Opinião

O ser humano não é mercadoria, mas os dados de um atleta são?

Autores

  • Kone Prieto Furtunato Cesário

    é professora doutora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da pós-graduação mestrado e doutorado da Academia do Instituto Nacional da Propriedade Industrial.

  • Roberta Ferreira Severo

    é advogada na K+G Cesário Pareceres e Pesquisas mestranda em Propriedade Intelectual e Inovação na Academia do Inpi especialista em Gestão Direito e Marketing do Esporte pela FGV/Fifa/Cies e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Desportivo.

16 de janeiro de 2022, 16h25

A última semana de notícias do futebol brasileiro ficou marcada por um assunto que fugiu das pautas normais de transações de atletas e reapresentação de equipes: a lesão do atleta Rodrigo Caio tem dado o que falar. Após ser submetido a uma artroscopia, o jogador do Flamengo e da seleção brasileira teve um dos pontos infeccionados e precisou retornar ao Rio de Janeiro durante as férias para ser internado e tratar o problema. A suposta "infecção por superbactéria" e a repercussão da notícia por jornalistas e torcedores foi tanta que chegaram a especular sobre o fim de sua carreira, levando o atleta às suas redes sociais para negar tal especulação.

Num famoso programa esportivo de televisão, o diretor médico do Flamengo deu detalhes dos procedimentos clínicos pelos quais o jogador, que está internado, está passando no hospital. É muito comum que o público tenha interesse na vida privada de pessoas públicas; adicione a isso o ingrediente da paixão nacional pelo futebol. O resultado é um raio-x da vida privada dos atletas e uma dissecação dos dados sobre a saúde de um jogador, crescendo exponencialmente o número de veículos jornalísticos divulgando o assunto.

O confronto entre liberdade de informação e privacidade sempre está e estará em voga na nossa sociedade que vive a era dos espetáculos. O interesse público e da população são partes do direito da imprensa em informar, inclusive, mantendo em sigilo suas fontes. E não podemos esquecer que são ossos do ofício daquelas pessoas famosas, como os atletas profissionais, terem seus direitos à intimidade reduzidos em comparação ao cidadão comum, pois quase tudo a sua volta pode ser considerado notícia.

Mas, nesse caso específico do Rodrigo Caio, o que nos chamou atenção foi observar uma nova ótica: a da divulgação de dados pessoais considerados sensíveis pela Lei Geral de Proteção de Dados, sancionada em agosto de 2018 (Lei 13.709/18), o que nos faz questionar se os clubes, os atletas e as equipes médicas sabem quais os limites impostos pela LGPD.

A LGPD busca dar proteção aos dados pessoais no país, principalmente na internet. Porém, essa lei vem sendo maciçamente associada à proteção dos dados dos consumidores, quase como uma extensão do Código de Defesa do Consumidor, e, por isso, o debate sobre o tratamento e a privacidade dos dados pessoais sensíveis está sendo negligenciado por outros setores, como o desportivo. Assim, poucos clubes possuem políticas de proteção de dados; muito menos suas diretrizes são divulgadas e foram debatidas com os atletas e até mesmo torcedores. Isso nos faz questionar se os departamentos médicos dos clubes possuem consentimentos expressos dos atletas para divulgação de informações sobre sua saúde, dados genéticos ou biométricos, considerados dados sensíveis pelo artigo 5, II, da LGPD.

Segundo a LGPD, os dados pessoais são as informações relacionadas à pessoa passíveis de identificá-la, como os números do CPF e do RG, o telefone e até mesmo a placa do carro. Mas há também alguns dados sobre a pessoa que são elevados à condição de sensíveis, a exemplo das informações sobre etnia, religião ou suas convicções políticas e, como dito acima, incluem-se também os dados sobre a saúde do indivíduo.

Num primeiro momento, podemos indagar que mal há em todos ficarem sabendo sobre a quantidade de lesões, internações ou tratamentos e doenças de um atleta. Somos torcedores daquele clube e temos o direito de saber sobre ele, porque o que está em jogo é o investimento que o clube fez na contratação do atleta e seu desempenho nas quadras e nos campos, pois, ao fim e ao cabo, o que conta são os campeonatos que o atleta pode dar ao nosso time do coração.

Mas, e se estivermos do outro lado do campo, naquele lado onde está o atleta? Há de se observar se houve consentimento, ou se ele ao menos sabia que poderia impedir ou limitar a divulgação de seus dados considerados sensíveis, como a sua condição física ou médica, sobre como seu corpo — ferramenta do seu ganha-pão — é detalhado em público pelo seu próprio empregador, gerando para ele um saldo negativo em seu valor de mercado ou direito de imagem, pois acaba por ganhar o apelido de "jogador de porcelana".

Nesse cenário, questiona-se: é imprescindível que se divulgue todos os detalhes sobre as lesões, tipos de cirurgias, formas de tratamento, isto é, saibam sobre os dados referentes à saúde dos atletas de seu clube do coração? Será que a divulgação desses dados sensíveis por parte de clubes não pode gerar prejuízos econômicos para os próprios clubes e atletas com a desvalorização que essas informações médicas podem gerar ao valor de transação? Prejuízo ao torcedor também, porque seu clube pagou um valor por um atleta e na hora de vendê-lo será por um valor menor e, por isso, não terá saldo em caixa necessário para recompor a equipe para o próximo campeonato!

Aí está o gol de placa quando se vê a importância sobre a conscientização dos diversos setores da sociedade sobre a ampla aplicação da LGPD e a necessidade de proteger esses dados sensíveis na vida cotidiana. Ou seja, as consequências que trarão a falta de tratamento devido e a necessidade de adequação dos controladores — aqueles que decidem sobre as operações desses dados — quanto aos dados a serem divulgados, estipulados por contratos e cláusulas de consentimento, podem culminar numa falta de cuidado sobre os limites do que se deve revelar ao público.

É necessário o debate público envolvendo informação e privacidade, ao mesmo tempo em que se entenda sobre o que versa a LGPD e quais os limites e alcances de suas proteções, de que ela não é somente aplicada nas relações de consumo e que uma política clara e transparente sobre a proteção de dados é ferramenta para que não ocorra uma banalização de informações que possam prejudicar os atletas.

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  • Brave

    é professora da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e da pós-graduação da Academia do Instituto Nacional da Propriedade Industrial.

  • Brave

    é advogada na K+G Cesário Pareceres e Pesquisas, mestranda em Propriedade Intelectual e Inovação na Academia do Inpi, especialista em Gestão, Direito e Marketing do Esporte pela FGV/Fifa/Cies e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Direito Desportivo.

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