Escritos de Mulher

O Ministério Público e o arrendamento de terras indígenas

Autor

  • Kenarik Boujikian

    é desembargadora aposentada do TJ-SP especialista em Direitos Humanos membra da Associação de Juízes para a Democracia (AJD) e da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD).

14 de janeiro de 2022, 16h41

A Constituição Federal de 1988 (CF) é o marco dos novos tempos, que estabelece o Brasil como um Estado democrático de Direito. Destaco neste espaço apenas a inovação na temática indígena e sobre o papel do Ministério Público.

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No novo arcabouço estruturante do Estado brasileiro, encontramos os direitos dos povos indígenas, protagonistas desta página, com o acolhimento do direito congênito às terras tradicionais, reconhecendo e apontando que a terra é a essencialidade para os povos indígenas e o eixo fundante do princípio da diversidade e alteridade.

O constituinte destinou ao título VIII — Ordem Social — para tratar dos direitos indígenas e colocou fim ao conceito de assimilação e tutela, antes ainda do paradigmático documento internacional, a Convenção 169 sobre Povos Indígenas e Tribais da Organização Internacional do Trabalho (OIT), assinado em Genebra em 1989, que encerrou a concepção de tutela e assimilação, após a qual outras normas internacionais e regionais se somaram, como a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas etc.

No capítulo VIII, o poder constituinte de 1988 minuciou os direitos indígenas, sobre o alicerce da terra indígena e seu usufruto exclusivo, conceituando e limitando, inclusive para a própria União.

Na mesma normativa, estipulou prazo para que as demarcações de terras fossem realizadas (artigo 67 das disposições constitucionais transitórias, da CF), mas, como sabemos, o prazo foi descumprido, pois apenas um terço das terras foi demarcada. Em inúmeros casos sequer foram instaurados procedimentos no âmbito do Poder Executivo; muitos outros estão paralisados nos escaninhos do Ministério da Justiça e órgãos de sua estrutura, como a Funai, e tantos outros processos estão paralisados há décadas nos tribunais, o que apenas aguça os conflitos que se retroalimentam da inoperância dos poderes e instituições da República e mostram o enorme grau de violação que perpetua em relação aos povos indígenas.

O Brasil é um país pluriétnico, com uma população aproximada de 900 mil indígenas, com cerca de 305 povos e 274 línguas indígenas e cabe aos poderes de Estado e suas instituições o dever de cumprimento às determinações que preservem as formas de organização social, línguas, costumes, crenças, tradições, cultura etc., o que só pode acontecer em suas terras.

O Ministério Público, por sua vez, recebeu do Constituinte a atribuição de defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, tal como grafado no artigo 127 da Constituição, e, na questão indígena, de forma específica, recebeu, ainda, a obrigação de proteção direta aos direitos e interesses indígenas, com a atuação obrigatória em todos os atos do processo interpostos pelos indígenas, suas comunidades e organizações, legitimados que são ao ingresso em juízo (artigo 232, CF).

Consta-se, pois, que o Constituinte deu relevo especialíssimo às causas indígenas e espera-se que os membros do Ministério Público exerçam sua função essencial à Justiça no que diz respeito aos direitos indígenas, de forma efetiva, o que exige uma posição proativa.

Nem sempre isto ocorre e, particularmente no que diz respeito aos direitos indígenas, em que pese a atuação combativa e admirável de muitos e muitos membros dessa instituição, ainda vemos violações, ao invés de proteção aos direitos.

Refiro-me, neste instante, especificamente à questão das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas, que são bens da União (artigo 20, XI e 231 da CF), e a normativa constitucional relativa ao direito à posse permanente e ao usufruto das terras.

A Constituição marcou as terras indígenas com a insígnia de serem de uso exclusivo pelos indígenas e o Estatuto do Índio, Lei 6.001/73, determinou em seu artigo 18:

"As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico que restrinja o pleno exercício da posse direta pela comunidade indígena ou pelos silvícolas.
§ 1º Nessas áreas, é vedada a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutos, assim como de atividade agropecuária ou extrativa" (grifos da autora).

O texto é claro e não gera qualquer dúvida. Ocorre que, com a omissão ou aquiescência do Ministério Público, as terras indígenas estão sendo arrendadas, ao arrepio constitucional e legal.

No final de 2021, notícias chegaram do Rio Grande do Sul de violência nas terras de Nonoai, Ventara, Carreteiro, Guarita e Serrinha, fomentada pelos arrendamentos de terra. E sabe-se que há, inclusive, termo de ajustamento de conduta (TAC) pactuado com o Ministério Público Federal.

Mesmo com vedação absoluta, o próprio Ministério Público, que tem a função constitucional de defesa dos povos indígenas e da Constituição, infringe a norma ao admitir o arrendamento nessas terras ou mesmo ao fechar os olhos para esse fato.

O arrendamento não é uma prática nova e por certo não foi introduzida para salvaguardar os interesses dos povos indígenas. Começou bem antes da CF de 1988 e muitos estão a explorar os bens da União, cujo usufruto é, repita-se, exclusivo dos povos originários.

Sabe-se, igualmente, que o arrendamento está sendo feito, não só no RS, mas em vários estados, muitas vezes formalizado e até com TAC, mas outras vezes escamoteado por meio de associações, organizações de composição mista de indígenas e não indígenas, cooperativas e às vezes com roupagem de parcerias e prestação de serviços.

Não é aceitável que o Ministério Público descumpra a CF. Como disse em certa feita a Valdelice Veron (filha do cacique Marcos Veron, assassinado no MS), não basta ter a legislação de proteção, "é preciso fazer o texto falar", ou seja, tornar realidade a proteção; tornar o sistema democrático em um fato, vivido por cada um dos 900 mil indígenas.

O constituinte disse que as terras não eram negociáveis, nem pela própria União, pois a terra é a base fundamental de sua existência e sobrevivência. Alugar a terra indígena é negociar a própria vida indígena, pois na terra e no seu usufruto é que se encontra o sentido da vida comunal e existencial destes tantos povos.

É necessário que os bens da União sejam preservados.

É necessário que os que arrendam as terras indígenas sejam responsabilizados.

É preciso que o Ministério Público, diante da magnitude de suas funções constitucionais, não permita que a prática de arrendamento prossiga.

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