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Contribuintes: como será planejar negócios, à luz da tributação, em 2022?

Autor

  • Elidie Palma Bifano

    é mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo–FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet) do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU–IICS e advogada em São Paulo.

26 de janeiro de 2022, 11h24

A pergunta em epígrafe é pertinente, pois o tributo, sabidamente, responde pelos maiores passivos das sociedades, certamente que não menos de 40% de seu patrimônio líquido, sejam eles correntes, diferidos ou contingentes, razão pela qual para responder à provocação que dá título a este pequeno artigo, é necessário examinar os preceitos legais que tratam da tributação da atividade empresarial. Assim, a forma pela qual se executam os negócios quase sempre tem reflexos tributários de grande relevância e conhecer e planejar os correspondentes tributos é obrigação do empresário. Diga-se que o responsável pela administração de uma empresa é cobrado por seu desempenho na área tributária, tanto pelo correto e contemporâneo pagamento dos tributos, como pelo planejamento dos negócios sociais que, inevitavelmente, têm reflexos tributários.

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É certo que a cada dia a matéria tributária traz novidades, inclusive complexidades que desafiam os mais experientes administradores no momento de executar seus negócios. É certo, também, que essas novidades não decorrem apenas das alterações legislativas, mas estão afetadas pela evolução da jurisprudência, seja administrativa seja judicial. Por essa razão, planejar negócios com os olhos nos tributos é essencial para o bom sucesso empresarial. E esse, desde já se informa, é o tema que se propõe à meditação para o ano de 2022.  

O planejamento dos negócios pode ser tratado sob duas diferentes perspectivas: 1) sob os fundamentos do artigo 5° da Constituição Federal, que consagra o princípio da legalidade, ao dispor em seu inciso II que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude da lei; e 2) sob os fundamentos do artigo 170 da mesma Constituição Federal, que trata da ordem econômica, dispondo que ela deverá observar, dentre outros princípios, a função social da propriedade e a livre concorrência.         

A empresa, propriedade dos sócios, para cumprir a dita função social dispõe dos meios de produção, geradores de empregos, além de produzir riqueza que enseja tributos e possibilita o desenvolvimento social e econômico do país, contribuindo com o crescimento nacional e, também, remunerando o empresário. Sob essas premissas básicas, o sistema legal admite que o empresário livremente organize seus negócios e mais, não lhe é vedado organizar-se com o objetivo de economizar tributos, desde que tudo se faça na estrita observância da lei. Esse é um ponto essencial: ninguém opera se não conhecer as regras que orientam sua atividade, inclusive as tributárias. 

Em certos momentos da história do Brasil, o empresário é surpreendido por tentativas da mudança do cenário legal, perigosas tempestades que ameaçam a própria continuidade dos negócios, especialmente em matéria tributária, quando são propostas alterações nas normas tributárias que objetivam, apenas, arrecadar para cobrir falhas de gestão com as quais não se pode mais conviver.

Nessa esteira, o ano de 2021 surpreendeu e assustou os contribuintes no que se refere ao imposto sobre a renda das pessoas jurídicas, por conta de alteração proposta que buscava afastar tratamentos tributários de há muito incorporados ao nosso Direito. Esses foram os casos das tentativas de tributação da distribuição de dividendos e do impedimento da dedução das despesas com o pagamento/crédito dos juros calculados sobre o patrimônio líquido das entidades, JCP, ambos consolidados desde o ano de1995.

A partir da publicação do PL 2337, muitos contribuintes preocupados com esse novo ônus tributário que muito afetaria o fruto de seus negócios, buscaram soluções para dele eximir-se. Com isso, investiram tempo e dinheiro, planejando a forma pela qual poderiam, legalmente, evitar esses encargos com base no princípio constitucional da anterioridade visto que tais disposições entrariam em vigor em 2022. Felizmente, nada disso ocorreu, pois a dita reforma do imposto sobre a renda foi afastada, no Senado Federal, já no apagar das luzes do ano de 2021.

De tudo isso fica a triste experiência de que os princípios constitucionais não são suficientes, muitas vezes, para conter a sanha arrecadatória do poder público, pois observados os princípios da legalidade e da anterioridade, as regras tributárias que dão o tratamento para esses dois institutos poderiam ser alteradas, surpreendendo os contribuintes e afetando substancialmente o mercado de capitais. No caso, as autoridades que propuseram tais alterações não cogitaram da utilidade e importância das regras vigentes, prestando há 25 anos excelentes serviços à economia brasileira, decidindo por sua revogação simplesmente para atender o "caixa" do governo, bastante afetado pela crise sanitária, mas também afetado por nossos gestores públicos que insistem em não fazer a mais importante reforma no país, a reforma administrativa, assim remodelando o Estado e suas necessidades financeiras.

Entretanto, é preciso estarmos atentos no ano de 2022, pois o PL 2.337 não foi abandonado e suas péssimas proposições ainda nos ameaçam, uma vez que apenas não foi votado pelo Senado [1]. Ou seja, no que diz respeito à tributação da distribuição de dividendos e à dedutibilidade da despesa com JCP, o tema resta indefinido. Portanto, o empresário deve manter-se atualizado sobre a questão, ao longo deste ano e, desde já, organizar e planejar como deverá tratar esses temas, caso ainda prosperem.

Em matéria legislativa, ainda pendem de solução alterações constitucionais que objetivam reunir os tributos sobre o consumo, criando uma exação única sobre bens e serviços que será partilhada entre os vários entes federados [2]. As alterações contempladas nessas propostas, sem dúvida, podem afetar os negócios no seu particular, pois modificam critérios de apuração dos tributos, eliminam benefícios fiscais e, dessa forma, afetam a rentabilidade das empresas. Da mesma forma que ocorreu no PL 2337, o fantasma de possível mudança no que tange aos tributos sobre o consumo adentra o ano de 2022, pois o projeto segue sem solução nas casas legislativas, exigindo complexos exercícios para medir o fluxo necessário de recursos para que a atividade empresarial sobreviva.

É interessante observar que a inquietação causada nas empresas não reside apenas nas indefinições do Congresso Nacional quanto a ameaças de alterações na legislação, elas também podem estar vinculadas a eventuais entendimentos que o Poder Judiciário deverá trazer sobre temas muito caros aos contribuintes, cujas discussões pendem de solução no Supremo Tribunal Federal. Registramos, entre outros que serão examinados ao longo de 2022, a multa isolada de 50% sobre o valor de crédito tributário objeto de compensação não homologada pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, prevista no artigo 74, parágrafos 15 e 17, da Lei 9.430, que necessita de apenas mais um voto favorável para seu deslinde a favor dos contribuintes. Esclareça-se que a importância dessa decisão volta-se para o fato de ser corriqueiro, por parte da Receita Federal, o indeferimento da compensação de créditos tributários, inclusive reconhecidos pela Justiça, sob o argumento de que sua formação, muitas vezes, é deficiente para tanto, daí a compensação ser indeferida. O volume de recursos que serão afetados por essa decisão, qualquer que seja seu rumo, é imenso [3]. Essa questão deve ser acompanhada de perto pelos efeitos que podem gerar ainda em 2022.  

Além disso, há questões já decididas nos tribunais superiores sob revisão. É o caso do Supremo Tribunal Federal, no que diz respeito ao enquadramento da prestação de serviços como obrigação de fazer (artigo 247, Código Civil), caracterizada pela preponderância do esforço/trabalho humano e já de longa data definitivamente confirmado no  Recurso Extraordinário nº 116.121-3, ao ensejo de discussão que versava sobre uma suposta incidência do Imposto sobre Serviços (ISS) em contratos de locação de bens móveis. Na oportunidade, ficou definido que esse tipo de negócio jurídico configurava obrigação de dar e não de fazer, característica da prestação de serviços, instituto com sentido próprio, regido pelo Código Civil, cujas definições são de obrigatória observância na forma do artigo 110 do Código Tributário Nacional.

Ocorre que, mais recentemente, ao argumento de que novos negócios têm surgido, o Supremo vem acenando, em alguns casos, no sentido de que o conceito de serviço é mais amplo e pode prescindir do trabalho humano e, com isso, já foram proferidas decisões preocupantes para o mercado em geral. Nesse grupo de contribuintes afetados incluem-se aqueles que desenvolvem atividades que prescindem do trabalho humano, como os que atuam na internet, mediante o uso de softwares para tanto desenvolvidos. Na atualidade, grande parte dos negócios se faz na internet, inexistindo para sua consecução qualquer intervenção ou participação do homem. Com isso, ao iniciar o ano de 2022, há por parte desses contribuintes um grande temor de que seus negócios venham a ser considerados como prestação de serviços, o que impactaria de forma definitiva sua continuidade.  

Ainda no âmbito do Poder Judiciário, teses consagradas, como é o caso da dedutibilidade das despesas com juros sobre capital próprio, "acumulados, retroativos ou de períodos anteriores" [4], confirmada no Recurso Especial nº 1.086.752 e em mais 15 decisões monocráticas  subsequentes, correm o risco de serem alteradas, uma vez que o próprio Superior Tribunal de Justiça, em juízo de retratação, por provocação da  Fazenda Nacional, trouxe o tema para nova apreciação [5] sem qualquer melhor percepção quanto à manutenção ou não do anteriormente decidido.

Pode-se afirmar o mesmo, no que tange aos julgamentos do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, relativamente ao conceito de subvenção não gravada pelo Imposto sobre a Renda, após a Lei Complementar nº 160, que a nosso ver equiparou para fins fiscais subvenções para investimento e para custeio. Ocorre que essa determinação legal não tem interpretação pacífica entre as autoridades da Secretaria da Receita Federal do Brasil e desse tribunal (Acórdão nº 9101-005.508, de 13.7.2021, 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais). Apesar de o voto vencedor ter consignado que todos os benefícios de ICMS foram equiparados a subvenções para investimento, alguns dos conselheiros o acompanharam por suas conclusões, entendendo, por exemplo, que é necessário que o poder concedente tenha como objetivo incentivar a implantação de empreendimento, o que teria ocorrido no caso sob análise. Isso indica que, ainda em 2022, não está sedimentada nesse tribunal a tese de que a Lei Complementar nº 160 equiparou todo e qualquer incentivo de ICMS a subvenção para investimento.                 

Os tribunais administrativos adentram 2022 ainda tomando decisões baseados em princípios que não são próprios do Direito brasileiro, mas importados de sistemas jurídicos estrangeiros, como é o caso do chamado business purpose, trazido do Direito anglo-saxônico e inaplicável, a nosso ver, no contexto brasileiro, onde o que deve prevalecer é a causa jurídica dos negócios. No planejamento dos negócios  é de  extrema importância a verificação da causa jurídica do negócio, assim entendida como a função aceita pelas partes para serem atingidas as finalidades pretendidas, inclusive para fins tributários, o que os tribunais administrativos seguem ignorando.

Outro aspecto que merece a atenção dos contribuintes diz respeito às dificuldades em manter a neutralidade das práticas contábeis, os IFRS, nos balanços individuais para fins de cálculo do Imposto sobre a Renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido, especialmente nas situações em que a Secretaria da Receita Federal do Brasil fica dividida entre exigir o cumprimento das práticas contábeis ou das práticas fiscais. Esse é o caso das Soluções de Consulta Cosit nº 198/19 e nº 99012/19, que consideram como tributável o ganho de capital na alienação de investimentos quando contabilizado no patrimônio líquido, com base no artigo 31, Decreto-Lei 1598, de 26/12/1977. Ou seja, ainda que tais montantes não transitem em conta de resultado, como determinado pela contabilidade, as autoridades fiscais entendem que eles devem ser oferecidos à tributação no cálculo do lucro real, assim desprestigiando a prática contábil, mesmo quando não neutralizada pela Lei nº 12.973, de 14/5/2014.

De outro lado, e de forma totalmente contraditória com a razão de decidir das soluções de consulta anteriormente referidas, na Solução de Consulta Cosit nº 39/2010, foi desautorizado o reconhecimento de ágio na aquisição de participação societária decorrente de operação de oferta pública, sob o argumento de que a contabilidade não permite reconhecer ágio quando a entidade já tem o controle do negócio. Cotejando as duas decisões, observa-se imensa contradição nos fundamentos adotados. Esse tema é de extrema relevância e deve ser objeto de anotação para acompanhamento no ano de 2022, de vez que já há discussões judiciais sobre ele. 

Não é difícil apontar muitas outras situações similares que colocam em risco o planejamento dos negócios exigindo, inclusive, a constituição de provisões para fazer frente a eventuais passivos que possam vir a concretizar-se. Além disso, a tomada de decisões envolve a contratação de especialistas que acompanhem a evolução dos temas, tanto junto à administração tributária quanto junto aos tribunais e, inclusive, estejam preparados para tomar medidas judiciais para preservar direitos e/ou afastar riscos.

O fato é que adentramos no ano de 2022 com muitas preocupações em relação ao planejamento dos negócios, inclusive porque há mais indefinições legislativas do que seria desejável, e no que tange às decisões judiciais e/ou administrativas, tampouco são elas seguras como orientadores, pois como visto sempre pode haver um motivo para afastar seu caráter definitivo e é surpreendente, enfatize-se, em ambos os casos sempre na observância da lei.

 


[1] A consulta a https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/149730, mostra, hoje, que ele segue em tramitação.

[2] PEC 45 e PEC 110, ambas de 2019.

[3] RE 796.939 e ADI 4905.

[4] Recurso Especial  REsp. nº 1.086.752/PR, e em mais 15 decisões monocráticas. Esclareça-se que essa terminologia, utilizada pelo mercado, a nosso ver, é equivocada como já nos manifestamos em outras oportunidades.    

[5] REsp ns. 1449465/RS, 1527752/PE e 1951674/SP.

Autores

  • é advogada em São Paulo, mestra e doutora em Direito Tributário pela PUC-SP, professora no curso de mestrado profissional da Escola de Direito de São Paulo-FGV e nos cursos de especialização do Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (Ibet), do Instituto Brasileiro de Direito Tributário (IBDT) e da Escola de Direito do CEU - IICS.

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