Opinião

A inconstitucionalidade formal das leis estaduais sobre o novo Difal

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20 de janeiro de 2022, 9h16

Tem sido agitado o início de janeiro deste ano de 2022 pelas constantes liminares concedidas por juízes de primeira instância para suspender a exigibilidade do Difal-ICMS nas operações interestaduais em que o destinatário não é contribuinte do tributo estadual.

Como se sabe, a EC nº 87/2015 alterou a redação do inciso VII do §2º do artigo 155 da Constituição, passando a permitir a tributação pelo estado de destino mediante aplicação do diferencial de alíquotas, a operação interestadual de circulação de mercadorias.

Também é sabido que essa norma inicialmente foi regulada pelo Convênio nº 93/2015 do Confaz, e que foi declarada inconstitucional pelo STF no julgamento da ADI nº 5.464 e RE nº 1.287.019, pois entendeu a corte que as alterações constitucionais demandam regulação por lei complementar, mas os efeitos da decisão seriam protraídos para o exercício de 2022.

Diante disso, os estados passaram a editar as competentes leis locais, ainda no ano de 2021 [1], para instituir a cobrança do Difal-ICMS. Entretanto, a Lei Complementar nº 190/2022, que foi editada para suprir a lacuna normativa apontada pelo STF, foi publicada somente no último dia 5, o que vem lastreando decisões liminares de suspensão da exigibilidade, por ofensa ao artigo 150, III, "b" e "c", da Constituição.

Apesar de as decisões seguirem no mesmo sentido, o argumento da anterioridade não se mostra adequado. É que, como dito, as leis estaduais foram publicadas ainda no ano de 2021, cumprindo a exigência do texto constitucional das alíneas "b" e "c" quando expressam "publicada a lei que os instituiu ou aumentou". Não foi a LC nº 190/2022 que instituiu o Difal, portanto, não é sobre ela que versa a anterioridade ou a anterioridade nonagesimal.

Ademais, a lei complementar, ao versar sobre os diversos aspectos do ICMS, insere verdadeiras normas de estrutura. Se os princípios da anterioridade e anterioridade nonagesimal visam a proteger o contribuinte de surpresas na instituição ou aumento do tributo, certamente não sujeitam as normas de estrutura, pois estas não obrigam o contribuinte, mas, no caso, o legislador tributário ordinário (federal, estadual ou municipal). Ao contribuinte interessa que as leis que instituírem ou aumentarem tributos estejam em conformidade com as respectivas normas de estrutura, mas não que tenha de conhecê-las (as normas de estrutura inseridas por lei complementar) com certa antecedência para não ser surpreendido.

O ponto é que as leis estaduais foram editadas sem lei complementar prévia, como exigido pelo Supremo Tribunal Federal. Isso, a bem da verdade, representa invasão de competência do legislador complementar pelos legisladores estaduais. Como não havia lei nacional estabelecendo os limites do ICMS-Difal, nenhuma lei estadual poderia instituí-lo.

Essa questão remonta à ampliação da base de cálculo da Cofins pela Lei nº 9.718/1998, das receitas operacionais (faturamento) para todas as receitas da empresa. Naquele caso, a Emenda Constitucional nº 20/1998, que alterou a redação do inciso I do artigo 195 da Constituição, deveria ter precedido a lei ordinária. Como foi publicada posteriormente, questionou-se se a emenda promoveu "constitucionalidade superveniente" ou se a lei teria sido "natimorta", inconstitucional desde sua publicação. A matéria foi apreciada pelo STF no RE nº 346.084 [2], afastando a tese da constitucionalização superveniente, eis que inexistente no Direito brasileiro.

Interessa a este assunto o seguinte trecho do voto do ministro Celso de Mello:

"Não custa assinalar, neste ponto, que traduz situação de inconstitucionalidade a edição, pelo Estado, de lei ordinária quanto esta é editada para regular matéria posta sob reserva constitucional de lei complementar, como sucede com o Código Tributário Nacional, cujo artigo 110  ao veicular norma de caráter geral  conforma-se ao que dispõe o artigo 146, III da Constituição da República.
Cabe referir, neste ponto, por oportuno, que a lei ordinária  que incursiona em domínio normativo constitucionalmente reservado à lei complementar — incide, por efeito de direta transgressão ao que prescreve a própria Constituição da República, em situação de evidente inconstitucionalidade, como reconhece o magistério da doutrina (GERALDO ATALIBA, 'Lei complementar na Constituição', p. 30, 1971, RT; JÓSÉ SOUTO MAIOR BORGES, 'Lei Complementar Tributária', p. 34/35, 1975, RT/EDUC; CELSO BASTOS, 'Lei Complementar', p. 16/17, 1985, Saraiva, verbi gratia).
Esse entendimento reflete-se, por igual, na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, cuja orientação, no tema, adverte que infringe a Constituição, ofendendo-a de modo frontal, a lei ordinária  ou qualquer outro ato de menor hierarquia normativa  que disponha sobre matéria própria de lei complementar (RTJ 105/909  RTJ 154/810-811  RTJ 163/543-544  RTJ 163/942-943  RTJ 166/917-918  RTJ 171/753-754  RTJ 179/114-115).
Veja-se, portanto, qualquer que seja o ângulo sob o qual se analise a controvérsia, que o diploma legislativo em causa reveste-se de inconstitucionalidade, especialmente se examinado o texto da Lei nº 9.718/98 à luz da redação primitiva do artigo 195, I, da Constituição da República (anterior, portanto, ao advento da EC 20/98), tal como por mim precedentemente assinalado neste voto, e igualmente enfatizado, com absoluta correção, nos doutos votos proferidos pelos eminentes ministros Cezar Peluso, Marco Aurélio e Carlos Velloso.
Cabe registrar, de outro lado, senhora presidente, considerada a modificação introduzida no conteúdo primitivo do artigo 195, I, da Constituição, que não se revela aceitável nem acolhível, para os fins postulados pela União Federal, o reconhecimento de que a EC 20/98 poderia revestir-se de eficácia convalidante, pois  como ninguém ignora  as normas legais que se mostram originariamente inconciliáveis com a Lei Fundamental não se convalidam pelo fato de emenda à Constituição, promulgada em momento posterior, havê-las tornado compatíveis com o texto da Carta Política.
Se o Poder Público quiser proceder de acordo com o teor de superveniente emenda à Constituição, deverá produzir nova legislação compatível com o conteúdo resultante do processo de reforma constitucional, não se viabilizando, em consequência, a convalidação de diploma legislativo originalmente inconstitucional.
Cumpre advertir, por isso mesmo, que a superveniência de emenda à Constituição, derivada do exercício, pelo Congresso Nacional, do poder de reforma, não tem o condão de validar a legislação comum anterior, até então incompatível com o modelo positivado no texto da Carta Política".

Destaca-se o curto trecho por amor à brevidade [3]. O que se pode aproveitar aqui é que, se o Supremo Tribunal Federal reconheceu a demanda por lei complementar para regulamentar no novo Difal-ICMS, declarando a inconstitucionalidade do Convênio nº 93/2015 por ofensa ao artigo 146, I, e ao artigo 155, §2º, XII, não poderia a lei estadual, sem ser precedida da lei complementar, regular o Difal-ICMS justamente por invadir a competência do legislador complementar.

Então tem-se vício formal que torna as leis estaduais produzidas antes da LC nº 190/2022 inconstitucionais, de modo que não impediriam a cobrança do Difal apenas em 2022, mas também nos anos seguintes se não houver novas leis estaduais tratando do tema ainda neste ano. Com isso, demonstra-se que, muito embora a publicação tardia da LC nº 190/2022 não respalde o argumento da ofensa à anterioridade, impôs derrota às leis estaduais recentes, haja vista que são anteriores à lei nacional, o que as fez versar sobre matéria reservada ao Congresso Nacional.

 


[1] Lei nº 20.949/2021  PR, Lei nº 17.470/2021  SP, Lei nº 1.608/2021  RR, Lei nº 8.944/2021, Lei nº 17.625  PE, Lei nº 7.706/2021 — PI, MP nº 29/2021  TO, Extra oficial  CE, Lei nº 14.415/2021  BA, Decreto nº 48.343/2021 — MG, Extra Oficial  RN.

[2] "CONSTITUCIONALIDADE SUPERVENIENTE  ARTIGO 3º, §1º, DA LEI Nº 9.718, DE 27 DE NOVEMBRO DE 1998  EMENDA CONSTITUCIONAL Nº 20, DE 15 DE DEZEMBRO DE 1998. O sistema jurídico brasileiro não contempla a figura da constitucionalidade superveniente. TRIBUTÁRIO — INSTITUTOS  EXPRESSÕES E VOCÁBULOS  SENTIDO. A norma pedagógica do artigo 110 do Código Tributário Nacional ressalta a impossibilidade de a lei tributária alterar a definição, o conteúdo e o alcance de consagrados institutos, conceitos e formas de direito privado utilizados expressa ou implicitamente. Sobrepõe-se ao aspecto formal o princípio da realidade, considerados os elementos tributários. CONTRIBUIÇÃO SOCIAL  PIS  RECEITA BRUTA  NOÇÃO  INCONSTITUCIONALIDADE DO §1º DO ARTIGO 3º DA LEI Nº 9.718/98. A jurisprudência do Supremo, ante a redação do artigo 195 da Carta Federal anterior à Emenda Constitucional nº 20/98, consolidou-se no sentido de tomar as expressões receita bruta e faturamento como sinônimas, jungindo-as à venda de mercadorias, de serviços ou de mercadorias e serviços. É inconstitucional o §1º do artigo 3º da Lei nº 9.718/98, no que ampliou o conceito de receita bruta para envolver a totalidade das receitas auferidas por pessoas jurídicas, independentemente da atividade por elas desenvolvida e da classificação contábil adotada" (RE 346084, relator(a): ILMAR GALVÃO, relator(a) p/ Acórdão: MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 09/11/2005, DJ 01-09-2006 PP-00019 EMENT VOL-02245-06 PP-01170).

[3] O voto merece ser lido em sua integralidade, especialmente porque cita doutrina nacional relevantíssima sobre a invasão de competência do legislador complementar.

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