Direto do Carf

As despesas aduaneiras na importação e o conceito de 'insumos' para o PIS/Cofins

Autor

  • Thais de Laurentiis

    é advogada sócia do escritório Rivitti e Dias Advogados doutora e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito da USP (com período na Sciences Po/Paris) especialista pelo Ibet graduada pela Faculdade de Direito da USP árbitra no CBMA professora do mestrado profissional do IBDT professora de Direito Tributário em cursos de pós-graduação e extensão universitária e ex-conselheira titular do Carf na 1ª e da 3ª Seção de Julgamento.

26 de janeiro de 2022, 12h00

Nesta coluna, o tema dos créditos da contribuição ao PIS e da Cofins com despesas portuárias na importação e exportação já foi muito bem abordado [1]. O que se buscará nessa nova oportunidade é apresentar com mais vagar alguns pressupostos para a análise do assunto sobre as importações, bem como destrinchar diferentes questões que aparecem dentro dessa temática na jurisprudência do Carf.

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Para tanto, parece válida uma pequena digressão a respeito da forma de olhar o termo "insumo" previsto na legislação como conceito jurídico indeterminado [2].

Os conceitos indeterminados abundam em todos os ramos do Direito. Afinal, é certo que a indeterminação é uma característica da própria linguagem. Assim, a indeterminação dos conceitos não corresponde necessariamente a uma imperfeição ou vício da linguagem, "senão como uma de suas propriedades que permite cumprir a função de expressar e valorar condutas, relações e objetos materiais". [3]

Como explica Hart ao tratar da textura aberta do Direito, existem os casos simples, familiares, incontroversos… Pois dizem respeito a contextos semelhantes daqueles postos na fórmula geral traçada pelo texto legal [4]Consequentemente, a aplicação da norma não causará dificuldades, sendo esse o "núcleo de certeza positiva" do Direito. Do lado diametralmente oposto, também serão simples os casos que em nada tangenciam os termos estabelecidos pelo texto jurídico, aqueles do "núcleo de certeza negativa", que ninguém cogita que possam render ensejo à subsunção da norma ao fato.

Entre tais núcleos de certeza aparecem as zonas cinzentas [5], justamente onde não há certeza, mas, sim, dúvida.

Nas ditas zonas cinzentas é possível que exsurja uma diversidade de opiniões sobre se a hipótese normativa tenha ou não se verificado no mundo dos fatos.

São inúmeros os exemplos [6], sendo o caso que nos interessa nesse momento o do conceito de insumo para fins de tomada de crédito da Contribuição ao PIS e da Cofins (cf. artigo 3º, inciso II, das Leis nºs 10.637/2002 e 10.833/2003).

É consabido que durante longo período a Receita Federal promoveu autuações fiscais para glosa de créditos dos contribuintes, tendo como argumentação as Instruções Normativas 247/2002 e 404/2004, concluindo que determinados dispêndios com produtos e serviços não caracterizavam insumos para fins de apropriação de crédito das contribuições, conforme disciplinam os artigos 3º, inciso II, das Leis nº  10.637/2002 e 10.833/2003. Posteriormente, o STJ veio pacificar a controvérsia por meio do REsp 1.221.170, julgado pela sistemática dos recursos repetitivos. Nessa oportunidade, julgou que as citadas INs são ilegais e definiu insumos como os dispêndios essenciais e relevantes ao processo produtivo da empresa.

O que se vê, então, é que antes do REsp 1.221.170 o núcleo de certeza sobre o conceito de insumo na legislação da contribuição ao PIS e da Cofins era menor, restrito às INs 247/02 e 404/04. Depois do REsp 1.221.170, passamos a ter um núcleo de certeza maior, circunscrito pelas ideias de essencialidade e relevância [7].

Nesse novo contexto, vemos que o Carf, com a função de um dos mais importantes intérpretes dos conceitos trazidos pela legislação federal, vem se deparando com dois tipos de discussão.

O primeiro deles diz respeito à pertinência do gasto para determinado processo produtivo, para fins de aferir sua essencialidade e relevância para a empresa tomadora do crédito. Como exemplo, temos os dispêndios com publicidade e propaganda, os quais geraram os respectivos créditos das contribuições corretamente no contexto de empresas prestadoras de serviço de marketing (cf. Acórdão nº 3401-005.29 e n. 3201-005.668). Ainda como exemplo, tem-se os gastos com comissão nas compras de café, cujos créditos de PIS/Cofins foram admitidos nos Acórdãos nº 3301-005.840 e nº 9303-007.291. Em ambas as situações, o núcleo de certeza ampliado a respeito do conceito de insumo traçado pelo STJ no REsp nº 1.221.170 foi fundamental para o desfecho dos casos.

Já o segundo tipo de discussão tem como foco o começo e o fim do processo produtivo, de acordo com a lógica traçada pelo repetitivo do STJ (essencialidade e relevância). Onde se inicia e onde termina o processo produtivo para fins de aferição da essencialidade e relevância dos gastos empresariais?

Como exemplo de caso em que a lide se instaura sobre o início do processo produtivo da empresa para fins de creditamento da contribuição ao PIS e da Cofins, tem-se as despesas aduaneiras na importação. Enquanto isso, a dúvida exsurge sobre a finalização do processo produtivo nos casos de envolvendo frete de produto acabado ou nas operações envolvendo a exportação de produtos/serviços.

Como já adiantado, neste artigo falaremos sobre as despesas aduaneiras na importação, ou seja, sobre a dúvida a respeito de neste momento já existir processo produtivo e, consequentemente, já ser possível a apropriação dos créditos em questão.

No âmbito da Receita Federal, em contexto prévio ao julgamento repetitivo pelo STJ, a Solução de Consulta nº 241-Cosit, de 19 de maio de 2017, vemos o entendimento no sentido de que, no regime de apuração não cumulativa da contribuição para o PIS, não é admitido o desconto de créditos em relação aos dispêndios com serviços aduaneiros e frete interno referente ao transporte de mercadoria importada do ponto de fronteira, porto ou aeroporto alfandegado, até o estabelecimento da pessoa jurídica no território nacional. Contudo, a própria Receita já admitia o desconto de créditos em relação aos dispêndios com armazenagem de mercadoria nacional ou importada, desde que contratada a armazenagem junto a pessoa jurídica domiciliada no Brasil e que a mercadoria seja encaminhada diretamente do armazém para o adquirente, e cumpridos os demais requisitos normativos.

Em pesquisa sobre o tema na jurisprudência do Carf com o termo "despesas aduaneiras" para o período compreendido entre 2019 e 2021, podemos encontrar julgamentos a respeito de dois grandes subtemas: 1) direito ao crédito de frete e armazenagem dos bens importados; 2) direito ao crédito de despesas com despachante aduaneiro.

Com relação ao primeiro subtema, vemos uma uniformidade nos julgamentos, seguindo o Parecer Cosit nº 05/2018, item 46 a 48, e com a mesma lógica dos créditos sobre gastos com frete de matéria prima. Numa síntese, o Carf autoriza o creditamento relativo ao frete e armazenagem dos bens importados.

Nesse sentido, destacamos o Acórdão nº 3301-006.879, quando afirma que "as despesas aduaneiras se incluem nos custos das mercadorias importadas adquiridas e utilizadas na produção ou fabricação de produtos destinados a venda". Também o Acórdão nº 3301-008.948, ao colocar que: "No transporte de insumos do ponto de entrada no território nacional até o estabelecimento da adquirente, enquadram-se na hipótese de custos de produção, pois que tais dispêndios integram o custo da produção que será finalizada no estabelecimento industrial, ou seja, integra-se tal custo no processo produtivo. Por fim o Acórdão nº 3301-008.484, segundo o qual 'os gastos logísticos essenciais e/ou relevantes à produção dão direito ao crédito. Incluem-se no contexto da produção os dispêndios logísticos com o trato alfandegário da carga. (…) pode descontar créditos calculados em relação aos gastos com transporte, armazenagem e logística dentro da zona portuária'".

Já alcançando o segundo subtema, o direito ao crédito de despesas com despachante aduaneiro, diferentemente do anterior, é controverso no Carf.

De um lado aparecem as decisões deferindo o direito ao crédito das contribuições. É o que vemos nos Acórdãos nº 3301-009.567 e nº 3301-009.565: "A Recorrente contratou perante empresas nacionais a prestação de serviços de assessoria aduaneira para o desembaraço de mercadorias por ela transportadas, sendo que o próprio transporte, inclusive internacional, é sua atividade. Tendo em conta as notas fiscais juntadas, não resta dúvida quanto ao direito de a requerente se apropriar dos créditos correspondentes aos valores pagos relativos às despesas logísticas em questão" [8]. Do Acórdão nº 3301-005.413, extrai-se a seguinte passagem: "É possível a apuração de crédito a descontar das contribuições não cumulativas sobre valores relativos a despesas com despachantes aduaneiros".

De outro lado, o mesmo crédito não foi concedido no julgamento do Acórdão nº 3402-008.178, do qual se retira a seguinte passagem: "Em verdade, os serviços de desembaraço das mercadorias importadas estão muito mais próximos às demais atividades meio do contribuinte (como contabilidade e jurídico) do que insumos da produção dos fertilizantes. Mais ainda, a utilização dos serviços sequer é imposta ao contribuinte, podendo este realizar pessoalmente o desembaraço das mercadorias importadas, o que deixa de atender inclusive o tão conhecido teste de subtração".  No mesmo sentido, foram proferidos os Acórdãos nº 3001-000.728 e 3402-007.708.

Ainda necessário destacar que existem precedente no sentido de limitar o direito ao crédito com despesas aduaneiras nas importações sob o seguinte fundamento: "Dispêndios concernentes à importação de bens só podem gerar créditos da Contribuição para o PIS/Pasep e da Cofins na forma do artigo 15, incisos I e II, e §§1º e 3º, da Lei nº 10.865/04, ou seja, quando tenham se sujeitado ao pagamento da Contribuição para o PIS/Pasep/Importação e da Cofins/Importação" (Acórdão nº 9303-008.068).

Vê-se, assim, que em face do advento do REsp nº 1.221.170, há uma forte inclinação do Carf em aceitar as despesas aduaneiras nas importações como gastos essenciais, passíveis de gerar os respectivos créditos da contribuição ao PIS e da Cofins. Contudo, esse entendimento ainda não é pacífico no que tange, por exemplo, aos dispêndios com despachantes aduaneiros, deixando em suspenso a discussão sobre o papel da Lei 10.865/04 no sentido de limitar o direito ao crédito previsto pelas Leis nº 10.637/2002 e nº 10.833/2003 e a aplicação do precedente vinculante do STJ [9]; bem como deixando dúvida sobre o que se entende por "obrigatoriedade" do gasto para fins de apropriação ao crédito das contribuições [10].

Assim, diante da enormidade de situações fáticas vivenciadas pelos contribuintes a respeito do ainda indeterminado, embora mais amplo, conceito de insumo no âmbito da contribuição ao PIS e da Cofins, as dificuldades persistem.

* Este texto não reflete a posição institucional do Carf, mas, sim, uma análise dos seus precedentes publicados no site do órgão, em estudo descritivo, de caráter informativo, promovido pelos seus colunistas.

 


[2] O tema dos conceitos jurídico indeterminados no direito tributário foi tratado em: LAURENTIIS, Thais De. Mudança de critério jurídico pela Administração Tributária: regime de controle e garantia do contribuinte. Tese de Doutorado. Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo  USP. 2022.

[3] COSTA, Regina Helena. Conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade administrativa. In Justitia, São Paulo, ano 51, v. 145, p. 37-38, jan./mar. 1989.

[4] HART, Herbert Lionel Adolphus. O conceito de direito. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 164.

[5] O tema também é muito estudado por Guastini, que lembra que os casos da zona de penumbra também são tratados como "hard cases" (GUASTINI, Riccardo. Interpretar y argumentar: Madrid: Centro de Estudios Politicos e Constitucionales, 2014. p. 69).

[6] Na legislação do Imposto de Renda, tem-se o conceito de "despesas razoáveis ou incompatíveis" ou "lucro arbitrado". Na legislação do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI), tem-se a menção de "preço corrente do produto ou seu similar, no mercado atacadista da praça do remetente" para fins de aplicação do valor tributável mínimo ou de "produto intermediário" para fins de tomada de crédito básico.

[7] O voto da ministra Regina Helena Costa destacou o que o E. Tribunal Superior considerou pelos conceitos de essencialidade ou relevância da despesa:
 Essencialidade  considera-se o item do qual dependa, intrínseca e fundamentalmente, o produto ou o serviço, constituindo elemento estrutural e inseparável do processo produtivo ou da execução do serviço, ou, quando menos, a sua falta lhes prive de qualidade, quantidade e/ou suficiência;
 Relevância  considerada como critério definidor de insumo, é identificável no item cuja finalidade, embora não indispensável à elaboração do próprio produto ou à prestação do serviço, integre o processo de produção, seja pelas singularidades de cada cadeia produtiva (verbi gratia, o papel da água na fabricação de fogos de artifício difere daquele desempenhado na agroindústria), seja por imposição legal (verbi gratia, equipamento de proteção individual EPI), distanciando-se, nessa medida, da acepção de pertinência, caracterizada, nos termos propostos, pelo emprego da aquisição na produção ou na execução do serviço.

[8] No mesmo sentido, Acórdão 3301-009.561.

[9] De observância obrigatória, de acordo com previsão regimental  artigo 62, §2º do Ricarf.

[10] Tais discussões deverão, necessariamente, tangenciar o fato de que Lei nº 10.865/04 não trata inteiramente das operações praticadas em território brasileiro, regradas pelas Leis nº 10.637/2002 e nº 10.833/2003. Ambas seriam, portanto, complementares, e não excludentes, para empresas cujo início da atividade é a importação de insumos para seu processo produtivo. Igualmente deverá ser avaliado o ponto de que o frete de matéria prima, por exemplo, também não é um gasto obrigatório das empresas, mas tem sido amplamente aceito como dispêndio que gera o direito ao crédito. Ademais, a própria Receita Federal aceita a tomada de crédito de terceirização de mão de obra empregada em atividade considerada essencial ou relevante, integrante do processo produtivo ou da prestação de serviços. (Solução de Consulta Disit/SRRF 04 nº 4009, de 08 de maio de 2020).

Autores

  • Brave

    é conselheira titular e vice-presidente da 2ª Turma Ordinária da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, árbitra no Centro Brasileiro de Mediação a Arbitragem (CBMA), doutoranda e mestre em Direito Tributário pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco (USP), este cursado conjuntamente no Institut d`Études Politiques de Paris (SciencesPo), especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributário (Ibet) e professora de Direito Tributário e Aduaneiro em cursos de pós-graduação e extensão universitária.

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