Controvérsias Jurídicas

A insignificância da lesão e a (des)necessidade de aplicação de pena

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

20 de janeiro de 2022, 8h00

Em importante aresto da lavra do ministro Gilmar Mendes, ficou mais uma vez demonstrada a possibilidade de reconhecimento do princípio da insignificância para condutas com mínima lesividade ao bem jurídico, mesmo que o agente não seja primário. O entendimento se deu no recurso ordinário em Habeas Corpus 210.198/DF, interposto em face do acórdão proferido pela 6ª Turma do STJ, que negou provimento ao agravo regimental no Habeas Corpus 552.039/DF. Consta dos autos que o paciente foi condenado pela prática do crime do CP, artigo 155, caput, à pena de um ano de reclusão, em regime prisional inicial semiaberto, pelo furto de uma peça de picanha avaliada em R$ 52.

Ponderou o ministro que, em que pese o posicionamento pretérito da corte no sentido de afastar a aplicação do princípio da insignificância aos acusados reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada [1], o caso em concreto demonstrou peculiaridades que reclamaram o provimento do apelo. Asseverou que, para a sua aplicação, somente aspectos objetivos devem ser analisados pelo julgador, uma vez que, considerando-se a insignificância como causa de exclusão da tipicidade da conduta, seria equivocado afastar-lhe a incidência pelo fato de o paciente possuir antecedentes criminais.

"O princípio da insignificância (das Geringfügigkeitsprinzip), ora em debate, nada mais é do que um critério dogmático a ser empregado no âmbito de análise da tipicidade material" [2].

Por fim, entendeu o ministro que mesmo com a caracterização da tipicidade formal da conduta, consistente na adequação da conduta do agente ao modelo descrito na lei penal, não há tipicidade material, tendo em vista a inexistência de efetiva e concreta lesão ao bem jurídico tutelado.

A verificação da legalidade formal não é mais suficiente para solucionar as questões jurídico-penais que se apresentam na sociedade. Além da subsunção do fato à norma (subsunção formal), também se faz necessária a presença da efetiva lesividade da conduta, não traduzida apenas como um comportamento interno do agente, mas, sim, uma exteriorização apta a lesar ou expor a risco bens jurídicos de terceiros. Dessa forma, o agente não poderá ser punido por autolesão (agressão a bem jurídico próprio), mas apenas pela conduta lesiva relevante direcionada a terceiros ou à coletividade.

Já há tempos há a presença de duas vertentes dicotômicas e antagônicas de interpretação das normas penais em nosso ordenamento jurídico. De um lado encontramos os adeptos da política do law and order, fortemente inspirada pela teoria das janelas quebradas, implementada pela prefeitura de Nova York no início da década de 90, a qual entende o Direito Penal como instrumento repressivo e punitivo do Estado, em que o incremento das sanções e a presença dos agentes de segurança são os pilares das políticas de segurança pública. Por outro, encontramos a linha de pensamento autodenominada Direito Penal democrático, alinhada com os ideais garantistas de soberania dos direitos individuais do cidadão e de intervenção mínima do Estado. Entende esta última que a sanção penal, por afetar direito sensível do ser humano (liberdade), carrega especial caráter gravoso, tendo apenas seu uso legitimado quando a medida for essencial para a pacificação social, caso contrário, deverá o Estado valer-se de outros meios para dirimir o conflito.

Caso a gravidade da sanção exceda o valor do bem jurídico tutelado pela norma, estará o Estado subvertendo sua função precípua, que é a promoção do bem viver entre as pessoas, passando a não ter justificativa racional para sua aplicação. Por ser o Estado uma abstração jurídica, resultado das ideias iluministas de supremacia da razão nas decisões que importam ao bem comum, não seria admissível que a estrutura penal apenas enxergasse no incremento da pena e na diminuição das liberdades individuais os meios de contenção da criminalidade. De igual forma, por ser produto da razão, não seria razoável que o sistema criminal ficasse sujeito aos desejos do clamor popular ou da vingança privada, devendo sempre sopesar a necessidade da reprimenda e seu efeito no comportamento do agente.

Decorrente da visão penal despenalizadora e garantista, tem a doutrina enumerado os subprincípios que deverão nortear o interprete da norma, entre os quais citamos o da subsidiariedade, fragmentariedade, insignificância, adequação da intervenção estatal e exclusiva proteção de bens jurídicos com dignidade penal. A subsidiariedade se dá quando outros ramos do Direito regulam satisfatoriamente e eficazmente determina conduta, não se justificando a utilização do Direito Penal. Como exemplo, citamos a revogação do CP, artigo 240, relativo ao crime de adultério, que reservou apenas ao Direito Civil as questões envolvendo a fidelidade do casal. A fragmentariedade, por sua vez, se verifica quando da vasta gama de atos ilícitos, o Direito Penal se ocupar apenas de uma pequena parcela, ou fragmento, correspondente aos atos mais graves contra os bens jurídicos mais importantes.

Não é toda lesão ou ameaça de lesão que merece a intervenção penal, vez que determinadas ações agridem de forma tão diminuta, ínfima, que a sanção penal, extremamente gravosa, seria desproporcional e desnecessária. Assim, apenas lesões ou ameaças de lesão graves merecem a tutela penal. Correlato aos princípios da fragmentariedade e da subsidiariedade, o princípio da insignificância orienta a irrelevância penal das infrações à letra fria da lei que não revele significativa lesão ou ameaça de lesão a direito de terceiro. Mesmo que formalmente estejamos diante de uma infração, materialmente não haverá crime, vez que a insignificância do bem jurídico lesado afasta a necessidade da intervenção do Estado.

Já dizíamos em nosso "Curso de Direito Penal" que, "se a finalidade do tipo penal é tutelar um bem jurídico, sempre que a lesão for insignificante, a ponto de se tornar incapaz de lesar o interesse protegido, não haverá adequação típica. É que no tipo não estão descritas condutas incapazes e ofender o bem tutelado, razão pela qual o dano de nenhuma monta deve ser considerado fato atípico" [3]. André Estafam ressalta que, para parte da doutrina, o princípio da insignificância, denominado de "bagatela imprópria", por se tratar de valoração do juiz quanto à necessidade de aplicação da pena, ao invés de causar atipicidade da conduta, resultaria no afastamento da culpabilidade:

"A exclusão da culpabilidade se basearia numa leitura da teoria funcionalista da culpabilidade, segundo a qual a aplicação da pena deve ser calcada não só na constatação de que o indivíduo podia agir de outro modo, mas na avaliação do cumprimento (ou satisfação) de necessidades preventivas (ou seja, verificar se a aplicação da pena atenderia ao postulado da prevenção de novos crimes)" [4].

Cezar Roberto Bitencourt entende que o princípio reside na desproporcional lesão ou ofensa produzida ao bem jurídico tutelado, com a gravidade da sanção cominada. A insignificância sitia-se no abismo que separa o grau da ofensa produzida (mínima) ao bem jurídico e a gravidade da sanção que lhe é cominada [5].

Como bem salientou o ministro Gilmar Mendes em sua decisão, os critérios para a sua aplicação são objetivos, devendo o intérprete levar em consideração as nuances do fato propriamente dito, dispensando-se demais considerações sobre condições pessoais do autor. Nesse contexto, prevalece a posição tradicional que leva em consideração o ínfimo desvalor do resultado em contraponto à gravidade da sanção penal [6].

Decidiram nossos tribunais superiores que os requisitos para o reconhecimento da insignificância são: a) a mínima ofensividade da conduta; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e; d) a inexpressividade da lesão jurídica. Há, porém, entendimento minoritário no sentido que de que a primariedade do agente também deverá ser levada em conta, vedando o reconhecimento da insignificância se a conduta for repetitiva [7].

Comungamos, portanto, do entendimento de Gustavo Junqueira ao dizer que "não podem ser levadas em conta circunstâncias subjetivas para a apreciação da insignificância, sob pena de consagração de um inconstitucional direito penal do autor, que pune o sujeito pelo o que ele é, e não pelo o que faz" [8].

Em que pese a ampla aceitação do princípio na doutrina e jurisprudência, o STF e o STJ têm apresentado divergência no que tange a análise de algumas situações específicas. Aos crimes cometidos por prefeitos o STJ tem precedentes no sentido da não aplicação do princípio da insignificância em razão da própria situação que ostenta o agente, devendo pautar sua conduta à frente do Poder Executivo municipal pelos princípios constitucionais da Administração Pública e pela ética no trato da coisa pública [9]. Em sentido diverso, a Suprema Corte possui julgados que entendem pela aplicação do princípio, em que pese a relevância do bem juridicamente tutelado [10].

A mesma divergência se enxerga na análise da aplicação do princípio ao crime de posse de substância entorpecente para uso pessoal (Lei nº 11.343/06, artigo 28). O STJ firmou entendimento de que o crime de posse de droga para consumo próprio é de perigo presumido ou abstrato, sendo da essência do delito a ínfima quantidade da substância, sendo inaplicável, portanto, a insignificância [11]. Diferentemente entendeu o STF, que apresenta julgados no sentido da aplicação da insignificância dependendo do caso concreto [12].

Referente ao crime de tráfico de entorpecentes (Lei 11.343/06, artigo 33), em que pese a ampla maioria dos julgados do STJ e STF ir no sentido da inaplicabilidade da insignificância, a 2ª Turma do STF, em julgado recente, reconheceu a insignificância da conduta de uma mulher que foi presa portando consigo e destinando para a venda um grama de maconha. Em seu voto, argumentou o ministro Gilmar Mendes que a resposta do Estado não foi adequada, nem necessária, para repelir o tráfico de um grama, destacando a desproporcionalidade da sanção e a quantidade irrisória da droga. O voto do relator foi seguido pelos ministros Celso de Mello e Ricardo Lewandowski, ficando vencidos os votos dos ministros Edson Fachin e Cármen Lúcia [13].

O Direito Penal do século 21 consagra o rompimento definitivo com o modelo positivista do século 19, adequando a máxima "o juiz é o escravo da lei" para "o juiz é o interprete da lei", cuja letra expressa necessita ser compatibilizada com os princípios constitucionais que lhe dão conteúdo dogmático-ontológico.

 


[1] STF, HC 97.007/SP, rel. min. Joaquim Barbosa, 2ª Turma, DJe 31/3/2011; HC 101.998/MG, rel. min. Dias Toffoli, 1ª Turma, DJe 22/3/2011; HC 103.359/RS, rel. min. Cármen Lúcia, 2ª Turma, DJe 6/8/2010, e HC 112.597/PR, rel. min. Cármen Lúcia, 2ª Turma, DJe 10/12/2012.

[2] STF, RHC 210.198/DF, 2ª Turma, rel. min. Gilmar Mendes, Dje 19/01/2022.

[3] CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal, parte geral, 25ª edição, ed. SaraivaJur, 2021, p. 52.

[4] ESTEFAM, André. Direito penal, parte geral. 10ª edição, Ed. SaraivaJur, 2021, p. 156.

[5] BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal, vol. 1, 26ª edição, ed. SaraivaJur, p. 69.

[6] STF, HC 92.463 e 92.961, e no STJ, REsp 1.084.540.

[7] STJ, HC 60.949.

[8] JUNQUEIRA, Gustavo. Direito penal, 9ª edição, ed. Revista dos Tribunais, 2009, p. 31.

[9] STJ, 6ª Turma, HC 148.765/SP, rel. min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 11/5/2010.

[10] STF, 2ª Turma. HC 104286, rel. min. Gilmar Mendes, j. 13/5/2011.

[11] STJ, 6ª Turma. RHC 35.920/DF, rel. min. Rogério Schietti Cruz, j. 20/5/2014.

[12] STF, HC 110475, rel. min Dias Toffoli, j. 14/2/2012.

[13] STF, 2ª Turma, HC 127573/SP, rel. min. Gilmar Mendes, j. 11/11/2019.

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