Opinião

2021, um ano importante para acordos de solução amistosa dentro da Corte IDH

Autor

  • Ivonei Souza Trindade

    é advogado e professor de Direito Internacional dos Direitos Humanos no A PARI MUN- Instituto de Investigación y Debate en Derecho (Nuevo Chimbote Peru).

25 de janeiro de 2022, 9h11

No ano de 2021, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) lidou com dois casos envolvendo acordos de solução amistosa paradigmáticos, sendo eles o caso dos Mergulhadores Misquitos (Lemoth Morris e outros) v. Honduras e o caso Massacre da Aldeia dos Josefinos v. Guatemala. Antes da análise desses julgados, serão feitas algumas considerações prévias sobre o procedimento de acordo de solução amistosa dentro da Corte IDH.

Segundo Andrés Rousset Siri, acordo de solução amistosa é um mecanismo incidental no qual as partes decidem finalizar o litígio através de compromissos recíprocos tendentes a reparar o dano, devendo isso ter homologação de algum órgão que possa supervisionar o cumprimento [1]. Entre os artigos 48 e 50 da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), está estabelecida a possibilidade de acordos de solução amistosa na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), porém o referido tratado nada fala desse procedimento dentro da Corte IDH.

Apesar dessa ausência de previsão na CADH, o artigo 63 do regulamento da Corte IDH em vigor estabelece o acordo de solução amistosa nesse tribunal [2]. Alguns pontos que devem ser destacados sobre esse procedimento, nos termos da jurisprudência da Corte IDH e da doutrina: 1) o papel principal da Corte IDH é analisar se o acordo de solução amistosa entre as partes está em consonância com a CADH e suas diretrizes [3]; 2) a Corte IDH não participa das negociações do acordo [4]. Feitas essas considerações, passemos, então, à análise dos dois julgados.

Caso dos Mergulhadores Misquitos (Lemoth Morris e outros) v. Honduras
O caso versa sobre 42 pessoas do povo misquito vítimas da prática de mergulho para fins de pesca submarina. Esse grupo trabalhava para empresas privadas que não respeitavam diretrizes de segurança de trabalho.

Acerca desse número, a divisão das características das vítimas é: 1) 19 pessoas faleceram, sendo que 12 foram em decorrência de enfermidades da prática de mergulho sem os devidos cuidados e sete faleceram por causa da explosão de um barco; 2) desaparecimento de um adolescente de 16 anos que estava numa canoa; 3) 22 pessoas que ficaram com problemas de saúde pela prática de mergulho sem atenção às diretrizes de segurança do trabalho.

Em março de 2021, representantes das vítimas e de Honduras submeteram à Corte IDH um acordo de solução amistosa para homologação. Nesse compromisso, o Estado reconheceu sua responsabilidade por não fiscalizar adequadamente a pesca submarina no povo misquito e, entre vários pontos, se comprometeu com as seguintes obrigações: 1) medidas de reparação às vítimas; 2) projetos educativos para o povo misquito; 3) garantia de assistência jurídica ao povo misquito; 4) mudanças normativas tanto na regulação como para a fiscalização de empresas que realizem pesca submarina.

Na sentença de agosto de 2021, a Corte IDH homologou o acordo de solução de amistosa bem como complementou o que foi firmado. Na seção de mérito das violações do caso, o tribunal fez considerações em três eixos: 1) responsabilidade de empresas privadas em matéria de direitos humanos; 2) direito à vida e à integridade pessoal; 3) direito ao trabalho e seus reflexos.

A Corte IDH homologou o ponto que estabeleceu a confidencialidade dos valores das indenizações pecuniárias acordadas entre as partes [5]. O tribunal não fundamentou o motivo de respeitar esse sigilo. Observa-se que algumas vítimas chegaram a receber reparação pecuniária trabalhista antes da decisão da Corte IDH [6].

Entre as considerações adicionais da Corte IDH nesse caso, a sentença estabeleceu a obrigação de criação de uma Justiça do Trabalho em Honduras, com gratuidade de acesso para o povo bem como a aplicação de perspectiva de gênero em litígios laborais em trâmite [7].

Caso Massacre da Aldeia dos Josefinos v. Guatemala
Em abril de 1982, tanto o Exército da Guatemala como guerrilheiros rebeldes assassinaram habitantes da Aldeia dos Josefinos, localizada na cidade de Libertad. O número exato de vítimas não é certo, mas, segundo apurou a CIDH, já tinham sido identificadas 38 pessoas assassinadas até 2019 [8] e mais de 1,4 mil pessoas sobreviventes, de acordo com o anexo da sentença da Corte IDH [9].

Em 2007, representantes das vítimas e da Guatemala firmaram um acordo de solução amistosa durante o trâmite do caso dentro da CIDH, porém sem a devida homologação por esse órgão. Nesse compromisso, que teve um adendo no ano seguinte, o Estado reconheceu sua responsabilidade bem como se comprometeu a reparar as vítimas e seus familiares.

Guatemala não cumpriu o acordo de solução de amistosa na sua totalidade, de modo que, em 2012, seguiu o trâmite do caso. Dentro da CIDH, o informe de admissibilidade é de 2015, já o de mérito é do ano de 2019 [10]. O litígio irrompeu na Corte IDH em dezembro de 2019 [11]. A sentença é datada no dia 3 de novembro de 2021, com participação brasileira da Clínica de Direito Internacional Humanitário da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, na posição de amicus curiae [12].

A Corte IDH ressaltou na sua sentença que, tendo em vista que o acordo de solução amistosa não foi homologado pela CIDH, o pacto firmado e as reparações estabelecidas poderão ser analisados pelo tribunal [13]. Destaque para dois pontos que a sentença se diferenciou do acordo de solução amistosa assinado: 1) identificação total das vítimas; 2) valores da reparação às vítimas.

Mesmo com um rol de identificação de vítimas exposto no anexo à sentença, a Corte IDH entendeu que o número não é exato. Com base no regulamento do tribunal [14], a decisão determinou o prazo de 12 meses para as partes identifiquem todas as vítimas expostas no anexo da decisão. A Corte IDH afirmou que, na etapa de supervisão de cumprimento de sentença, avaliará a identificação das vítimas [15].

Apesar de a Guatemala argumentar que, no acordo de solução amistosa dentro da CIDH, as partes tinham estabelecido valores para reparação econômica às vítimas, a Corte IDH entendeu que o pactuado não era suficiente de maneira que majorou os números indenizatórios [16].

Considerações finais
Nos dois casos, a semelhança está na Corte IDH se manifestar além do firmado nos acordos de solução amistosa tal como já o fizera no caso Huilca Tecse v. Peru. É possível observar, em contrapartida, diferenças importantes da atuação do tribunal em ambos julgados.

A primeira diferença reside na origem do acordo de solução amistosa: no caso dos Mergulhadores Misquitos v. Honduras, o pacto entre as partes fora firmado durante o litígio dentro da Corte IDH; no caso Massacre da Aldeia dos Josefinos v. Guatemala, o acordo aconteceu no âmbito da CIDH, órgão esse que não homologou o pactuado.

No caso Massacre da Aldeia dos Josefinos v. Guatemala, a Corte IDH perdeu a chance de explicar os impactos no Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos de um acordo de solução amistosa não ser homologado pela CIDH. Importante lembrar que a Resolução nº 03/20 da CIDH apresentou critérios para homologação de um acordo de solução amistosa, porém não os detalhou.

A CIDH, na sua Resolução nº 03/20, também não explicou o efeito jurídico de um acordo firmado que aguarda a homologação no prazo de dois anos a contar das assinaturas. A Corte IDH, em suma, perdeu uma oportunidade de complementar as diretrizes e reflexos de acordos de solução amistosa no Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos.

O segundo ponto de divergência entre os casos está na reparação às vítimas. No caso dos Mergulhadores Misquitos v. Honduras, ao não justificar a homologação da confidencialidade dos valores indenizatórios, a Corte IDH peca com o dever de fundamentação da decisão, estabelecido no artigo 66 da CADH. Em sentido oposto, no caso Massacre da Aldeia dos Josefinos v. Guatemala, o tribunal interamericano, após analisar os direitos violados no litígio, determinou e justificou o aumento dos valores da reparação.

Uma terceira diferença está na identificação das vítimas. Enquanto no caso dos Mergulhadores Misquitos v. Honduras a identificação das pessoas é mais evidente, no caso Massacre da Aldeia dos Josefinos v. Guatemala esse aspecto não foi conclusivo a ponto de ser, excepcionalmente, passado para análise no âmbito da supervisão de sentença.

Acordo de solução amistosa está previsto tanto na Corte IDH como na CIDH, cada qual com suas características. O tribunal interamericano perdeu a oportunidade de detalhar a conexão desse instituto entre essas duas instituições, no caso Massacre da Aldeia dos Josefinos v. Guatemala. Num outro sentido, a Corte IDH avançou em complementar o acordo ao exigir a criação de um novo ramo Judiciário bem como com a determinação de novos marcos legais internos para fiscalização de empresas, no caso dos Mergulhadores Misquitos v. Honduras.

 


[1] SIRI, Andrés J.R. Protección a los Derechos Humanos: Análisis critico sobre el acuerdo de solución amistosa en el Sistema Interamericano. Buenos Aires: Editorial B de F., 2016, p. 11.

[2] Artigo 63 do Regulamento da Corte IDH, em espanhol:
"Artigo 63 – Solución Amistosa
Cuando la Comisión, las víctimas o presuntas víctimas o sus representantes, el Estado demandado y, en su caso, el Estado demandante, en um caso ante la Corte comunicarem a ésta la existencia de una solución amistosa, de un avenimiento o de outro hecho idóneo para la solución del litigio,la Corte resolverá en el momento procesal oportuno sobre su procedencia y sus efectos jurídicos".

[3] CORTE IDH. Caso Huilca Tecse v. Perú. Fondo, Reparaciones y Costas. 03 de março de 2005. Série C, n° 121, p. 15, par. 59.

[4] LAAT, Paula L.V. D. Terminación anticipada de los procesos ante la Corte Interamericana de Derechos Humanos. In: ABELLO GALVIS, Ricardo (org). Derecho Internacional Contemporáneo, Liber Amicorum en homenaje a Germán Cavelier. Bogotá: Ed. Universidad del Rosario, 2006, p. 588.  

[5] CORTE IDH. Caso de los Buzos Miskitos (Lemoth Morrisy otros) v. Honduras. 31 de agosto de 2021. Série C, nº 432. P. 47-48, par. 129.

[6] Pelo que consta, 18 vítimas tiveram reparação na esfera trabalhista. CORTE IDH. Caso de los Buzos Miskitos (Lemoth Morrisy otros) v. Honduras. 31 de agosto de 2021. Série C, nº 432. P. 14-15, par. 40.

[7] CORTE IDH. Caso de los Buzos Miskitos (Lemoth Morrisy otros) v. Honduras. 31 de agosto de 2021. Série C, nº 432. P. 55, par. 149.

[8] CORTE IDH. Masacre de la Aldea Los Josefinos. 03 de novembro de 2021. Série C, nº 442.P. 14, par. 38.

[9] CORTE IDH. Masacre de la Aldea Los Josefinos. 03 de novembro de 2021. Série C, nº 442.P. 104.

[10] CORTE IDH. Masacre de la Aldea Los Josefinos. 03 de novembro de 2021. Série C, nº 442.P. 4, par. 2.

[11] CORTE IDH. Masacre de la Aldea Los Josefinos. 03 de novembro de 2021. Série C, nº 442.P. 5, par.4.

[12] CORTE IDH. Masacre de la Aldea Los Josefinos. 03 de novembro de 2021. Série C, nº 442.P. 6, par.9.

[13] CORTE IDH. Masacre de la Aldea Los Josefinos. 03 de novembro de 2021. Série C, nº 442.P. 44, par.132.

[14] Ver Artigo 35, parágrafo segundo, do Regulamento da Corte IDH.

[15] CORTE IDH. Masacre de la Aldea Los Josefinos. 03 de novembro de 2021. Série C, nº 442.P. 45, par.138.

[16] Os valores indenizatórios estabelecidos pela Corte IDH estão entre os parágrafos 174 e 176 da sentença.

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Internacional dos Direitos Humanos no A PARI MUN- Instituto de Investigación y Debate en Derecho (Nuevo Chimbote, Peru), advogado inscrito na OAB/RS, membro associado da Société Québécoise de Droit International e autor de livros de Direito Internacional dos Direitos Humanos e Direito Internacional do Patrimônio Cultural.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!