Opinião

O impedimento previsto no artigo 144 do CPC/15 e o juiz natural

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20 de janeiro de 2022, 18h07

O artigo 144 do Código de Processo Civil de 2015 trata das hipóteses em que se verifica o impedimento do juiz. Nessas situações fica ele proibido de exercer as suas funções no processo. As hipóteses previstas, de acordo com a doutrina e jurisprudência majoritárias, tratam-se de numerus clausus, ou seja, designam um rol taxativo.  

Entretanto, não parece acertada tal impressão, como defende Eduardo José da Fonseca Costa, pois havendo um princípio geral embutido nessas causas, qual seja, a imparcialidade, qualquer fator de quebra, ainda que inconsciente, dessa imparcialidade (casos de enviesamento psíquico-cognitivo) já seria suficiente a tratá-las de modo extensivo, como róis exemplificativos [1].

Muito embora as hipóteses de suspeição previstas no artigo 145 do CPC/15 também proíbam o exercício, pelo juiz, de suas funções no processo, o corte metodológico proposto neste ensaio diz respeito à causa de impedimento do inciso III do artigo 144 do CPC/15 em razão das consequências dela advindas, especialmente quando conduzem para a necessidade de se interpretar os §1º e §2º do artigo 144 de modo integrado.

Tanto as causas de impedimento quanto as de suspeição servem para garantia da imparcialidade, pressuposto fundamental para o exercício da jurisdição.

Conforme será denunciado, a leitura isolada das normas veiculadas nos §1º e §2º do artigo 144 do CPC/15, além de representar uma impropriedade analítica, conduz a uma subversão do ordenamento jurídico, gerando um tratamento desigual das partes e impede, em certa medida, o livre exercício profissional.

O presente ensaio, nesse contexto, pretende induzir uma compreensão analítica do problema posto. A solução passa pela necessidade de uma interpretação adequada à Constituição. Isso porque não há um Direito na lei e outro na Constituição. Os direitos fundamentais, como regra, não devem sofrer restrições, mormente quando a interpretação decorre de uma impropriedade analítica.

O impedimento do inciso III do artigo 144 do CPC/15 proíbe que o juiz exerça sua função no processo "quando nele estiver postulando, como defensor público, advogado ou membro do Ministério Público, seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive".

Entretanto, estabelece o §1º do artigo 144 que o impedimento do juiz só se verifica quando o defensor público, o advogado ou o membro do Ministério Público já integrava o processo antes do início da atividade judicante do juiz.

O entendimento majoritário da jurisprudência é no sentido de que a norma veiculada faz nascer para o defensor público, o advogado ou o membro do Ministério Público a causa de impedimento, ou seja, estariam eles, e não o juiz, impedidos de atuarem no feito.

Ocorre que não há como interpretar o §1º desvinculado do §2º do artigo 144 do CPC/15, que veda a criação de fato superveniente a fim de caracterizar o impedimento de juiz.

É inegável que a razão de existir das normas veiculadas é impossibilitar qualquer ato de manipulação do afastamento do julgador, em verdadeiro abuso de direito da parte. Por isso, a intervenção de advogado, defensor público ou membro do Ministério Público no feito com o propósito deliberado de causar o impedimento do julgador não se coloca como possível.

Mas veja que a norma visa a "impedir" que a parte "manipule", com um "propósito deliberado", ou seja, decidiu assim fazê-lo, em ato de vontade. Essa regra tem nítido caráter ético, evitando que uma das partes contrate um advogado com o propósito de afastar o julgador da causa [2].

E tal razão é muito simples, pois não se pode presumir que toda contratação de advogado, por si só, leve em consideração a real possibilidade de um determinado magistrado ficar impedido. Isso porque a norma visa a repreender quando tal situação ocorrer concretamente e não de modo abstrato e genérico. Afinal, a boa-fé deve ser presumida.

Se assim não o fosse, estar-se-ia criando restrição genérica ao exercício profissional, o que não pode ser admitido já que tal direito possui guarida na Constituição, consistente em inegável direito fundamental.

Assim, considerando que a incidência da norma (geral e abstrata) só se verifica em determinado caso concreto, é preciso exemplificar alguns casos.

Quando a relação jurídica-processual é instaurada com a propositura da ação pelo autor, restando completada pela citação válida do réu, na primeira oportunidade em que couber a este manifestar-se nos autos, oferecendo resposta, e for ele representado por advogado ou defensor público cônjuge, ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive do magistrado, não poderá ser reconhecido que a causa de impedimento surge para o profissional, mas, sim, para o juiz.

Se interpretássemos como literal e isolada a disposição do §1º do artigo 144 do CPC/15, a situação de impedimento prevista no inciso III do mesmo artigo colocaria as partes em absoluta desigualdade.

Ora, não há o que justifique o tratamento discriminatório dado por tal interpretação. Não se olvide que o princípio da isonomia é norma fundamental do processo. A dicção do artigo 7º do CPC/15 que diz ser assegurada às partes paridade de tratamento em relação ao exercício de direitos e faculdades processuais, aos meios de defesa, aos ônus, aos deveres e à aplicação de sanções processuais.

Nessa hipótese, o réu poderá sempre arguir o impedimento do juiz quando estiver postulando como advogado do autor, seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive. Mas, na mesma circunstância, o autor não poderá arguir o impedimento do juiz quando estiver postulando como advogado do réu seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive.

Logo, a interpretação literal e isolada não permite às partes a paridade de tratamento. A norma visa a proteger a imparcialidade do órgão jurisdicional e, se a imparcialidade resta fragilizada na primeira hipótese, o porquê de não restar de igual modo fragilizada na segunda hipótese? Afinal, tratam-se das mesmas circunstâncias.

E mais, o mesmo ocorreria quanto ao dever de reconhecimento do impedimento de ofício pelo juiz, uma vez que, quando estiver postulando em favor do autor seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, deverá fazê-lo. Mas, quando estiver postulando em favor do réu seu cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, pode não fazê-lo ante ao fato de já ter iniciado sua atividade judicante. Isso diante de uma interpretação isolada e literal do §1º do artigo 144 do CPC/15, que não se admite em hermenêutica em razão da coerência, integridade e unidade do ordenamento jurídico.

Por isso, o que a norma visa a coibir é a manipulação, o ato voluntário, nocivo, com o interesse escuso de causar uma situação de impedimento superveniente.

E não faltam exemplos de situações concretas em que se pode verificar a incidência da norma do §1º e §2º do artigo 144 do CPC/15, como reconhecido em alguns julgados que foram vertidos a casos concretos.

Imagine-se que o advogado da parte que seja cônjuge ou companheiro, ou qualquer parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau do juiz seja constituído, no curso avançado do processo, apenas para apresentar memoriais ou realizar sustentação oral. Ou mesmo posterior à instrução do feito, em que se vislumbrou uma eventual inclinação do magistrado a uma decisão desfavorável à parte, entre várias outras possíveis. E mais, quando o ingresso desses profissionais se dá com a manutenção dos poderes daqueles que já integravam o feito, ou seja, o advogado que deu causa ao impedimento, foi substabelecido com reserva de poderes.

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu pelo descabimento do ingresso do advogado em processo depois que os autos foram distribuídos a órgão colegiado de que faça parte magistrado com o qual o profissional possua relação de parentesco, justamente por tratar-se de fato superveniente não aleatório [3]. No caso, a relação jurídica-processual já estava completada, já que se estava diante de julgamento de recurso.

O Supremo Tribunal Federal, na vigência do CPC/73, fundado no princípio do juízo natural, já decidiu pelo impedimento do procurador da parte que obteve substabelecimento com o intuito de provocar a situação de suspeição [4]. Entretanto, há uma impropriedade analítica no julgado quanto à aplicação do princípio do juízo natural, mas que ainda será objeto de análise nesse ensaio.

Antes, em continuidade ao raciocínio anterior, cuida ressaltar que, no exame daquele caso pelo STF, restou evidenciada a intenção de provocar a situação de suspeição. A intenção é algo que se verifica apenas concretamente, mediante exame de prova, daí porque a necessidade de se retomar raciocínio anterior de que a norma não visa a coibir conduta genérica e abstrata. O que se vê do julgado é que a intervenção do procurador surgiu apenas a partir da interposição de embargos de declaração, aí, sim, de forma superveniente.

Logo, não há como reconhecer que a primeira intervenção da parte nos autos por meio de seu advogado se enquadre como fato superveniente, justamente porque é a partir da citação que a relação jurídica-processual foi completada.

Fato superveniente só pode ser aquele posterior à completude da relação jurídica processual, com vistas à garantia do tratamento paritário entre as partes e, ainda assim, só pode ficar caracterizado desde que realizado com o deliberado propósito de causar a situação de impedimento ou suspeição, o que deve ser aferido mediante instrução probatória.

O impedimento genérico do advogado, pela leitura isolada do §1º do artigo 144 do CPC/15, se revela de inegável violação constitucional por proibir o exercício profissional. Ademais, tal situação traz enorme prejuízo à parte por não poder contar com o serviço profissional prestado por quem confia o patrocínio.

De modo que o impedimento do profissional só ocorre depois de completada a relação jurídica processual, com a citação válida, e, mesmo assim, após a primeira manifestação do réu no feito.

Retomando o raciocínio da impropriedade analítica da aplicação do princípio do juízo natural relacionado às hipóteses de impedimento e suspeição, cabe advertir de imediato que há uma confusão generalizada de que tal significante abranja órgão e pessoa.

Por mais óbvio que pareça, é preciso ratificar a ideia de que órgão e pessoa são entes absolutamente distintos. Juiz é uma coisa, juízo é outra coisa. Este relacionado à unidade judiciária, aquele relacionado à pessoa lotada na unidade judiciária.

Quem está relacionado à garantia da imparcialidade é a pessoa lotada na unidade judiciária, e não a própria unidade, que se relaciona às garantias da competência do órgão jurisdicional.

Veja-se que o princípio do juízo natural, previsto no artigo 5º, incisos XXXVII e LIII, da Constituição Federal de 1988 é requisito constitucional da ordinariedade do juízo, que significa que um juízo (órgão) constitui-se legitimamente na medida em que sua competência deve ser estabelecida ex ante facto (ou a priori), ou seja, antes da ocorrência do fato [5].

Nesse contexto, a ideia que se extrai do inciso XXXVII do artigo 5º da CF/88, de que não haverá juízo ou tribunal de exceção, é a de que não se pode atribuir competência para o julgamento após a ocorrência do fato porque ninguém será demandado ou mesmo sentenciado senão por uma autoridade competente (inciso LIII, artigo 5º), ou seja, previamente estabelecida.

Logo, o que a Constituição chama de juízo ou tribunal de exceção não tem a ver com a pessoa que exerce jurisdição, mas apenas que o órgão competente deve ser preexistente ao fato.

A título retórico, imagine-se que uma pessoa, após ser aprovada em concurso público, investe-se na autoridade de juiz e vá julgar um fato ocorrido antes da sua investidura. Questiona-se se estaria violada a garantia do juízo natural pelo fato desse juiz (pessoa) ter sido aprovado no concurso após a ocorrência do fato a ser julgado? Evidente que a resposta é negativa. É possível que a investidura da pessoa na função de juiz se dê após a ocorrência de um fato e, ainda assim, ela julgá-lo.

Não há, portanto, como reunir sob o mesmo significante (garantia do juízo natural) tanto o órgão quanto a pessoa. De modo que não há como estabelecer qualquer confusão entre o princípio do juízo natural com a garantia da imparcialidade, pois, como dito, esta se relaciona com a pessoa lotada na unidade judiciária (pessoa) e aquele com a unidade judiciária (órgão).

E mais, reconhecido o impedimento ou a suspeição da pessoa lotada na unidade judiciária (juiz), a consequência será a remessa dos autos ao seu substituto legal preservando-se, entretanto, a ordinariedade do juízo em que fora distribuído.

Com efeito, a consequência advinda com o reconhecimento do impedimento ou suspeição do juiz preserva o juízo natural, uma vez que o feito não é retirado da unidade judiciária ordinariamente competente, apenas havendo o impedimento do juiz individualmente considerado [6].

 


[1] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a Imparcialidade a sério: Proposta de um modelo interseccional entre direito processual, economia e psicologia. 1. ed. Salvador: JusPodvim. 2018.

[2] ALVIM, José Eduardo Carreira. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. vol. II art. 82 ao 148. Curitiba: Juruá, 2015. p. 388.

[3] STJ, 5ª T., HC nº 300.629/BA, relator ministro Felix Fischer, j. em 28/4/2015, DJe de 15/5/2015.

[4] AO 1158 AM. Tribunal Pleno, Publicação DJ 11/11/2005, Julgamento 04/08/2005, relator ministro Carlos Britto.

[5] NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre; PEDRON, Flávio Quinaud. Teoria Geral do Processo. Salvador: JusPodivm, 2020. p. 488.

[6] ALVIM, José Eduardo Carreira. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. vol. II art. 82 ao 148. Curitiba: Juruá, 2015. p. 389.

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