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Constitucionalização do cinismo fiscal: PEC para falsear preços sensíveis

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25 de janeiro de 2022, 8h00

Duas emendas constitucionais decorrentes da PEC dos Precatórios (PEC 23/2021) foram promulgadas há pouco mais de um mês em matéria fiscal. As Emendas 113 e 114, de 8 e 16 de dezembro de 2021, respectivamente, abriram espaço no teto dado pela Emenda 95/2016 para, em tese, atender ao Auxílio Brasil, mas também para satisfazer outras demandas neste ano de eleições nacionais e estaduais.

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Todavia mal iniciamos 2022 e já somos informados acerca de uma possível nova PEC, para supostamente contornar a necessidade de medida compensatória, caso seja inibida a arrecadação de tributos federais incidentes sobre combustíveis e energia elétrica (PIS/Cofins). A intenção seria indiretamente reduzir os preços desses itens tão sensíveis para a economia de forma transitória.

Segundo noticiado pela Folha:

"O governo Jair Bolsonaro (PL) prepara uma PEC (proposta de emenda à Constituição) para autorizar a redução temporária de tributos sobre combustíveis e energia elétrica, uma tentativa de dar alívio ao bolso dos consumidores em ano eleitoral.
A escolha da PEC como instrumento é uma maneira de passar por cima das restrições impostas pela LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal), que exige nesses casos a elevação de outro tributo para compensar a perda de arrecadação.
'Temos uma proposta de emenda à Constituição que está sendo negociada para que nós possamos ter a possibilidade de zerarmos os impostos dos combustíveis, o PIS/Cofins. É uma possibilidade de se conseguir isso aí para dar um alívio', disse Bolsonaro nesta quinta-feira (20) durante sua live semanal. O presidente está em viagem oficial ao Suriname.
Caso o governo zere alíquotas de PIS/Cofins sobre gasolina, diesel e etanol, o impacto na arrecadação será da ordem de R$ 50 bilhões ao ano, segundo fontes do governo informaram à Folha.
Sob as regras atuais, o governo teria de elevar outros tributos para compensar a perda de receitas.
(…) Interlocutores afirmam que o ministro da Economia, Paulo Guedes, não se opõe à redução dos tributos sobre combustíveis. A justificativa é que a arrecadação tem apresentado aumento real, abrindo espaço para a medida sem comprometer o alcance da meta fiscal, que permite rombo de até R$ 170,5 bilhões.
(…) O aumento do preço dos combustíveis tem incomodado o presidente, sobretudo no ano em que ele pretende buscar a reeleição. A política da Petrobras, por sua vez, acompanha a dinâmica de mercado, refletindo o aumento dos preços do petróleo e do dólar.
(…) Ainda que a redução de tributos resulte em centavos a menos pagos pelo consumidor, nada impede que o alívio seja consumido por posteriores reajustes de preços.
Além disso, a avaliação é que uma proposta nesse sentido pode fragilizar ainda mais a credibilidade de regras fiscais, depois de o presidente ter atropelado a equipe econômica e decidido por mudar o teto de gastos.
A alteração no teto, já promulgada pelo Congresso Nacional, abriu caminho ao pagamento do Auxílio Brasil de ao menos R$ 400, como queria Bolsonaro.
(…) Abrir mão de receitas também pode agravar o quadro das contas públicas, que continuam no vermelho".

Sobre tais rumores, antes de mais nada, é preciso alertar que redução generalizada e isonômica de tributo não pode ser considerada renúncia de receita, nos moldes do artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Desse modo, a solução aviada seria desnecessária.

Caso a intenção seja, de fato, estabelecer redução discriminada de tributos para tentar impactar os preços dos combustíveis e da energia elétrica, ao longo deste ano eleitoral, em favor de determinados contribuintes (1), soa excessivo e desarrazoado o manejo de PEC para tal desiderato. Afinal, para suplantar exigência inscrita em lei complementar basta uma norma de semelhante estatura.

Por outro lado, a demanda por suavização na oscilação abrupta de preços de insumos energéticos requer enfrentamento estrutural das suas causas, algo que não será atingido com uma redução provisória de tributos federais sobre combustíveis fósseis e energia elétrica.

O caráter contingente da aparente escolha por uma PEC, a bem da verdade, esconde mal estar estrutural nas finanças públicas brasileiras, qual seja, a acomodação do descumprimento e/ou falseamento das nossas regras fiscais no texto da Constituição e, sobretudo, no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias.

Em 2016, cheguei a denunciar essa constitucionalização fiscal via ADCT como uma espécie de "Retrato de Dorian Gray". Parafraseando a célebre obra de Oscar Wilde, analisei como o cinismo fiscal brasileiro tem sido constitucionalizado de forma cada vez mais recorrente, o que desnuda sua desfaçatez na imagem rasgada do teto e dos seus congêneres instrumentos de austeridade seletiva.

Desde a Emenda 86/2015, que trouxe as emendas parlamentares individuais impositivas, foram 15 reformas constitucionais em matéria estritamente fiscal, ou seja, praticamente uma por semestre. A Constituição tem sido tratada como uma espécie de LDO com quórum qualificado.

Tal escalada se explica pelos fatos de que, desde 2014, o setor público tem registrado resultados primários negativos e, em 2016, houve impedimento presidencial em função de julgamento de crime de responsabilidade na seara orçamentário-financeira.

A defesa de ajuste fiscal, contudo, não é equitativa. Enquanto a tese de que vivemos uma trajetória de endividamento público insustentável é contraposta a toda e qualquer despesa primária que ampara o custeio dos direitos fundamentais, o mesmo não se sucede em relação às hipóteses em que o poder público inibe ou abdica de arrecadar tudo quanto o ordenamento lhe autoriza.

Ora, é, no mínimo, contraditório propor redução de tributos para impactar  de forma precária e sabidamente instável  o preço dos combustíveis e da energia elétrica neste ano, ao custo estimado de R$ 50 bilhões; quando foram vetados o artigo 21 e o artigo 42 da Lei 14.284, de 29 de dezembro de 2021, que previam, respectivamente, o fim da fila de espera do auxílio aos vulneráveis no âmbito do programa Auxílio Brasil e metas para redução da taxa de pobreza e de extrema pobreza nos próximos três anos.

Precisamos revisitar as regras fiscais brasileiras de forma íntegra e coerente, o que passa, entre outras dimensões, pela definição de parâmetros consistentes para fixar o que seja sustentabilidade da dívida pública, em consonância com o inciso VIII do artigo 163 e com o artigo 164-A, introduzidos pela Emenda 109/2021. Não basta fixar limites lineares de contenção das despesas primárias enquanto não se arrecadar efetivamente tudo quanto se pode (artigo 11 da LRF) e se não há qualquer baliza que direcione o regime jurídico das despesas financeiras.

A maior lacuna normativa no ordenamento financeiro do nosso país reside na falta de regulamentação dos limites de dívida mobiliária e consolidada da União. José Roberto Afonso, Lais Khaled Porto e esta colunista defendemos, desde 2017, que aqui se verifica uma hipótese de omissão inconstitucional em face, respectivamente, do artigo 48, XIV, e do artigo 52, VI, da CF/1988. Não deixa de ser sintomático, por sinal, que, neste início de 2022, os ex-secretários do Ministério da Economia Bruno Funchal e Jeferson Bittencourt também tenham suscitado a necessidade de limite para a dívida pública brasileira.

Mais cedo ou mais tarde, a omissão na regulamentação do regime jurídico da dívida pública, assim como todas essas emendas constitucionais contingentes em matéria fiscal tendem a ser submetidas à apreciação do Supremo Tribunal Federal. Infelizmente, porém, ali não haverá equalização adequada, até porque precisamos rever o emaranhado de regras fiscais descumpridas e burladas em sua finalidade estrutural por meio de novas regras que operam como remendos de curtíssimo fôlego.

A insegurança jurídica daí decorrente contamina as expectativas dos agentes econômicos e também causa mal-estar social. O voluntarismo fiscal sedimentado em emendas constitucionais praticamente semestrais é extremamente danoso para nosso ordenamento pátrio, porque ele próprio deixa de ser crível e exigível como um sistema íntegro e coerente.

Especificamente em relação a essa possível nova PEC para reduzir tributos federais incidentes sobre combustíveis e energia elétrica neste 2022, a afronta é, sobretudo, teleológica: é desarrazoado inibir a arrecadação para falsear preços sensíveis em ano eleitoral quando precisamos custear a atividade estatal de modo equitativo e ambientalmente sustentável.

Enfim, fazer PEC para burlar a finalidade da noção de responsabilidade fiscal é uma dupla erosão normativa: corrói a força normativa da Constituição, por banalizar suas reformas; bem como implode a noção de equilíbrio intertemporal das contas públicas, cujo alcance, aliás, pressupõe que sejam equalizadas todas as receitas e despesas governamentais em prol da máxima eficácia dos direitos fundamentais.

 


(1) Vale lembrar, a título de exemplo, a demanda dos caminhoneiros por algum tipo de equalização dos preços do diesel, como se pode ler em https://valor.globo.com/politica/noticia/2021/10/22/bolsonaro-quer-criar-auxilio-diesel-de-r-400-para-apaziguar-caminhoneiros.ghtml.

Autores

  • é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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