Dies a quo em período de suspensão de prazos cíveis e a jurisprudência do STF
26 de janeiro de 2022, 19h23
Dentro da chamada jurisprudência defensiva, que exacerba requisitos formais e temporais para conhecimento de recursos, o Superior Tribunal de Justiça tem, reiteradamente, deixado de conhecer inúmeros apelos a si direcionados por alegada intempestividade, especialmente aqueles apresentados após períodos, atualmente tão em voga, de suspensão de prazos.
Nas decisões, monocráticas ou colegiadas, utiliza-se argumento bastante semelhante, para não se dizer idêntico: em geral, a ocorrência de períodos suspensivos de prazos "não suspende a prática dos atos, que poderá ser realizada em qualquer dia útil, nos termos dos artigos 212 e 216 do NCPC, não havendo assim, impedimento para a realização da publicação" (STJ, AgInt nos EDcl no AREsp 1.604.573/SE, 3ª Turma, relator ministro Moura Ribeiro, j. em 31/8/2020) [1].
As reiteradas decisões do STJ no sentido supramencionado contêm, ao nosso ver, em seu fundo, questões muito relevantes no que tange ao regime dos prazos processuais, as quais, ao nosso sentir, têm sido retumbantemente ignoradas pela corte superior.
Parece até desnecessário recordar, mas não se pode deixar de destacar que os operadores do Direito têm convivido, frequentemente, com períodos de suspensão de prazos [2]. O próprio CPC/2015 estabelece, para os processos cíveis, que será suspenso "(…) o curso do prazo processual nos dias compreendidos entre 20 de dezembro e 20 de janeiro, inclusive" (artigo 220). Ademais, situações excepcionais têm levado os órgãos do Poder Judiciário a editar atos estabelecendo a suspensão de prazos processuais em determinados períodos, ao exemplo do que ocorreu na chamada paralisação dos caminhoneiros, deflagrada em maio de 2018 [3], e, mais recentemente, na crise sanitária da Covid-19.
Há mais de 30 anos, a saudosa professora Ada Pellegrini Grinover publicou coletânea com alguns textos sobre temas diversos, entre os quais se destaca o ensaio intitulado "o conteúdo da garantia do contraditório", no qual a processualista correlacionava "a efetividade do contraditório" ao regime legal dos prazos processuais, sua interpretação e aplicação.
Com sua habitual clareza, afirmava, "(…) a lei processual deve colocar o interessado em condições de conhecer o dies a quo e de utilizar, em sua inteireza, o tempo que lhe foi concedido, além de garantir-lhe a congruência concreta dos prazos a que se subordina a realização dos atos judiciais (…)". Adiante na mesma seção, defendeu que "(…), com relação aos prazos, a interpretação a ser dada à norma deve ser sempre consentânea com a garantia de sua inteireza, de modo que, em concreto, o prazo estabelecido em lei (…) leve à efetiva possibilidade de tutela" [4].
Então, a fim de se assegurar a inteireza do prazo, condição para se garantir o exercício do contraditório, necessário distinguir "início do prazo" (dies a quo) e "início da contagem do prazo". Como explicava notável doutrina, produzida durante a vigência do CPC/1973, mas que continua atual, "o ponto inicial do prazo, portanto, é aquele em que foi feita a intimação. A contagem, que é outra coisa, obedecerá à norma estatuída no texto" [5]. Na lei processual derrogada, o início do prazo e sua contagem eram regulados, principal e respectivamente, pelos artigo 240 e 184.
A diferença entre "início do prazo" e o "início da contagem do prazo" pode ser bem observada, atualmente, pela dicção dos artigos 224 e 231 do CPC/2015. O caput do primeiro estabelece que, salvo exceções previstas em lei, "(…) os prazos serão contados excluindo o dia do começo e incluindo o dia do vencimento". Já o segundo, entre inúmeros incisos, entre os quais destacam-se o seu caput e inciso VII, prevê que "considera-se dia do começo do prazo (…) a data da publicação, quando a intimação se der pelo Diário da Justiça impresso ou eletrônico".
Nas palavras de Daniel Amorim Assumpção Neves, os incisos do artigo 231, CPC/2015, "preveem o termo inicial de fluência do prazo" e continua, "a data de início de fluência do prazo não é computada para sua contagem", o que reforça a necessidade de se diferenciar o começo do modo de contagem do prazo [6].
A publicação em órgão oficial (assim como quaisquer outros meios de comunicação processual, como a intimação pessoal, a carta, o mandado etc.) possui, no mínimo, dupla finalidade: dar ciência a alguém dos atos e termos do processo (artigo 269 e 272, CPC/2015) e fixar o dies a quo de eventuais prazos processuais, para realização de determinado ato (artigo 231, CPC/2015) [7].
Considerando todas as premissas até agora expostas, relevante a seguinte indagação: a publicação ocorrida em dia de suspensão de prazo é apta a marcar o início imediato do prazo em concreto, isto é, de dar início à sua fluência?
Na linha dos precedentes do STJ, referidos no presente texto, vê-se que a corte superior responde à pergunta positivamente, desde que a publicação em diário oficial ocorra em dia de expediente forense, afirmando que apenas sua contagem ficará suspensa até o fim do período de cessação da fluência de prazos. Em termos práticos, a orientação do STJ implica o seguinte, segundo esquema hipotético reproduzido abaixo:
— A publicação de uma sentença em 10 de janeiro de 2022 (segunda-feira), apesar da dicção e das limitações impostas pelo artigo 220 do CPC/2015, será válida e terá aptidão de marcar o início do prazo processual de 15 dias úteis para interposição de apelação, desde que a data coincida com dia de expediente normal na localidade do órgão jurisdicional emissor;
— A contagem do prazo ficará suspensa até 20 de janeiro 2022 (quinta-feira), por imposição do artigo 220, CPC/2015;
— A partir do dia 21 de janeiro 2022 (sexta-feira), desde que corresponda a um dia útil forense, será iniciada a contagem do prazo para apelação, nos termos do artigo 224, CPC/2015, o qual se encerrará em 10 de fevereiro 2022 (quinta-feira), considerando uma eventual sequência ininterrupta de dias úteis.
Em outras palavras, a interpretação aplicada pelo STJ impacta na fixação do dies a quo do prazo processual, primordial para sua contagem, e reduz o tempo de manifestação dos sujeitos processuais, ofendendo a garantia do contraditório.
A afirmação é comprovada pelo seguinte exercício. Alterando o esquema hipotético acima, adaptando-o à premissa de que a publicação em órgão oficial durante a suspensão não tem o condão de marcar o início do prazo processual, tem-se que a intimação será protraída para o primeiro dia útil posterior à suspensão de prazos (ou seja, 21 de janeiro de 2022), a contagem se iniciaria apenas em 24 de janeiro de 2022 (segunda-feira) e o prazo para apelação findaria em 11 de fevereiro de 2022 (sexta-feira), com o ganho de um dia útil de prazo, portanto.
Essa é a divergência verificada entre a posição do STJ e das partes envolvidas nos processos consultados. Apesar da autoridade e do respeito que a corte superior move, difícil concordar com a sua interpretação normativa, que tem sido seguida por inúmeros tribunais estaduais, salvo raras exceções [8], havendo argumentos lógicos e jurídicos para o enfrentamento do seu posicionamento.
Por uma questão de lógica, é difícil aceitar que o dia do começo do prazo possa coincidir com data de suspensão. Se há suspensão, parece que esta afeta não apenas a contagem de prazos, mas também o seu início, se este ainda não ocorreu. O prazo está simplesmente impedido de correr, interferindo no seu termo inicial. Em outras palavras, o problema deve ser analisado não pela perspectiva da existência de atividade forense na data da publicação, mas, sim, sobre a viabilidade de fluência de prazos, quando esta se encontra impedida por disposição expressa da lei ou mesmo por ato de um tribunal.
Além disso, parece que a interpretação conferida pelo STJ contraria toda a intenção da lei e do legislador ao estabelecer as regras atinentes ao começo dos prazos processuais.
A redação do §2º do artigo 224, CPC/2015, não poderia ser mais clara sobre a necessidade de a publicação ocorrer em dia útil. Ainda, o §1º do mesmo dispositivo prevê que qualquer excepcionalidade no expediente ou no sistema de comunicação eletrônica no dia do início ou no de vencimento (dies ad quem) do prazo redundará na prorrogação do dia do primeiro ou do segundo.
De tudo isso, extrai-se que o legislador procurou preservar o dia de início de prazo, em casos em que exista algum obstáculo, a fim de assegurar a possibilidade de uso integral pela parte.
A suspensão de prazos, particularmente a decorrente do artigo 220, CPC/2015, que implementou as chamadas "férias da advocacia", veio com o intuito de possibilitar período de descanso aos representantes judiciais das partes, sendo forçoso presumir que o advogado, nesse período, provavelmente, não estará no exercício regular de sua atividade, ainda que os órgãos do Judiciário e dos demais atuantes no foro estejam exercendo, regularmente, as suas funções [9]. Se assim o é, não há razões para se considerar ocorrida uma publicação nesse período, pelos menos para efeito de fixação do começo do prazo processual, sendo a melhor exegese aquela que admite a prorrogação da data do começo do prazo — atente-se, começo, não contagem —, por aplicação analógica do artigo 224, §1º, CPC/2015, isto é, em sentido contrário ao que vem sendo decidido no STJ.
O presente texto pretendeu realizar um contraponto à orientação firmada pelo STJ e jogar luz à necessidade de análise do problema da fixação do dies a quo em tempos de suspensão de prazos por outra perspectiva, que tem escapado ao tribunal a quem cumpre garantir o respeito e o resguardo à legislação federal. Considerar válida uma publicação ocorrida em tais períodos, para efeito de começo de prazo, além de contrariar toda a lógica da disciplina legal aplicável, representa claro obstáculo à efetividade do contraditório.
[1] No contexto da suspensão de prazos adotada pelos tribunais brasileiros, com fundamento na Resolução 313/2020 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em decorrência da crise sanitária da covid-19, a Presidência do E. STJ reconheceu a intempestividade de inúmeros recursos direcionados à Corte Superior, provenientes dos mais diferentes estados-federados, com argumento idêntico: EDcl nos AREsp nos 1.979.224 — SP; 1.980.047 — SP; 1.949.856 — SP; 1.927.151 — SP; 1.927.290 — RJ; 1.921.779 — SP; 1.940.500 — SP; 1.862.791 — GO; 1.862.254 — RJ; 1.845.665 — SP; 1.820.560 — SP; 1.840.414 — SP; 1.829.384 — AM; 1.829.635 — AL; 1.799.656 — BA; 1.793.260 — DF; 1.791.159 — MG; 1.728.382 — RS; 1.758.813 — PR 1.722.182 — PE.
[2] Importante lembrar que a suspensão de prazo não se confunde com a suspensão do processo, regulada pelo artigo 313 e seguintes do CPC/2015, situação em que se impede a prática de atos processuais (artigo 314).
[3] https://www.conjur.com.br/2018-mai-25/tribunais-suspendem-prazos-devido-greve-caminhoneiros. Consultado em 24.1.2022, às 16:24.
[4] Novas tendências do direito processual de acordo com a Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 37-38.
[5] ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários ao Código de Processo Civil. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1989, v. 2, p. 146 e 150.
[6] Novo Código de Processo Civil Comentado. 2.ª ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 389.
[7] ARAGÃO, Egas Dirceu Moniz de. Comentários ao Código de Processo Civil…p. 146 e 340.
[8] TJSP; Apel.1002916-97.2016.8.26.0270; 5ª Câm. de Dir. Púb., relatora des. Maria Laura Tavares; j. em 15.12.2020.
[9] O dispositivo sobreveio para assegurar "período de descanso anual" ao advogado, como reconhecido na doutrina (SICA, Heitor Vitor Mendonça. In: BUENO, Cassio Scarpinella (coord.). Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Saraiva, 2017, v. 1, p. 803).
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