Opinião

O vínculo de emprego no trabalho em aplicativos e o caso dos portuários

Autor

  • Renato Melquíades de Araújo

    é advogado mestre em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco mestre em Relações Industriais e Empregatícias pela Università di Torino e especialista em Direito e Processo do Trabalho pelo Mackenzie-SP.

21 de janeiro de 2022, 19h19

No fim do ano passado, a notícia de que a 3ª Turma do TST havia formado maioria a favor da tese do vínculo de emprego no trabalho em aplicativos pegou a todos de surpresa. No caso em análise, dois dos três ministros julgadores afirmaram que deve ser reconhecido o vínculo entre motoristas e aplicativos de transporte, em julgamento que foi suspenso por pedido de vistas do terceiro magistrado.

Contudo, seria o reconhecimento do vínculo de emprego, nos tradicionais moldes estabelecidos pela CLT — trabalho pessoal, subordinado, não eventual, mediante remuneração, por conta e risco do empregador —, a melhor solução para o problema da precariedade no trabalho por meio de aplicativos?

Data venia o entendimento majoritário alcançado pelos ministros do TST, a resposta é não. A relação mantida entre os trabalhadores e as empresas de aplicativos não se enquadra dentro do conceito tradicional de trabalho subordinado e não eventual, possuindo traços distintivos que dificultam a acomodação dessa nova realidade aos contornos celetistas enrijecidos.

De fato, uma das consequências mais elementares do emprego é a submissão do trabalhador ao poder diretivo do empregador, ou seja, à direção e ao controle de suas atividades.

E um dos aspectos mais básicos do poder diretivo diz respeito à faculdade que o empregador tem de, com base no seu juízo de necessidade, organizar o sistema de trabalho do seu empregado de acordo com os seus próprios interesses [1].

Ou seja, no contrato de emprego celetista, no qual o trabalhador é submetido ao poder de controle do empregador, este diz onde, como e quando aquele vai trabalhar.

Isso não ocorre com o trabalhador de aplicativos, que tem a liberdade: 1) de se conectar no horário e pelo tempo que desejar; 2) de escolher a região de sua prestação de serviços; 3) de trabalhar, simultaneamente, por meio de diversas empresas de aplicativos concorrentes, entre outras particularidades que distinguem esta realidade do vínculo de emprego previsto na CLT.

Também se mostram inaplicáveis as novas disposições relativas ao trabalho intermitente, trazidas pela reforma trabalhista (Lei nº 13.467, de 13 de julho de 2017), como já decidido pelo Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região (TRT-3) [2].

Conhecido como zero-hour contract, ou seja, "contrato zero-hora" (empregador inicia o mês devendo zero, pagando apenas as horas que requisitar), considera-se intermitente o contrato de trabalho no qual a prestação de serviços não seja contínua, ocorrendo com alternância de períodos de prestação de serviços e de inatividade [3].

Ocorre que, nessa modalidade, é o empregador quem convoca o trabalhador para a prestação de serviços, informando qual será a jornada, tendo o empregado o prazo de um dia útil para responder ao chamado, presumindo-se, no silêncio, a recusa.

O trabalho intermitente requer, portanto, uma realidade incompatível com as características do trabalho realizado por meio de aplicativos, visto que, nesse caso, é o trabalhador quem escolhe a jornada, o turno e o local da sua prestação de serviços, e não a empresa detentora da plataforma digital.

Apesar da dificuldade de enquadrar as suas características nos contornos celetistas de trabalho regulado, o desafio de conferir dignidade no trabalho e eficácia dos direitos fundamentais aos trabalhadores de aplicativos não é um problema insolúvel.

Pelo contrário, não só se trata de um mandamento constitucional [4], como a legislação brasileira possui regras mais apropriadas à regulamentação do trabalho em aplicativos que as normas da CLT.

Tratam-se da Lei nº 9.719, de 27 de novembro de 1998, e da Lei nº 12.815, de 5 de junho de 2013, que regulamentam, em conjunto, o trabalho portuário avulso.

Há, sem dúvidas, muitas semelhanças entre a realidade dos trabalhadores portuários avulsos e a dos trabalhadores em aplicativos.

Historicamente, os trabalhadores portuários avulsos não possuem vínculo de emprego com os seus contratantes, tal qual os trabalhadores em aplicativos, tendo sua relação estabelecida com o chamado órgão gestor de mão de obra (Ogmo), responsável por administrar o fornecimento da mão de obra na área do porto público.

Assim, o trabalhador portuário avulso é vinculado ao Ogmo e se coloca, diariamente e de forma autônoma, a depender do seu interesse e da sua disponibilidade, à disposição dos donos das cargas e dos operadores portuários para trabalhar, mediante sorteio, nos postos de trabalho das operações do porto, que variam, por sua vez, em duração e valor.

Outra semelhança é que, da mesma forma que os trabalhadores de aplicativos têm a sua remuneração paga pelos clientes das plataformas, o operador portuário (contratante e tomador dos serviços) é o responsável pela remuneração do trabalhador portuário avulso, cabendo somente ao Ogmo — como aos aplicativos — a arrecadação e o repasse dos valores devidos.

Além disso, o Ogmo é responsável, tal como as empresas de aplicativo são (ou deveriam ser), por: 1) manter o cadastro e o registro do trabalhador portuário avulso; 2) treinar e habilitar o trabalhador portuário; 3) zelar pelas normas de saúde, higiene e segurança no trabalho.

A principal diferença é que, ao término da jornada diária de trabalho, o trabalhador portuário avulso recebe, além dos valores pelos serviços, os percentuais relativos ao décimo terceiro salário, às férias anuais, ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), além de serem recolhidos os encargos fiscais e previdenciários, tudo calculado proporcionalmente à jornada de trabalho.

Já as empresas detentoras dos aplicativos e os seus clientes, apesar de os trabalhadores em aplicativos serem segurados obrigatórios da Previdência Social [5], não possuem qualquer obrigação de recolher as contribuições previdenciárias, além de não realizarem qualquer pagamento dos direitos fundamentais trabalhistas.

A aplicação das regras do trabalho portuário aos trabalhadores de plataformas digitais seria um modo simples, rápido e eficaz de retirá-los desse verdadeiro "estado de coisas inconstitucional" (ECI).

Esse conceito já foi aplicado pelo Supremo Tribunal Federal [6] para reconhecer a inconstitucionalidade de um quadro de violação generalizada de direitos fundamentais, causado pela inércia das autoridades públicas, como tem sido o caso do trabalho em aplicativos.

É preciso reconhecer, portanto, que a atual precariedade nas condições de trabalho dos trabalhadores em aplicativos viola os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal [7]. E que a efetividade de tais direitos não está condicionada à situação de "empregado", mas à existência da figura de um "trabalhador", o que, sem dúvidas, os entregadores e motoristas de aplicativos são.

Além disso, tratando-se de direitos fundamentais, a própria Constituição determina que sejam obedecidos de imediato, independentemente de regulamentação em lei federal [8]. Contudo, é preciso que a solução jurídica seja adequada, o que não ocorre com o vínculo de emprego tradicional, nem com o trabalho intermitente.

Assim, com base na analogia, na equidade e nos princípios e normas gerais do Direito do Trabalho [9], diante da incapacidade do Congresso Nacional de editar leis e conferir validade aos direitos fundamentais previstos na Constituição, faria bem a Justiça do Trabalho em equiparar os trabalhadores de aplicativos aos trabalhadores portuários avulsos, ante a similitude das condições de vida e trabalho, assegurando-lhes acesso aos direitos trabalhistas mínimos.

É importante destacar, por fim, que a Constituição assegura, no inciso XXXIV de seu mencionado artigo 7º, como direito fundamental dos trabalhadores, a igualdade de direitos entre o trabalhador com vínculo empregatício permanente e o trabalhador avulso, de modo que, além de mais adequado à realidade dos aplicativos, o enquadramento como trabalhadores avulsos não significaria a perda de nenhum direito.

Como consequência prática, caberia às plataformas digitais realizar uma cobrança adicional de seus clientes, além dos valores correspondentes aos serviços prestados, a título de 13º, descanso anual, FGTS e recolhimento dos encargos fiscais e previdenciários, tudo proporcional ao valor pago pela entrega ou pela corrida, em benefício dos trabalhadores dos aplicativos, assegurando-lhes, com isso, a plena eficácia dos seus direitos fundamentais do trabalho.

 


[1] TST – RR: 591520115150113, relator: Márcio Eurico Vitral Amaro, data de julgamento: 22/2/2017, 8ª Turma, Data de Publicação: DEJT 3/3/2017.

[3] Artigo 443, parágrafo 3º, da CLT.

[4] Artigo 1º, inciso IV, da Constituição Federal.

[5] Conforme Decreto nº 10.410, de 30 de junho de 2.020, que altera o Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto nº 3.048, de 6 de maio de 1999.

[6] STF – ADPF nº 347/DF – Rel. min. Marco Aurélio, DJ 9/9/2015.

[7] "Artigo 7º, CF/88 – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: (…)".

[8] "Artigo 5º – (…) §1º. As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata".

[9] "Artigo 8º, CLT – As autoridades administrativas e a Justiça do Trabalho, na falta de disposições legais ou contratuais, decidirão, conforme o caso, pela jurisprudência, por analogia, por equidade e outros princípios e normas gerais de direito, principalmente do direito do trabalho, e, ainda, de acordo com os usos e costumes, o direito comparado, mas sempre de maneira que nenhum interesse de classe ou particular prevaleça sobre o interesse público".

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