Embargos Culturais

Alexis de Tocqueville e o Direito Administrativo

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

16 de janeiro de 2022, 9h56

Penso que O Antigo Regime e a Revolução, de Alexis de Tocqueville (1805-1859) é o mais importante livro de Direito Administrativo que ainda circula entre os interessados. Quando li esse clássico pela primeira vez, sem a atenção e o interesse que essa leitura exige, as reflexões em torno dos fundamentos do direito administrativo (especialmente o tema do interesse público) me passaram despercebidas. Trinta anos depois, lendo Uma Teoria do Direito Administrativo, de Gustavo Binembojm, com a referência a Tocqueville, dei pela importância do livro. O professor do Rio de Janeiro nos mostra a importância do publicista francês.

Spacca
Tocqueville escreveu sua reminiscência da revolução francesa, já idoso, mas ainda com muita energia para pesquisar nos arquivos. Era metódico, além, naturalmente, do estilo limpo e gostoso, que apreciamos em Democracia na América. Tocqueville era da nobreza. Era um togado. Fora um perseguido ao longo das tensões entre girondinos, jacobinos e monarquistas saudosistas. Que revolução francesa queremos? Eric Hobsbawn, em Ecos da Marselhesa, problematizou essa dúvida. Os livros de direito romantizam a revolução. Aquele babado surrado de eras do direito, que Norberto Bobbio entendeu plausível em livro com esse título.

Para Tocqueville o Direito Público que nasceu da revolução francesa era mais autoritário do que o Direito Público pré-revolucionário. Trocou-se a doutrina da supremacia vertical do rei pela doutrina da supremacia do interesse público. O dogma da supremacia do interesse público foi construído pelo Direito brasileiro como base em percepção vigorosa de Estado, detentor de vontade, que é concebida como uma vontade geral. Esta última ideia remonta a Rousseau, para quem a vontade geral seria invariavelmente reta e tenderia sempre à utilidade pública; embora, bem entendido, e como apontado pelo filósofo de Genebra, não se poderia deduzir que as deliberações do povo sempre guardassem a mesma retidão. A vontade geral e o consequente interesse público seriam os fundamentos da lei justa e eficaz. Há traços muito nítidos de percepções jusnaturalistas nessas ideias.

A construção desse dogma fez-se com base em leitura que reduziu a revolução francesa a um grupo de lugares comuns, especialmente no que se refere à concepção dos institutos do Direito Administrativo. Foi Alexis de Tocqueville quem primeiramente fez a denúncia, no sentido de que o Direito Administrativo revolucionário manteve os contornos do Direito Administrativo do regime absolutista dos Bourbon. É que, entre outros, a centralização administrativa seria instituição do Antigo Regime, e não obra da revolução. Tocqueville queria crer que a civilização era uma bela conquista, admitia que a Europa tinha inveja da França, por força do avanço civilizatório, mas afirmava que não se admirava uma conquista da revolução, necessariamente. Havia um erro de avaliação.

O vínculo entre vontade geral e legalidade, que dá suporte à concepção clássica de interesse público, fora formulado como reação ao Estado Absoluto, a partir do uso recorrente de outro mito, relativo à existência de uma sociedade autossuficiente. A ideia de legalidade seria instrumento diretamente lançado contra a estrutura política do Estado absoluto: frente ao poder pessoal e arbitrário, o ideal de um governo virtude da lei, na compreensão de Eduardo García de Enterría, outro administrativista de superlativa importância.

O debate em torno do princípio da supremacia do interesse público aponta para problema muito maior que se desdobra, e que reflete a própria crise de paradigmas que vive o Direito Administrativo. Foi Gustavo Binembojm quem nos lembrou que o Direito Administrativo brasileiro contemporâneo parece se revelar como corpo teórico inconsistente, autoritário e ineficiente. A inconsistência, ao que parece, decorreria da impossibilidade de ligação prospectiva entre o substrato atávico que a ideia de interesse público expressa e ambiente normativo que deve ser informado por indicativos de peso constitucional, a exemplo da centralização no discurso jurídico contemporâneo na percepção da dignidade da pessoa humana. Esse último, abandonado por alguns que calçaram as sandálias da falta de humanidade jurídica.

Para Tocqueville, “como seu objetivo não foi apenas mudar um governo antigo, e sim abolir a fora antiga de sociedade, a revolução francesa teve de atacar simultaneamente todos os poderes estabelecidos, demolir todas as influências reconhecidas, apagar as tradições, renovar os costumes e os usos e, por assim dizer, esvaziar o espírito humano de todas as ideias nas quais se haviam fundamentado até então o respeito e a obediência. Daí seu caráter tão singularmente anárquico”. Lembra Edmund Burke, o pai fundador da tradição conservadora.

A revolução, dizia um de seus adversários, metodizou a anarquia; para Tocqueville, no entanto, aumentou a força e os direitos da autoridade pública. Para o autor, por mais radical que a revolução tenha sido, inovou muito menos do que se supõe. Pegou o mundo de surpresa. Resulta da revolução a construção de um direito público autoritário, ainda que travestido em instrumento infalível de busca de interesse comum. É o que constatamos com processos administrativos inquisitórios, que ainda hoje vicejam, e que comprovam a imagem de Tocqueville, para quem a história é uma galeria de quadros em que há poucos originais e muitas cópias.

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