Opinião

ANPP: discricionariedade versus arbitrariedade

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18 de janeiro de 2022, 12h23

O acordo de não persecução penal foi introduzido no ordenamento jurídico pela Lei nº 11.964/19, denominada pacote "anticrime". O instituto jurídico instrumentalizou a Justiça consensual, possibilitando a resolução da questão criminal de maneira mais célere e equitativa para todas as partes.

O artigo 28-A do Código de Processo Penal oportuniza ao Ministério Público o oferecimento do referido acordo nos casos em que o investigado tiver confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal, desde que tenha sido cometida sem violência ou grave ameaça e a ela não seja cominada pena mínima superior a quatro anos, desde que sua aplicação seja suficiente para reprovação e prevenção do crime.

Trata-se, portanto, de uma atuação discricionária dispensada ao membro do Ministério Público, que, analisando o preenchimento dos requisitos objetivos, poderá dar início à solução consensual.

No entanto, temos observado que, em alguns casos, o órgão acusatório tem confundido essa discricionariedade com arbitrariedade. São diversos acordos não oferecidos lastreados em fundamentação sem amparo legal ou, ainda, expressamente contrária ao que manda a lei.

As justificativas mais comuns encontradas são a ausência de confissão do investigado na fase policial e gravidade abstrata do crime.

O artigo 28-A, §3º, do Código de Processo Penal estabelece a realização de tratativas entre o membro do Ministério Público, o investigado e seu defensor para a formalização do acordo de não persecução penal. Vale dizer, é justamente neste momento que deverá ser franqueado ao investigado a possibilidade de confissão formal e circunstancial da prática delitiva.

A exigência de confissão do investigado na fase policial é incabível, pois nessa fase o investigado tem apenas uma perspectiva da celebração de um acordo. Nesse momento não se sabe se o inquérito será ou não arquivado, se autoria será comprovada e qual crime será imputado. Tais elementos são essenciais para a análise do cabimento e da viabilidade do instrumento negocial.

Bem por isso que o Conselho da Justiça Federal, na 1ª Jornada de Direito e Processo Penal, realizada em 2020, aprovou um enunciado que dispõe que "a inexistência de confissão do investigado antes da formação da opinio delicti do Ministério Público não pode ser interpretada como desinteresse em entabular eventual acordo de não persecução penal" [1].

Essa também é a posição consolidada na jurisprudência [2], uma vez que se trata de uma imputação em relação à qual é possível o oferecimento de ANPP, a autoridade judicial responsável consulta o órgão acusatório e designa uma data para a realização de audiência específica para a apresentação da proposta de acordo ou solicita que o MP apresente sua proposta para aí, sim, indagar o acusado se aceita os termos do acordo (confissão inclusa). Ou uma coisa ou outra.

No mesmo sentido, a gravidade abstrata do crime não constitui motivação idônea para a recusa do ANPP. A negativa ministerial, quando cabível, deve se basear em dados concretos do fato delituoso, na culpabilidade, caso entendida mais acentuada, por motivos a serem explicitados na recusa.

Da mesma forma que a gravidade abstrata do delito não serve para fundamentar qualquer decisão na seara penal, o Ministério Público deve expor os motivos, circunstâncias e consequências do delito para o qual o acordo não seria suficiente e necessário para repressão e prevenção do fato criminoso.

Como se sabe, todo ato administrativo deve ser fundamentado, sob pena de ser considerado ilegal, de acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello: "dito princípio (princípio da motivação) implica para a Administração o dever de justificar seus atos, apontando-lhes os fundamentos de direito e de fato, assim como a correlação lógica entre os eventos e situações que deu por existentes e a providencia tomada, nos casos em que este último aclaramento seja necessário para aferir-se a consonância da conduta administrativa com a lei que lhe serviu de arrimo" [3].

Desse modo, as manifestações do Ministério Público, enquanto ato administrativo, devem, por conseguinte, ser fundamentadas, não havendo espaço para afirmações genéricas e lugares comuns.

Portanto, a recusa de oferecimento de ANPP ao arrepio da lei, alheio a qualquer controle de legalidade ou dever de fundamentação, não deve ser aceita, podendo inclusive ser reconhecida como falta de interesse de agir do Ministério Público [4].

 


[2]. TJSP, COR 2164387-03.2020.8.26.0000, relator desembargador Sérgio Coelho, DJe 23.2.2021; TJSP, COR 2273516-40.2020.8.26.0000, relator desembargador Xisto Albarelli Rangel Neto, DJe 26.1.2021; TJSP, PIC 2270845-15.2018.8.26.0000, relator desembargador Poças Leitão, DJe 15.10.2021; TJSP, APR 1500485-95.2020.8.26.0495, relator desembargador André Carvalho e Silva de Almeida, DJe 10.5.2021; TJSP, APR 15004127-73.2020.8.26.0544, relator desembargador Cesar Mecchi Morales, DJe 25.5.2021.

[3] Mello, Celso Antonio Bandeira de Mello. Curso de Direito Administrativo. 31ª Ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2013, p.115-116; 404-408.

[4]. TJSP, RSE 0000781-42.2021.8.26.0695, relator desembargador Marcos Alexandre Coelho Zilli. DJe 26.11.2021

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