Diário de Classe

Filosofia no Direito (2): o problema da verdade

Autor

  • Luã Jung

    é graduado em Direito mestre e doutor em Filosofia professor do PPG Direito Unesa-RJ professor convidado da ABDConst membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos e advogado.

15 de janeiro de 2022, 8h00

Em minha última contribuição neste espaço [1], tentei expor a relevância e paralelismo entre concepções teóricas do Direito e concepções metaéticas. Retomando de forma sintética, propus que teorias como a de Hans Kelsen, por exemplo, guardam correspondência com a corrente emotivista e que as teorias da argumentação jurídica, por sua vez, podem ser associadas ao expressivismo universal defendido por R.M. Hare. Tanto o positivismo kelseniano quanto as teorias da argumentação foram relacionadas ao que se chama de não cognitivismo metaético, ou seja, a corrente teórica segundo a qual proposições normativas não carregam consigo um valor de verdade. Por outro lado, apontei para o fato de que as teorias do Direito natural, bem como a teoria de Dworkin (com ressalvas), poderiam ser associadas à corrente cognitivista — para essas concepções, declarações sobre bens jurídicos ou interpretações legais possuem um caráter objetivo a partir do qual podemos afirmar a sua verdade ou falsidade.

Seguindo o intuito daquele texto, qual seja, o de delinear relações entre problemas teóricos do Direito e questões filosóficas, gostaria de desenvolver aqui o tema que lá foi antecipado: a influência de teorias da verdade sob concepções teóricas do Direito [2]. Afinal, as coincidentes perplexidades que se dão de maneira simultânea na teoria do Direito e na metaética dizem respeito ao caráter universal da filosofia, para a qual o problema da verdade persiste ao longo da história como um dos temas centrais e mais intrigantes.

É possível afirmar que qualquer teoria epistemológica necessita de uma teoria da verdade. Para dizer como nós conhecemos, é necessário definir o que nós entendemos por conhecimento. Nesse sentido, os filósofos geralmente buscam pelas condições necessárias e suficientes (Y) que nos autorizam a dizer que uma determinada proposição (X) é verdadeira, de maneira que diferentes teorias da verdade acabam utilizando a seguinte fórmula, variando, todavia, o conteúdo atribuído a Y:

X é verdadeiro se e somente se Y.

Ou seja,

X é verdadeiro sse Y.

Existem algumas teorias da verdade paradigmáticas, ou, como afirma Pascal Engel, "canônicas" na história da Filosofia. Por exemplo, a teoria da correspondência, segundo a qual, seguindo o esquema acima indicado, X é verdadeiro sse X corresponde a um fato. A teoria da verdade como correspondência consiste no significado mais usual do conceito de verdade e tem seu marco teórico em Aristóteles: "Falso é dizer que o ser não é ou que o não-ser é. Consequentemente, quem diz de uma coisa que é ou que não é, ou dirá o verdadeiro ou dirá o falso" (Metafísica Γ 7, 1011b26-27). Em termos escolásticos, essa concepção de verdade traduz-se na expressão adaequatio intellectus et rei. Contemporaneamente, a teoria da verdade como correspondência recebeu contornos formais a partir da teoria semântica do lógico polonês Alfred Tarski.

Como delineado na coluna anterior, podemos dizer que teorias positivistas e jusnaturalistas utilizam a verdade como correspondência, ainda que divirjam sobre a sua aplicação. Para as primeiras, os fatos existentes aos quais nossas proposições correspondem limitam-se aos fatos estudados pelas ciências naturais, de maneira que nossas afirmações normativas, principalmente as relativas à atividade jurisdicional, são sempre relativas ou subjetivas. Para as teorias do Direito natural, por outro lado, bens jurídicos existem como um dado da realidade e podem ser correspondidos pela gramática da moral e da ética.

A crítica geral à ideia de correspondência diz respeito à problemática noção de que nossas ideias, proposições ou sentenças possam de alguma forma ser equivalentes aos fatos por elas descritos. Nesse sentido, o filósofo e matemático Gottlob Frege afirma que "comparar uma ideia com a coisa só seria possível se a coisa também fosse uma ideia […] é absolutamente essencial que a realidade seja distinta das ideias. Mas então não pode haver completa correspondência, uma verdade completa. Então nada seria verdadeiro; pois aquilo que é apenas parcialmente verdadeiro é falso. A verdade não pode tolerar mais ou menos" [3].

Se prestarmos atenção naquilo que efetivamente fazemos quando defendemos nossos pontos de vista, perceberemos que nossas ideias e proposições são embasadas em outras ideias e proposições. Uma tese ou teoria é aceitável, nesse sentido, quando é acompanhada por uma sequência de razões que a justifiquem de forma coerente. Karl Popper afirma que "se exigimos que a justificação se realize por uma argumentação através de raciocínios, no sentido lógico da expressão, então nos comprometemos com a concepção de que somente se pode justificar os enunciados por meio de outros enunciados" [4]. Essa perspectiva leva-nos à teoria da verdade como coerência ou como justificação, para a qual a corroboração de um enunciado é dependente da totalidade de enunciados que o precedem e o sustentam. Essa concepção também está associada ao que na epistemologia e ontologia chamamos de holismo, ou seja, a ideia de que a determinação de todo ente é dada pela sua relação com a totalidade (holos significa em grego especificamente "todo"). Nesse sentido, G. W. F. Hegel, cujo sistema filosófico representa o melhor exemplo de holismo na modernidade, afirma em sua "Fenomenologia do espírito" que "o verdadeiro é o todo" (Das Wahre ist das Ganze).

No âmbito da teoria do Direito, o representante contemporâneo dessa concepção coerentista e holística é Dworkin. A sua tese do Direito como integridade consiste em reconhecer que a adequação de determinada interpretação jurídica ocorre na medida em que esta se revele como a mais coerente em relação à totalidade do sistema legal e de precedentes no exercício do romance em cadeia que é por ele proposto. Na medida em que a interpretação em geral é um processo normativo onde se demanda por justificações ao invés de causas, o autor expandirá a sua concepção coerentista e holística para outros campos normativos como o da moral, de maneira a desenvolver em Justice for hedgehogs uma teoria que integre a sua teoria do Direito com a sua concepção ética, moral e política.

O desafio comum à teoria coerentista da verdade é o de que, se o critério e definição da verdade constituem a coerência interna de um determinado conjunto de proposições, seria possível tornar qualquer proposição coerente com outras, pois qualquer conjunto de proposições que mostrem coerência entre si passaria pelo teste de não contradição. Outra crítica plausível à tese da verdade como coerência diz respeito ao vício de circularidade: afinal, se não há um elemento externo que sirva de fundamento ao conjunto de proposições coerentes entre si, corremos o risco de repetir as premissas na conclusão de nossos raciocínios.

A terceira teoria da verdade que gostaria de destacar é a corrente pragmatista. A versão mais crua dessa corrente é associada à ideia de que a verdade consiste naquilo que é útil. Assim, determinada proposição X é verdadeira sse é útil. William James afirma nesse sentido que "a posse de pensamentos verdadeiros significa em qualquer lugar a posse de inestimáveis instrumentos de ação" [5] e que "o verdadeiro é o nome de qualquer coisa que se prove boa em termos de crença" [6]. De acordo com o pragmatismo de autores como James, John Dewey e Richard Rorty, a linguagem é uma ferramenta que utilizamos de acordo com as nossas necessidades, e não um mero "espelho da natureza". Para Rorty, "quando os pragmatistas identificaram a verdade com 'aquilo que acreditaremos se continuarmos a investigar sob a presente luz' ou 'aquilo que melhor para nós acreditarmos' ou com 'assertividade garantida', eles pensaram estar seguindo os passos de Mill e fazendo pela ciência o que os utilitaristas fizeram pela moral — fazendo dela algo que você pode usar ao invés de algo que poderia meramente respeitar, algo contínuo com o senso comum ao invés de algo o qual poderia ser tão remoto do senso comum quanto a mente de Deus" [7].

O representante mais conhecido do pragmatismo na teoria do Direito é Richard A. Posner. Para o autor, "o pragmatismo deve ser entendido como a disposição de basear as decisões públicas em fatos e consequências, não em conceitualismos e generalizações" [8].

O grande problema do conceito pragmático de verdade é que, se se define a utilidade como critério daquilo que é verdadeiro, precisaremos adicionar premissas que explicitem e justifiquem o que se entende por utilidade neste contexto. Deve-se destacar, todavia, que o pragmatismo é uma corrente multifacetada, cujas principais críticas devem ser dirigidas especificamente a cada autor. Como comenta Engel, algumas teorias pragmatistas, "quando somadas ao coerentismo, são mais próximas do idealismo e teorias epistêmicas da verdade; outras, quando incluem uma concepção de uma correspondência ideal com a realidade e uma visão realista das condições da verdade, são mais próximas do realismo; e algumas outras, como veremos, flertam com o relativismo. Mas, no momento, podemos concluir que o pragmatismo é, na melhor das hipóteses, uma concepção da verdade bastante instável" [9].

Afinal, qual a importância do debate acerca da verdade no âmbito jurídico? Se essa questão for direcionada à dimensão teórica, percebemos que as distintas teorias do Direito e da interpretação jurídica carregam consigo de forma explícita ou implícita concepções sobre o tema, como os parágrafos acima tentam de forma muito sintética indicar. E o que dizer sobre a prática? Bem, o discurso cotidiano dos juristas não está dissociado de concepções teóricas. Como os textos do professor Lenio Streck denunciam [10], a prática jurídica brasileira apresenta reiteradamente idiossincrasias cuja origem está na reprodução de confusões conceituais, ainda que de forma silenciada.

Se afirmamos que os juízes possuem livre convencimento, por exemplo, pressupomos uma concepção relativista acerca da possibilidade de avaliação de provas ou interpretação dos códigos. Caso contrário, do que serviria a noção de liberdade nesse caso? Quando o CNJ propõe que temas como pragmatismo, análise econômica do Direito e economia comportamental devem integrar, em detrimento de outras teorias, as provas para juízes e quando o seu presidente afirma que a LINDB consagra "o pragmatismo e seus alicerces, o antifundacionalismo, contextualismo e consequencialismo", percebemos que os problemas aqui abordados repercutem (positiva ou negativamente) na formação e, portanto, na própria prática judicial [11].

O que importa é reiterar o fato de que o Direito não é um fenômeno isolado das demais instâncias teóricas e que, ao contrário, nossas concepções, ainda que não tematizadas, sobre problemas filosóficos influenciam diretamente a nossa prática. Muito mais poderia ser dito acerca das teorias da verdade e sua relação com a teoria do Direito. Para aqueles que se interessarem pelo tema e que procuram uma introdução, indico o agradável livro de Simon Blackburn "Verdade: um guia para os perplexos" [12]. Em nota, mais opções [13].

Desde o texto precedente sobre metaética acima referido, propus revisitar temas atuais de filosofia e que se revelam elementares para os debates no âmbito da teoria do Direito. Por óbvio, estes parágrafos estão longe de esgotar os tópicos e desde já peço desculpas por eventuais abreviações de teorias. No entanto, se com estes breves textos eu conseguir despertar a curiosidade daqueles que até então não tiveram contato com tais problemas ou ao menos fazer indicações úteis de bibliografia e de linhas argumentativas, meu propósito foi cumprido.

 


[2] Desde já, remeto o leitor ao verbete Verdade, em "STRECK, Lenio. Dicionário de Hermenêutica. 50 verbetes fundamentais da Teoria do Direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte: Editora Letramento, 2020, p. 437 e ss".

[3] FREGE, Gottlob. The Thought: A Logical Inquiry. Mind, vol. 65, no 269 (jul. 1956), p. 291. Tradução nossa.

[4] POPPER, Karl. A lógica da investigação científica. (In:) Os Pensadores. São Paulo: Abril S.A. Cultural e Industrial, 1975, p. 263-384, p. 316.

[5] JAMES, William. Pragmatism. Dover publications Inc. 1995, p. 86.

[6] JAMES, William. The meaning oftruth. London: Longmans and Green, p. 42.

[7] RORTY, Richard. Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton University Press, 2009, p. 308.

[8] POSNER, Richard A. A problemática da teoria moral e jurídica. São Paulo: Martins Fontes, 2012, p. 358.

[9] ENGEL, Pascal. Truth. Acumen Publishing limited. 2002, p. 37.

[12] BLACKBURN, Simon. Verdade: um guia para os perplexos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.

[13] "BLACKBURN, Simon, SIMMONS, Keih (eds.), Truth. Oxford: Oxford University Press, 1999";
ENGEL, Pascal. RORTY, Richard. Para que serve a verdade? São Paulo: Editora UNESP, 2008; "ENGEL, Pascal. ¿Qué es la verdad?: Reflexiones sobre algunos truísmos. Madrid: Amorrotu editores, 2008"; HABERMAS, Jürgen. Verdade e Justificação: Ensaios filosóficos. São Paulo: Edições Loyola, 2004; "KIRKHAM, Richard L. Teorias da verdade: Uma introdução crítica. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2003".

Autores

  • Brave

    é advogado, pós-doutorando em Direito Público na Unisinos, mestre e doutor em Filosofia pela PUC-RS e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!