/17), segundo a qual é possível a transferência da execução da pena de prisão aplicada no estrangeiro para ser cumprida em território nacional. De acordo com seu artigo 100, a justiça italiana poderá solicitar a chamada extradição executória, fazendo com que Robinho cumpra a pena de 9 anos em presídio brasileiro. Para tanto, são necessários os seguintes requisitos: pedido diplomático de transferência da pena, que o condenado seja nacional ou resida no Brasil, que a sentença tenha transitado em julgado, que a pena seja de pelo menos um ano de prisão, que o fato seja crime também no Brasil, e que haja tratado internacional autorizando.

Conforme se verifica, Robinho não pode ser extraditado para a Itália enquanto permanecer em território nacional. Se sair do Brasil no entanto, e for a algum país que tiver tratado de extradição com a Itália, como a justiça italiana emitiu a difusão vermelha ou red notice[3], poderá ser extraditado para cumprir sua pena na Itália. Enquanto permanecer no Brasil, a alternativa seria a aplicação da Lei de Migração (Lei n. 13.445/2017), uma vez que Robinho é nacional, a condenação transitou em julgado, o fato também constitui crime no Brasil, a pena aplicada é superior a 1 ano e, em 17/10/1989, o Brasil celebrou tratado de cooperação judiciária com a Itália.

Referido tratado foi ratificado pelo Congresso Nacional em 20/11/1992 pelo Decreto Legislativo 78/1992 e, em 9 de julho de 1993, foi promulgado pelo Presidente da República por meio do Decreto 862/1993.

O tratado de cooperação judiciária está em vigor desde 1 de agosto de 1993. A princípio, de acordo com o art. 100 da Lei de Migração e diante da existência de tratado de cooperação judiciária entre Brasil e Itália, a consequência natural seria a prisão de Robinho para o cumprimento dos 9 anos de reclusão em território nacional. Ocorre, porém, que o art. 1.3 desse tratado é expresso ao dizer que a cooperação não compreenderá a execução de medidas restritivas da liberdade pessoal, nem a execução de condenações. A conclusão é a de que Robinho não poderá cumprir a pena aplicada pela justiça italiana no Brasil simplesmente porque o tratado entre Brasil e Itália não admite esta possibilidade.

Além disso, parte da doutrina sustenta que a Lei de Migração não se aplica a brasileiro nato, mas tão somente a estrangeiros e brasileiros naturalizados. Nesse sentido, segundo Valério Mazzuoli[4], por se tratar de uma lei de migração, ela somente se aplicaria a migrantes, entendidos estes como estrangeiros e brasileiros naturalizados, excluindo-se de sua incidência os brasileiros natos.

Embora não seja esta nossa posição, já que a lei ao empregar a expressão nacionais não fez qualquer distinção para excluir os brasileiros natos de sua incidência, o fato é que incida ou não sobre brasileiros natos, a Lei de Migração não será aplicada ao jogador Robinho, por falta de previsão de transferência da pena de prisão no tratado de cooperação judiciária Brasil-Itália.

Em suma, Robinho não poderá ser extraditado para a Itália porque é brasileiro nato e a pena de prisão aplicada na Itália não poderá ser transferida e executada no Brasil diante da proibição expressa do tratado de cooperação judiciária Brasil-Itália.

Por outro lado, o artigo 9º do Código Penal Brasileiro também não admite homologação de sentença estrangeira para a execução de pena privativa de liberdade, mas tão somente de medida de segurança e execução civil do dano ex delicto. Destaque-se que a competência para tal homologação é do STJ (CF, artigo 105, I, i).

Robinho, então, ficará impune? A alternativa que resta será a aplicação do artigo 7º do CP, que admite a extraterritorialidade da lei penal brasileira ao estatuir que "ficam sujeitos à lei brasileira, embora cometidos no estrangeiro…" e elenca as hipóteses.

 Uma das hipóteses de extraterritorialidade é a de brasileiro que comete crime fora do Brasil, o chamado princípio da personalidade ativa, exatamente a hipótese de Robinho. O processo terá que ser reaberto no Brasil, submetido aos princípios da ampla defesa, contraditório e devido processo legal, retomando-se a persecução penal desde seu início. Há tempo suficiente para isso, já que o crime prescreverá somente em 2033, considerando o prazo prescricional de 20 anos, correspondente à pena máxima prevista para o estupro coletivo de vulnerável (CP, artigo 217-A, § 1º, c.c. artigo 226, IV, a, e artigo 109, I).

Resta ainda uma última polêmica: caso o processo se reinicie no Brasil, a competência será da justiça estadual ou federal? Há duas posições.

Em um primeiro momento, entendeu o STJ pela competência da justiça estadual[5]. No mesmo sentido, ratificou o STF ao decidir que "o fato de o delito ter sido cometido por brasileiro no exterior, por si só, não atrai a competência da justiça federal, porquanto não teria ofendido bens, serviço ou interesse da União (CF, artigo 109, IV)" [6].

Posteriormente, o STF se posicionou em sentido contrário ao invocar a competência da justiça federal: “em se tratando de cooperação internacional em que o Estado Brasileiro se compromete a promover o julgamento criminal de indivíduo cuja extradição é inviável em função de sua nacionalidade, exsurge o interesse da União, o que atrai a competência da justiça federal para o processamento e julgamento da ação penal, conforme preceitua o artigo 109, III, da Constituição Federal”.[7]

Entendemos que a competência é da justiça estadual, por falta de previsão expressa no artigo 109 da CF, mas deve prevalecer o entendimento que fixa a competência federal. Enfim, restam duas conclusões: Robinho não será preso e o Direito, às vezes, é confuso até mesmo para quem o aplica.


[1] NORONHA, Edgard Magalhães. Crimes contra os Costumes, 1ª edição, Ed. Saraiva, 1943, p. 11.

[2] NORONHA, Edgard Magalhães. Crimes contra os Costumes, 1ª edição, Ed. Saraiva, 1943, p. 14.

[3] [3] A difusão vermelha é uma das ferramentas da Organização Internacional de Polícia Criminal – INTERPOL para a operacionalização da cooperação policial internacional e tem a finalidade de localizar um indivíduo para prisão com fim exclusivo de extradição

[4] [4] Mazzuoli, Valerio de Oliveira. Curso de direito internacional público– 13. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2020.

[5] STJ, CC 115.375/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, 3ª Seção, julgado em 26/10/2011, DJe 29/02/2012 e STJ, CC 104.342/SP, Rel. Ministra Laurita Vaz, 3ª Seção, julgado em 12/-8/2009

[6] STF, HC 105.461/SP, rel. Min. Marco Aurélio, 1ª Turma, 29.3.2016.

[7] STF – RE: 1270585/MG, DJe 31/08/2020, 1ª Turma, Data de Publicação: 09/09/2020.

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