Diário de Classe

Considerações sobre a subjetividade (n)do dolo

Autor

  • Marcelo Augusto Rodrigues de Lemos

    é advogado criminalista doutorando em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) mestre em Ciências Criminais pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e professor.

22 de janeiro de 2022, 8h00

A imputação subjetiva, em Direito Penal, é um dos solos mais complexos da tipicidade, fundamentalmente a discussão acerca do conceito de dolo como elemento psicológico-descritivo (com o duplo tratamento psíquico — vontade e conhecimento). As breves linhas que se sucedem não possuem o intuito de lançar um ponto final sobre o tema e, tampouco, defender teorias normativistas, mas, sim, apresentá-las como ponto de partida para a construção de um conceito de dolo dissociado do paradigma da subjetividade. O objetivo é, também, debruçar-se sobre o problema a partir da teoria do direito e dos pressupostos teóricos que fundam a crítica hermenêutica do Direito.

A dogmática penal, de há muito, compreende o dolo como expressão da vontade e do conhecimento em relação ao tipo objetivo. Em regra, tem carga psicológica. Ou seja, para identificar a imputação subjetiva em crimes dolosos, o intérprete deverá fazer um exercício que lhe possibilite descobrir o que se passava na cabeça do agente quando da prática do crime. Evidentemente que se trata de algo inatingível. Na prática, a aferição do dolo ficará ao critério de um sujeito cognoscente e de sua discricionariedade — principal característica do positivismo jurídico e um dos polos do paradigma da subjetividade da modernidade [1].

Na codificação processual penal brasileira, o dolo encontra-se inserido no artigo 18, inciso I, do CPP e refere que o crime é doloso quando o agente quis ou assumiu o risco de produzir o resultado. Como referido alhures, portanto, em terrae brasilis dolo é expressão da vontade e do conhecimento do agente no que toca ao tipo objetivo. Ao revés, no espectro da imputação subjetiva, a culpa assume contornos normativos (imprudência, negligência e imperícia). Daí porque se refere que o dolo é psicológico e a culpa normativa. É no interior da problemática do dolo que se assentam os principais questionamentos sobre o elemento volitivo a partir de um marco estrutural teórico do Direito: é possível na atual quadra da história — em face do giro-ontológico linguístico que enterrou o sujeito solipsista da modernidade — fundar um critério de imputação subjetiva na impossível tarefa de captar a psique do agente? De outro lado, no plano da interpretação, como um sujeito poderá aferir qual era o animus do agente no ato da realização do tipo? Definitivamente, tentar encampar a interpretação judicial do dolo na vontade do indivíduo acaba por permitir com que o juiz diga qualquer coisa sobre qualquer coisa, na medida em que a concepção dogmática de dolo possui alto grau de subjetividade. O dolo, nesses moldes, reforça a discricionariedade do intérprete, a qual, no interior de um Estado democrático de Direito, equivale à arbitrariedade [2].

Parte-se, a par dessas constatações, de que o dolo está fundado no paradigma da subjetividade assujeitadora oriunda da filosofia da consciência e — no campo jurídico — reforçado pela discricionariedade quando do momento da realização da interpretação judicial. Tem-se essa concepção porque a compreensão dogmática de dolo como expressão da vontade e do conhecimento resulta em um marco inatingível para o intérprete. Importa dizer, assim, que nas duas pontas há problemas: na estruturação dogmática e legal do conceito de dolo, bem como na interpretação de crimes dolosos. Ou seja, o dolo — como estruturalmente concebido — assenta-se sobre o paradigma da subjetividade e, no plano da decisão judicial, conclama a discricionariedade.

Para construir, portanto, um conceito de dolo que esteja dissociado da subjetividade moderna, é preciso revolver o chão linguístico em que estão assentadas as suas bases, de modo a inserir o debate no interior do giro ontológico-linguístico. É preciso, destarte, proceder com um diálogo interdisciplinar com as teorias hermenêuticas, de modo a compreender que a modernidade se foi e que no horizonte não há mais como se interpretar as coisas sem considerar a linguagem pública, a historicidade, a tradição e o círculo hermenêutico [3].

Sob o ponto de vista doutrinário, alguns autores têm se debruçado sobre esse tema, como Eduardo Viana, a partir de uma intelecção normativista (recusando, por consequência, a vontade como elemento do dolo). A negação ao conceito dogmático de dolo como expressão da vontade e do conhecimento do agente pode ser destacado na imprecisão havida na distinção entre dolo eventual e culpa consciente. O primeiro representa o conhecimento do agente no tocante à probabilidade do resultado, dotado, porém, de um elemento anímico de indiferença para com este; o segundo se destaca pelo conhecimento em relação à possibilidade do resultado, contudo o agente não considera o desfecho delitivo como possível. Ou seja, a diferença entre ambos — que, por exemplo, em um delito de homicídio representa uma discrepância de mais de dez anos nas penas — reside na subjetividade do agente. Daí porque se demonstra o quão problemático pode ser a questão da imputação subjetiva fundada em elementos psicológicos em casos limítrofes ou hard cases.

Objetivamente, Viana pontua que é possível fazer a transição do dolo baseado na vontade para o fundado no conhecimento a partir de critérios produzidos pela dogmática e pela jurisprudência. O dolo deve ser visto, a priori, como o compromisso cognitivo do autor para com a realização do perigo representado. É preciso haver certa uniformidade nesse aspecto. Os pontos de partida são: a) o perigo deve ser o objeto de representação do dolo; b) o perigo deve ser de determinada qualidade; e c) a qualidade será determinada à base da presença ou não de critérios de precisão. Viana assume expressamente a teoria de Puppe — dolo como criação de um perigo adequado para a realização do resultado —, porém, propõe preencher alguns espaços de imprecisão de tal teoria. Em suma, "o perigo doloso deve ser objetivamente valorado por um sensato observador externo o qual à luz de determinados critérios, esteja em condições de inferir o dolo e afirmar que o agente que firmou um compromisso cognitivo com o perigo" [4]. Para avançar na argumentação em relação ao ponto antecedente, Viana trabalha com o que denomina de teoria inferencialista do dolo. Quer dizer, a imputação subjetiva da conduta — a título de dolo — depende de um juízo de inferência em relação ao perigo criado. Em princípio, entre a conduta e o complexo de circunstâncias que envolvem o tipo penal deve haver um vínculo relacional. A tese do inferencialismo, nas palavras do autor, "nada mais é que do que um método utilizado para isolar circunstâncias penalmente relevantes as quais, por meio de sua articulação, permitam, ou não, a atribuição de responsabilidade penal" [5].

Essa discussão, por certo, é altamente relevante e hodierna. E ela se manifesta, por exemplo, na hipótese do recebimento de honorários advocatícios maculados, fundamentalmente pela intelecção do artigo 2º, inciso I, da Lei nº 9.613/98. A imprecisão de um conceito legal de dolo — que, na práxis conforma a discricionariedade judicial — acaba por gerar decisões inautênticas, admitindo-se, por exemplo, dolo eventual no exemplo dos honorários maculados, a despeito de existirem princípios — como o direito de defesa e o da confiança — que não autorizam o intérprete a decidir pela criminalização de tal ação.

O problema, portanto, está bem assentado. Do jeito que se desenvolve a concepção do dolo hoje na dogmática é, por certo, duvidoso e não lida bem com casos limítrofes — como na distinção entre dolo eventual e culpa consciente, um dos maiores sintomas do problema que circunda a concepção de dolo psicológico. As teorias normativistas, nesse cenário, pretendem se desvincular da subjetividade e tentar superar a discussão que atravessa décadas: como construir um conceito de dolo que evite arbitrariedade e afaste decisões discricionárias.

 


[1] Ver verbete Positivismo: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020.

[2] Ver verbete Discricionariedade: STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020

[3] Na precisa lição de Lenio Streck: "Círculo hermenêutico quer dizer que sempre ingressamos em um 'processo' de compreensão com algo antecipado. Heidegger explica: quando olho para um canto e vejo um fuzil, é porque, de forma antecipada eu já sabia o que era uma arma. Círculo hermenêutico é condição de possibilidade para a compreensão. Se falo de uma inconstitucionalidade é porque antes já sei o que é uma Constituição, Direito constitucional, jurisdição constitucional etc". STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: cinquenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do Direito. Belo Horizonte (MG): Letramento: Casa do Direito, 2020, p. 40.

[4] VIANA, Eduardo. Dolo como compromisso cognitivo. 1 ed. — São Paulo: Marcial Pons, 2017, p. 256.

[5] Ibidem, p. 259.

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