Opinião

Breves notas sobre o favorecimento na autocolocação em perigo

Autor

  • Felipe Pessoa Fontana

    é advogado criminalista na Nasralla Advocacia especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) em convênio com o Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2021) especialista em Direito Penal (Teoria do Delito) pela Universidade de Salamanca (2018) e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

15 de janeiro de 2022, 6h33

O que se entende por autocolocação em perigo nada mais é do que a inserção do ofendido, de forma consciente e voluntária, em um contexto temerário que acaba por lesionar bens jurídicos que lhe são próprios. No entanto, ao contrário do que ocorre no consentimento no âmbito penal, a vítima nesse caso não deseja e nem anui com a lesão. Ainda que a situação perigosa implique em uma relação de probabilidade de ocorrência evento danoso, é certo que ele não é esperado.

Também se faz possível o favorecimento ou contribuição de um terceiro em uma autocolocação em perigo, como no caso em que o agente facilita à vítima o acesso a instrumentos com os quais essa lesiona a si ou quando a motiva a realizar determinada empreitada arriscada [1].

Em se tratando da autocolocação em perigo, além da plena consciência dos riscos envolvidos na empreitada, é necessário, como requisito essencial, que a vítima seja responsável por seus atos.

Nessa toada, Luís Greco compreende que o ato da vítima de se autocolocar em perigo esteja ligado ao seu domínio do fato [2], sendo imprescindível que o ofendido tenha esse domínio, e não o terceiro. Assim, o fato de o agente favorecedor possuir conhecimento superior ao da vítima sobre as circunstâncias da situação arriscada acarretaria um menor poder de avaliação do ofendido, que desconhece o efetivo risco da empreitada.

Como exemplo de favorecimento na autocolocação em perigo, imagine-se que o agente A venda certa quantidade de heroína a B. Ambos têm pleno conhecimento de que determinada dose da droga pode gerar perigo de vida, mas ainda assim assumem o risco de que a morte ocorra, embora não desejem o resultado: A é motivado pelo dinheiro; já B está interessado em seu entorpecimento em razão de seus problemas pessoais. Se B, após a transação, injetar droga em si e morrer por uma overdose, questiona-se se A deveria responder por homicídio, seja a título de culpa ou dolo eventual [3].

A partir das bases teóricas funcionalistas de Claus Roxin, especificamente da moderna teoria da imputação objetiva, tem se admitido que "quem se limita a participar de um comportamento perigoso realizado pela própria vítima não pode ser punido caso as coisas acabem mal" [4]. É consenso entre os doutrinadores que, em casos similares, não deve haver imputação do resultado ao lesionado (que se coloca de maneira consciente e autorresponsável em uma situação arriscada) ou àquele com quem interagiu.

Diversos são os argumentos utilizados, inexistindo uma justificativa uníssona. Com o intuito de fundamentar a ausência de imputação nessas situações, alguns penalistas alemães, como o próprio Roxin, partem do ordenamento jurídico de seu país, no qual é impune a participação no suicídio e também na autolesão, concluindo-se que tampouco deveria ser punível uma autocolocação em perigo dolosa pela vítima. O raciocínio é simplificado da seguinte forma: se não se pode punir o mais (participação em suicídio), seria incongruente que se pudesse punir o menos (favorecimento na autocolocação em perigo).

Luís Greco acertadamente discorda dessa explicação, pois ela apenas "exclui a possibilidade de punir a participação culposa em uma autocolocação em perigo, e não a possibilidade de que se trate de verdadeira autoria" [5]. Ainda assim, Greco considera correta a conclusão de que não se deve imputar o resultado ao agente que colabora em um contexto de autocolocação em perigo, porque, do contrário, "se transformaria o autor, de modo estranhamente paternalista, em tutor da integridade de uma pessoa adulta, o que contrariaria o que se convencionou chamar de 'princípio da autorresponsabilidade'" [6].

Ressalte-se que a posição relativa à autorresponsabilidade de maior difusão se vale do reconhecimento constitucional da liberdade ou capacidade de todo cidadão de se autodeterminar e, principalmente, do asseguramento do livre desenvolvimento de sua personalidade. Verifica-se, assim, a autonomia do cidadão em sua esfera de organização, "que significa, por sua vez, que o sujeito tem uma responsabilidade primária ou preferencial na organização de sua vida e de seus bens jurídicos" [7].

Tal concepção encontra ressonância em diversos adeptos da doutrina, que respaldam a ausência de imputação do resultado ao terceiro na autorresponsabilidade daquele que lesiona a si ou se coloca em uma situação perigosa [8].

Ao se inserir em uma situação de risco por conta própria, não pode o cidadão, portanto, exigir de terceiros um dever de proteção em relação ao seu bem jurídico lesionado. Por tal razão, diz-se que o Direito Penal não se presta à tutela de bens, interesses ou valores eventualmente lesionados em decorrência de comportamentos criados por seu titular, desde que este atue por livre determinação e autorresponsabilidade, bem como que tenha pleno conhecimento dos riscos inerentes à sua conduta.

Diego-Manuel Luzón Peña, por seu turno, utiliza o princípio da alteridade como fundamento. A ideia é que o Direito Penal, para garantir a convivência livre e pacífica dos cidadãos, institua normas que impeçam que alguém dane ou lesione outrem contra sua vontade. Assim, inversamente, a lesão praticada por alguém em seu próprio desfavor, "como regra, não afeta a convivência externa e, portanto, o direito, mas apenas o âmbito interno da moral" [9]. É dessa concepção, inclusive, que se deduz o princípio da lesividade enquanto limitador da intervenção penal, pois modernamente se entende que a conduta criminosa deve necessariamente acarretar um dano concreto a bem jurídico alheio, não bastando, por exemplo, sua imoralidade [10].

Defende Peña que, salvo alguma exceção posta pelo ordenamento jurídico por notável interesse público, o princípio da alteridade não abarcaria as hipóteses em que alguém lesiona ou expõe a risco bens jurídicos próprios. Portanto, ao se permitir a autolesão e a autocolocação em perigo (regra principal), não seria possível punir o favorecimento de um terceiro nessas situações [11].

Ademais, as proposições mais modernas utilizam sobretudo as regras da moderna teoria da imputação objetiva na solução de casos de favorecimento na autocolocação em perigo. Defende-se que tais situações dizem respeito à falta de criação de risco, pois o que se discute é a ausência de proibição do risco criado para o bem jurídico em razão da aceitação da vítima [12].

Objetivamente, o mero ato de entregar instrumentos e coisas ou mesmo interagir com a vítima autorresponsável que se coloca em perigo não gera um risco desaprovado juridicamente em relação à sua integridade física ou mesmo à sua vida [13]. Não há sequer a configuração do tipo objetivo nessas hipóteses, ainda que o agente tenha incitado, facilitado o fato de alguma maneira ou tenha instigado o ofendido.

Em suma, compreende-se que a anuência da vítima capaz impede a intervenção penal, seja a partir do princípio da autorresponsabilidade, da alteridade ou mesmo pela aplicação das regras da moderna teoria da imputação objetiva.

 


[1] FRISCH, Wolfgang. La imputación objetiva del resultado: desarollo, fundamentos y cuestiones abiertas. Barcelona: Atelier, 2015, p. 70-71.

[2] O termo "domínio do fato" neste caso está ligado ao domínio da ação de se autocolocar em risco, havendo uma equiparação da conduta da vítima aos critérios da autoria imediata. Explanam Luís Greco e Alaor Leite que "o domínio sobre realização do tipo pode manifestar-se, primeiramente, como um domínio sobre a própria ação (Handlungsherrschaft), que é o domínio de quem realiza, em sua própria pessoa, todos os elementos de um tipo, isto é, do autor imediato" (GRECO, Luís; LEITE, Alaor. O que é e o que não é a teoria do domínio do fato. Sobre a distinção entre autor e partícipe no direito penal. In: GRECO, Luís et al. Autoria como domínio do fato: estudos introdutórios sobre o concurso de pessoas no direito penal brasileiro. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 25).

[3] ROXIN, Claus. Estudos de direito penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 103.

[4] GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 71.

[5] GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. p. 73-74.

[6] GRECO, Luís. Um panorama da teoria da imputação objetiva. 4. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 72.

[7] PEÑA, Diego-Manuel Luzón. Principio de alteridade o de identidade vs. Principio de autorresponsabilidad. Participación en autopuesta em peligro, heteropuesta en peligro consentida y equivalencia: el critério del control del riesgo. Revista General de Derecho Penal, nº 15, 2011. Acesso em: <https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3769398.pdf>. Acesso em 21 fev.2018. p. 65.

[8] ROXIN, Claus. Sobre a discussão acerca da heterocolocação em perigo consentida. In: direito penal como crítica da pena: estudos em homenagem a Juarez Tavares por seu 70º. Aniversário em 2 de setembro de 2012. Org. GRECO, Luís; MARTINS, Antonio. Madrid: Marcial Pons, 2012. p. 567.

[9] PEÑA, Diego-Manuel Luzón. Principio de alteridade o de identidade vs. Principio de autorresponsabilidad. Participación en autopuesta em peligro, heteropuesta en peligro consentida y equivalencia: el critério del control del riesgo. Revista General de Derecho Penal, n. 15, 2011, p. 70. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3769398.pdf. Acesso em: 21 fev 2018. Tradução nossa.

[10] PEÑA, Diego-Manuel Luzón. Principio de alteridade o de identidade vs. Principio de autorresponsabilidad. Participación en autopuesta em peligro, heteropuesta en peligro consentida y equivalencia: el critério del control del riesgo. Revista General de Derecho Penal, nº 15, 2011, p. 70-71. Disponível em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3769398.pdf. Acesso em: 21 fev 2018.

[11] PEÑA, Diego-Manuel Luzón. Principio de alteridade o de identidade vs. Principio de autorresponsabilidad. Participación en autopuesta em peligro, heteropuesta en peligro consentida y equivalencia: el critério del control del riesgo. Revista General de Derecho Penal, nº 15, 2011, p. 71. Acesso em: https://dialnet.unirioja.es/descarga/articulo/3769398.pdf. Acesso em 21 fev 2018.

[12] OLIVÉ, Juan Carlos Ferré; PAZ, Miguel Ángel Núñez; OLIVEIRA, Willian Terra de; BRITO, Alexis Couto de. Direito penal brasileiro: Parte Geral. Princípios fundamentais e sistema. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 288.

[13] FRISCH, Wolfgang. La imputación objetiva del resultado: desarollo, fundamentos y cuestiones abiertas. Barcelona: Atelier, 2015, p. 73-74.

Autores

  • é advogado criminalista na Nasralla Advocacia, especialista em Direito Penal Econômico pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), em convênio com o Instituto de Direito Penal Econômico e Europeu (IDPEE) da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (2021), especialista em Direito Penal (Teoria do Delito) pela Universidade de Salamanca (2018) e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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