Questão de Gênero

Retrospectiva de 2021 no enfrentamento da violência contra as mulheres (Parte 2)

Autores

  • Patricia Burin

    é delegada de polícia no estado de Santa Catarina mestra em Direito Constitucional e pós-graduada em Segurança Pública e Criminologia.

  • Fernanda Moretzsohn

    é delegada de polícia no estado do Paraná pós-graduada em Direito Público e pós-graduanda em Direito LGBTQ+.

  • Daniele de Sousa Alcântara

    é oficial da Polícia Militar do Distrito Federal coordenadora de Políticas de Prevenção de Crimes contra a Mulher e Grupos Vulneráveis da Senasp/MJSP doutora em Sociologia mestra em Educação especialista em Segurança Pública e Cidadania e graduada em Segurança Pública.

14 de janeiro de 2022, 8h00

Na última coluna, mencionamos que 2021 foi um ano de muitas inovações legislativas no que tange ao enfrentamento à violência contra as mulheres e abordamos tais avanços. Dando continuidade ao tema, neste artigo vamos nos debruçar sobre algumas medidas de outras naturezas que também representaram importantes progressos nessa seara.

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A Constituição Federal preconiza que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações (artigo 5º, I), estabelecendo o princípio da igualdade entregêneros. O ideal do constituinte é a igualdade material, não bastando a igualdade de todos perante a lei. O que a Constituição deseja alcançar é equidade. É, entretanto, inegável que em nosso modelo de sociedade homens e mulheres ainda não se encontram nessa condição de paridade. Daí a importância da adequada aplicação do Direito e da implementação de políticas públicas que reduzam as discriminações e as distinções entre gêneros.

Nesta linha de ideias, o Conselho Nacional de Justiça lançou o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero [1]. O trabalho, que foi elaborado em parceria com a Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados, tem como referência o Protocolo para Juzgar con Perspectiva de Género, concebido pelo Estado do México após determinação da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Segundo ele mesmo esclarece, "traz considerações teóricas sobre a questão da igualdade e também um guia para que os julgamentos que ocorrem nos diversos âmbitos da Justiça possam ser aqueles que realizem o direito à igualdade e à não discriminação de todas as pessoas, de modo que o exercício da função jurisdicional se dê de forma a concretizar um papel de não repetição de estereótipos, de não perpetuação de diferenças, constituindo-se um espaço de rompimento com culturas de discriminação e de preconceitos".

O documento apresenta conceitos relevantes relacionados à perspectiva de gênero: sexo, gênero, identidade de gênero, sexualidade. Igualmente aborda questões centrais relacionadas à desigualdade entre os gêneros, tais como: desigualdades estruturais e relações de poder, reconhecendo a necessidade de que mulheres não se encontrem em situação de subordinação em relação aos homens. Ademais, observa que mulheres negras sofrem ainda mais opressões, na medida em que são submetidas a percepções racistas de papéis de gênero (ao discriminante raça, soma-se o discriminante gênero).

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Também se discutiu, no referido documento, a divisão sexual do trabalho, no sentido de que ela é simultaneamente reflexo de desigualdades e perpetradora delas, pois o trabalho dito "masculino" (trabalho produtivo, que se dá na esfera pública, remunerado) é mais valorizado em relação ao "feminino" (trabalho de manutenção da vida e de reprodução da sociedade). O documento aborda, ainda, estereótipos relacionados ao gênero e alerta que eles podem influenciar a avaliação de um fato jurídico em trâmite pelo devido processo legal. O texto exemplifica essas atitudes citando a situação de a magistrada ou o magistrado, em casos de violência sexual, ao mesmo tempo em que coloca em dúvida os relatos das vítimas (minimiza relevância), passa a supervalorizar o comportamento delas antes do momento da violência, ou a roupa que elas usavam (maximiza relevância), podendo ser a equipe do Judiciário influenciada pela ideia preconcebida de que cabe às mulheres recato e decência, ou, ainda, quando se atribui maior peso ao testemunho de pessoas em posição de poder, desconsiderando o testemunho de mulheres e meninas em casos de violência doméstica ou em disputas de guarda envolvendo acusações de alienação parental, a partir da ideia preconceituosa de que as mulheres são destemperadas, vingativas, volúveis e menos racionais do que os homens.

A respeito da alienação parental, destaca-se que a atual legislação brasileira (Lei nº 12.318/2010) não é reproduzida em outros países, pois as regras nela veiculadas foram vistas como um retrocesso no campo da proteção às mulheres e aos demais grupos vulneráveis, em específico, crianças e adolescentes. São constantes movimentos políticos para tentar a revogação da Lei de Alienação Parental, uma vez que tem sido constante seu uso como mais um caminho para que seja cometida violências contra as mulheres, com base em falsas denúncias por genitores abusadores que acusam as mães de supostas "alienações". Há até mesmo corrente que defende que a Lei Maria da Penha e o Estatuto da Criança e do Adolescente atendem em sua aplicação integral a uma possível demanda de legislações como a Lei de Alienação Parental. Esse tipo de situação não pode ser ignorada pelo julgador.

Voltando ao protocolo (cujo estudo se recomenda), vale salientar ter ele a inquestionável qualidade de reconhecer a necessidade de criar uma cultura jurídica emancipatória e de reconhecimento de direitos de todas as mulheres e meninas, o que deve não só nortear juízes e juízas, mas todos os operadores do Direito em todas as suas esferas (familiar, penal, trabalhista [2], dentro e fora do processo).

Partiu também do Poder Judiciário o segundo avanço que se analisará neste artigo: a decisão liminar da ADPF nº 779, proposta pelo Partido Democrático Trabalhista, em que se impugnava a utilização da tese popularmente conhecida como "legítima defesa da honra". Em sua decisão (que foi referendada à unanimidade pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal), o ministro Dias Toffoli concedeu medida cautelar para: 1) firmar o entendimento de que a tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, por contrariar os princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da CF), da proteção à vida e da igualdade de gênero (artigo 5º, caput, da CF); 2) conferir interpretação conforme à Constituição aos artigos 23, inciso II, e 25, caput e parágrafo único, do Código Penal e ao artigo 65 do Código de Processo Penal, de modo a excluir a legítima defesa da honra do âmbito do instituto da legítima defesa e, por consequência; 3) obstar à defesa que sustente, direta ou indiretamente, a legítima defesa da honra (ou qualquer argumento que induza à tese) nas fases pré-processual ou processual penais, bem como no julgamento perante o Tribunal do Júri, sob pena de nulidade do ato e do julgamento.

Por muitos anos essa tese de defesa, que jamais encontrou respaldo legal ou constitucional, foi utilizada para justificar assassinatos de mulheres sob a alegação de que a conduta anterior delas teria levado o autor a praticar o crime. Convencionou-se chamar esse estratagema de "legítima defesa da honra", isto é, fazia-se incidir o instituto da legítima defesa quando a pessoa perpetradora da violência tivesse agido "em defesa de sua honra". Muitas foram as absolvições por esse fundamento e os Tribunais de Justiça ora validavam, ora anulavam, veredictos do Tribunal do Júri nesse sentido (discutindo o princípio da soberania dos vereditos).

Ocorre que, como observado pelo ministro relator, "legítima defesa da honra" é uma atecnia. Não se configura, juridicamente, o instituto da legítima defesa (nos termos preceituados pelo Código Penal). Há, isso sim, ataque. "Aquele que pratica feminicídio ou usa de violência, com a justificativa de reprimir um adultério não está a se defender, mas a atacar uma mulher de forma desproporcional de forma covarde e criminosa" [3]. Além disso, a tese é um recurso argumentativo que imputa à vítima a causa do crime, o que é, nos adjetivos do relator, desumano, odioso, cruel. Retira-se da pessoa que perpetrou a violência a responsabilidade por sua conduta, imputando-a à vítima que, ao não se comportar de modo socialmente adequado, se coloca perante a sociedade como merecedora do mal sofrido. A mulher é tratada como objeto passível de posse pelo parceiro, uma "coisa" de que ele pode dispor a seu bem prazer.

A desigualdade de gênero exteriorizada nesse pensamento é evidente. A decisão, assim, lança luzes sobre a naturalização existente das violências contra as mulheres, sendo, por isso, mencionada aqui como substancial avanço.

Importante, ainda, mencionar a edição do Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio que, segundo o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, constitui um mecanismo de cooperação entre diferentes órgãos e poderes, buscando garantir a implementação de medidas de prevenção e combate ao feminicídio, além de assistência às mulheres em situação de violência, abrangendo. as vítimas de feminicídio tentado, tanto quanto as vítimas indiretas (familiares e filhos) [4]. O plano foi instituído pelo Decreto Presidencial nº 10.906, de 20 de dezembro de 2021 [5], tendo a qualidade de buscar integrar as ações de enfrentamento à violência contra as mulheres, percebendo se tratar de um processo complexo, que demanda respostas intersetoriais, passando pela conscientização da população, pela produção de dados e gestão de informações. O plano ainda apresentará em seu plano de trabalho ações e metas específicas a serem cumpridas pelo Brasil.

Uma das diretrizes do plano que merecem menção expressa neste texto é aquela relacionada ao incentivo à denúncia de todas as formas de violência contra as mulheres. Ainda que no contexto da violência doméstica e familiar contra as mulheres permaneçam crimes de ação penal privada e de ação penal pública condicionada à representação (em que as autoridades não podem atuar sem pedido ou autorização da vítima), tem-se notado certa tendência à adoção da regra geral do sistema de persecução penal, segundo a qual os crimes são processados, independentemente da vontade da vítima. A título de exemplo, vale mencionar que os crimes sexuais são agora processados em ação penal pública incondicionada e o inovador crime do artigo 147-B do CP (violência psicológica) também não mais demanda condição alguma para permitir a atuação das autoridades.

Por fim, mencionamos a criação do Formulário Nacional de Avaliação de Risco, mais um instrumento da Política Judiciária Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres. Foi criado por meio da Resolução Conjunta CNJ/CNMP nº 5, de 3 de março de 2020, e instituído pela Lei nº 14.149/2021.

O formulário é um questionário composto de duas partes: a primeira traz as informações sobre a vítima, sobre o agressor e o histórico de violência; a segunda parte traz uma avaliação a ser feita por um profissional capacitado e avalia os riscos que forem identificados e inclui sugestões de encaminhamentos. A ideia é que tal formulário seja preenchido quando do primeiro contato da vítima com a rede de apoio, que se dá, normalmente, no âmbito da Polícia Judiciária, quando do registro do boletim de ocorrência e do pedido de medidas protetivas. Deverá ser anexado ao inquérito policial e seguirá ao Poder Judiciário.

Não apenas a polícia judiciária poderá se utilizar do formulário, ele serve também como base para outros órgãos atuantes no combate à violência contra a mulher, a fim de contabilizar dados estatísticos e orientar políticas públicas. O Formulário Nacional de Avaliação de Risco, para além de contabilizar dados estatísticos, tem o importante papel de identificar fatores de risco e fatores que levam a vítima a continuar no ciclo de violência, podendo até mesmo evitar que se atinja o ápice da violência contra a mulher (feminicídio). Vale pontuar que o Ministério da Justiça e Segurança Pública tem instituído cursos com vistas a treinar os profissionais do sistema de persecução penal para a adequada aplicação do Formulário e do Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio.

Diante de tantas inovações legislativas [6] e políticas públicas criadas para o enfrentamento à violência doméstica e familiar contra as mulheres, força nos questionarmos a suficiência desses mecanismos.

Acreditamos ser necessário dar mais visibilidade ao tema para que mulheres se encorajem a romper o ciclo da violência. O incentivo à denúncia de todas as violências é claramente necessário. Foi-se há muito o tempo em que não se deveria "meter a colher em briga de marido e mulher". A violência contra as mulheres é um processo social de repercussão generalizada, não havendo apenas reflexos na esfera íntima da vítima, mas, sim, no âmbito de toda a sociedade.

A violência contra as mulheres deve, assim, ser enfrentada sob múltiplas frentes, em especial a preventiva e a repressiva. É, pois, necessário conjugar medidas legislativas e de outras naturezas, como as mencionadas neste texto.

Ademais, um ponto que merece ser trabalhado é o da maior participação dos homens na discussão e também na solução e enfrentamento à violência. Assim, além das inovações legislativas e políticas públicas alcançadas, precisamos convocar os homens para participarem ativamente dessa luta, que é benéfica a toda a sociedade.

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    é delegada de polícia no Estado de Santa Catarina, mestra em Direito Constitucional e pós-graduada em Segurança Pública e Criminologia.

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    é delegada de polícia no Estado do Paraná, pós-graduada em Direito Público e pós-graduanda em Direito LGBTQ+.

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    é oficial da Polícia Militar do Distrito Federal, coordenadora de Políticas de Prevenção de Crimes contra a Mulher e Grupos Vulneráveis da Senasp/MJSP, doutora em Sociologia, mestra em Educação, especialista em Segurança Pública e Cidadania e graduada em Segurança Pública.

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