Opinião

Considerações sobre a recuperação judicial para empresas estatais

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20 de janeiro de 2022, 15h17

Muito se falou em 2021 sobre recuperação judicial, pandemia e economia. Quiçá, nunca abordamos tanto o instituto falimentar à vista da macroeconomia e dos elementos extravoluntários do empresário. Falamos muito sobre a abertura desse próprio conceito, quando lidamos com a aceitação cada vez mais crescente de associações civis como recuperandas e o advento da sociedade anônima do futebol (SAF).

Mas não é esse aqui nosso objetivo, afinal, pouco mesmo se falou sobre a posição do Estado como empresário e a sua capacidade de recuperação financeira, sobretudo em tempos de turbulência econômico-financeira. E é sobre e para isso que estamos aqui: abordar a possibilidade de recuperação judicial para as empresas públicas e sociedades de economia mista — que simplesmente chamaremos de estatais.

Está em repercussão geral no Supremo Tribunal Federal o Recurso Extraordinário nº 1.249.945/MG, protagonista do Tema nº 1.101, que versa justamente sobre a possibilidade ou não de estatais usufruírem dos instrumentos jurídicos previstos pela Lei nº 11.101/2005 (LREF). Foi um recurso extraordinário que quase não passou, mas o ministro Barroso divergiu e entendeu que a repercussão se encontrava justamente na igualdade constitucional existente entre as empresas estatais e privadas, consubstanciada no artigo 173, §1º, II, da Constituição Federal, argumento este que foi seguido pela maioria.

O recurso ainda não se encontra pautado para julgamento, mas o Ministério Público e a Advocacia-Geral, ambos da União, já se manifestaram sobre o seu desprovimento. Os argumentos são similares: 1) partem do princípio do paralelismo das formas para assentar que as empresas públicas só podem ser extintas da mesma forma com a qual foram criadas, ou seja, por lei; 2) perpassam pelo interesse público afeto à matéria, afinal não seria conveniente delegar a um administrador judicial interesses estatais; e 3) finalizam com a tese de que o artigo 173, §1º, da Constituição Federal não impõe regime de completa igualdade entre empresas estatais e privadas, lado outro, acaba por permitir a existência de benefícios a umas e outras sem qualquer compartilhamento.

O artigo 2º da LREF é o responsável por excluir as estatais do regime recuperacional, assim como o faz com muitas outras espécies conhecidas, entre as quais, vale citar, instituições financeiras, cooperativas e seguradoras. Para além do debate que agora se trava sobre a inconstitucionalidade do mencionado dispositivo, também encontramos reiteradas iniciativas que pretendem trazer para o ambiente falimentar outros agentes econômicos que poderiam ser viáveis, não fosse a inevitável liquidação que hoje lhes é imposta, como ocorre com as cooperativas. Nessa trilha, o Projeto de Lei nº 1.262/21, de autoria do deputado Carlos Bezerra, que pretende tornar acessível às pessoas físicas, sociedades simples, associações e cooperativas os benefícios da LREF [1].

Hoje parece ser mesmo uníssona a opinião da doutrina especializada a respeito da impossibilidade de se abrir o instituto recuperacional às empresas estatais, já que "a inclusão das chamadas empresas públicas no processo concursal atentaria contra os propósitos de desestatização, porque, doravante, as empresas que permanecerem sob a égide do Estado assim o serão por razões estratégicas, considerando o interesse público que justifica sua natureza" [2]. Marçal Justen Filho, em uma interpretação estritamente literal, adiciona que uma eventual responsabilidade subsidiária do Estado seria inadmissível diante do sistema falimentar comum [3].

Nem sempre foi assim, porém. A Comissão Especial do PL nº 4.376/93 apresentou, à época dos trabalhos para promulgação da atual norma falimentar, a seguinte redação para o artigo 2º: "As empresas públicas e as sociedades de economia mista, bem como as instituições financeiras públicas e privadas, as cooperativas de crédito, as sociedades seguradoras, de capitalização, de previdência privada e outras entidades voltadas para a exploração de atividade econômica afim, ficam sujeitas à lei especial para recuperação ou liquidação judicial de seus ativos".

José dos Santos Carvalho Filho consigna que "sempre foi objeto de muita polêmica a matéria relacionada à falência e execução de sociedades de economia mista e empresas públicas" [4]. E a doutrina administrativista, por vezes até mais do que a comercial, já se debruçou em grande medida sobre o tema, subdividindo-se naqueles que acreditam na total inaplicabilidade da LREF às estatais e aqueles outros que sustentam uma diferenciação entre estatais que prestam serviço público e aquelas que se dedicam à exploração da atividade econômica [5].

Isso porque quando o Estado atua na prestação de serviços públicos, exerce atribuição que lhe é própria, ainda que não seja exclusiva, quando pode ser objeto de concessão, por exemplo [6]. A contraponto, quando se dedica ao exercício de atividade econômica em sentido estrito, acaba atuando no mercado em regime de concorrência, competindo com os demais agentes e exercendo grande influência no ramo em que atua [7]. Portanto, haveria nesta hipótese uma similaridade inafastável com as empresas privadas, de forma que seria impossível negar-lhes a vigência da LREF à vista do artigo 173, §1º, II, da Constituição Federal.

As diferenças não param por aí, já que as estatais exploradoras de atividade econômica ainda se submetem a um regime jurídico de direito privado; sua responsabilidade civil é, em regra, subjetiva; lhes é defesa a concessão de privilégios fiscais; seus bens são passíveis de penhora e execução; seu direito de greve é regulado; a licitação para o exercício de sua atividade-fim é inexigível por lei; não integram a Administração Pública indireta; e sequer praticam atos administrativos. Todos esses são pontos contrários à existência daquelas estatais que se dedicam exclusivamente à prestação de serviço público, o que em uma superficial análise já seria capaz de lhes retirar o direito de se beneficiar da LREF, já que lhes diferenciam, em muito, do regime das empresas privadas, assim como pretende a Empresa Municipal de Serviços, Obras e Urbanização de Montes Claros (Esurb) no RE nº 1.249.945/MG.

Sob outra perspectiva classificatória, observamos que ao julgar o RE nº 172.816/RJ, a Suprema Corte já decidiu que a norma do artigo 173, §1º, II, da Constituição Federal "visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades públicas que exerçam ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem a atividade econômica na mesma área ou em área semelhante". Nessa perspectiva, firmado está o entendimento de que a equiparação entre empresas privadas e estatais ocorreria tão somente quando estas exerceram atividade econômica em sentido estrito em regime de concorrência [8]. Logo, o critério não seria pura e simplesmente uma diferenciação entre estatais prestadoras de serviço público e aquelas que exercem atividade econômica, exigindo-se um "quê" de competitividade por parte destas.

Independentemente da classificação a ser adotada, essas são ideias que, ao bem da verdade, sustentam a inconstitucionalidade do artigo 2º, I, da LREF. Por outro lado, parece não haver um interesse legislativo de reapreciar a matéria, visto que o PL nº 6.229/2005, responsável pela recente reforma falimentar, nada debateu e propôs a este respeito. No âmbito governamental, interessa mais oferecer às estatais um regime de sustentabilidade econômico-financeira, como versado pelo PL nº 9.215/2017, do que aceitar a possibilidade de se submeterem à recuperação judicial e falência [9].

Hoje, a condição do credor de empresas estatais é precária e nada promissora. São muitas as estatais que hoje já não dão lucros e devem aos montes, com planos de pagamentos constantemente descumpridos, isto é, quando estes existem [10]. Interessante seria ver ao menos parcela desse empresariado estatal ofertando maior segurança econômica e jurídica, como seria uma eventual submissão à LREF, capaz de oferecer um melhor controle e fiscalização das próprias contas públicas pelos seus maiores interessados.

A complicação mora na admissão constitucional de que o Estado se submeta aos interesses dos credores em detrimento do famigerado interesse público, o que, de plano, parece pouco provável de ser admitido pela Suprema Corte. Não podemos olvidar, todavia, que ao intervir na economia em regime de concorrência, o Estado deixa de agir na estrita consecução de objetivos constitucionalmente previstos, quando passa a se submeter às regras do mercado e pode ser facilmente superado e substituído pela iniciativa privada.

O debate é profundo e muito diverso, com fundamentos e opiniões para todos os lados, fazendo com que muitas outras páginas sejam necessárias para abordarmos exaustivamente a questão. Não parece carecer de muita análise, porém, que a abertura do instituto recuperacional é um movimento moderno e global, especialmente com foco na manutenção do agente econômico produtivo no mercado. Requer cuidado, outrossim, a inversão de valores e princípios que pode resultar de uma abertura irrestrita e não criteriosa, como defende parcela tradicional da doutrina comercialista.

O que o Supremo Tribunal Federal fará, pouco se sabe. Se seguir a racio decidendi daquilo que já veio apreciando, ainda que em contextos diversos, poderemos ter uma declaração de inconstitucionalidade parcial da norma, a fim de permitir que apenas empresas exploradoras da atividade econômica em regime de concorrência possam se submeter à LREF. Ultimamente, temos visto que indicadores político-governamentais têm contribuído para mudanças de posicionamentos há muito consolidados pelos tribunais superiores, logo não seria surpresa também a inteira manutenção do dispositivo, mormente pelos enormes desafios que levam à sua superação em termos administrativos. A verdade é que há certo tempo a Suprema Corte não aprecia um tema empresarial de tal envergadura, o que acaba por nos despertar elevada curiosidade pelos fundamentos da decisão e seu desfecho. Esperamos.

 


[1] Proposta semelhante foi apresentada na Câmara em 2005, mas acabou arquivada ao final da legislatura (2007). "Decidimos revisar o texto e propor a presente inovação legislativa, de modo a retomarmos o debate sobre esse tópico do direito falimentar", disse o Dep. Bezerra. Confira o PL na íntegra em: https://bit.ly/3IABYWT.

[2] KAYSSERLIAN, Rodrigo. Sociedades empresariais excluídas do regime falimentar. In: COSTA, Daniel Carnio. Comentários Completos à Lei de Recuperação de Empresas e Falências: disposições comuns às recuperações judiciais e às falências. Vol. I. São Paulo: Juruá Editora, 2015. p. 70.

[3] JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. 12ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. p. 143.

[4] CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 24ª ed. rev. ampl. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 577.

[5] Assim a análise de Aloisio Zimmer Junior (2009); Newton De Lucca (2009); José Dos Santos Carvalho Filho (2011); Hely Lopes Meirelles (2011); Celso Antonio Bandeira de Mello (2008); Maria Sylvia Zanella Di Pietro (2009) e Diogenes Gasparini (2003).

[6] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 22ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. p. 1.287.

[7] DE LUCCA, Newton. Arts. 1º a 4º. In: CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; LIMA, Sérgio Mourão Corrêa (coord.). Comentários à nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas: Lei nº 11.101, de 09 de fevereiro de 2005. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 50.

[8] "[…] A norma do art. 173, §1º, da Constituição aplica-se às entidades públicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação às sociedades de economia mista ou empresas públicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade" (RE nº 172.816/RJ).

[9] Íntegra em: https://bit.ly/3rQ72fj.

[10] Em análise veiculada pelo Banco Central ao final de 2021, percebe-se que as empresas estatais fecharam o período com um déficit de R$ 238 milhões. Íntegra em: https://www.bcb.gov.br/estatisticas/estatisticasfiscais.

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