INTERESSE PÚBLICO

A concessão de hospitalidades e a divulgação de compromissos institucionais

Autor

  • Cristiana Fortini

    é professora da UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) diretora jurídica da Cemig e presidente do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo).

13 de janeiro de 2022, 8h02

No final de 2021, foi editado o Decreto 10.889, que regulamenta dois dispositivos da Lei 12.813/13, responsável pela disciplina jurídica sobre o conflito de interesse no exercício de cargo ou emprego do Poder Executivo Federal e os impedimentos posteriores ao fim do vínculo.

Spacca
O Decreto 10.889/21 regulamenta o inciso VI do art. 5º da referida Lei, que diz configurar conflito de interesse receber presente de quem tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe, fora dos limites e condições estabelecidos em regulamento, e o art. 11, que prevê o dever de alguns agentes públicos divulgarem, diariamente, via internet, sua agenda de compromissos públicos.

De início, importa mencionar que, ao nosso sentir, apesar de novo, o decreto já merece revisão, com vistas a aperfeiçoar sua redação, sobretudo pela imperiosa necessidade de se conferir clareza ao texto normativo que serve de baliza para a atuação dos agentes públicos por ele alcançados.

Os reflexos a que se sujeitam os agentes públicos acusados de ferir o standard fixado requerem atenção redobrada quando da elaboração da norma, em homenagem ao princípio da segurança jurídica e ao próprio interesse público.

Este artigo se concentrará em alguns aspectos do Decreto, sempre pontuando que se escreve com o intuito de contribuir para o aprimoramento do texto.

O Decreto tem a clara intenção de apartar presentes, que não podem ser recebidos, de brindes e sobretudo de hospitalidades, que, observadas as condições estabelecidas, podem ser oferecidas pelos agentes privados.

O conceito de hospitalidade é encontrado no inciso V do art. 5º do decreto, nos seguintes termos:

“oferta de serviço ou despesas com transporte, com alimentação, com hospedagem, com cursos, com seminários, com congressos, com eventos, com feiras ou com atividades de entretenimento, concedidos por agente privado para agente público no interesse institucional do órgão ou da entidade em que atua”

Observa-se a inclusão das atividades de entretenimento. Trata-se de “benefício” que costuma chamar a atenção da doutrina especializada no tema que usualmente a indica como exemplo do que não deve ser admitido a título de hospitalidade ou deve ser admitido sob certos rigores.

Até porque dificilmente se poderia imaginar como o interesse institucional poderia ser alcançado com, por exemplo, o oferecimento de ingressos para o Beach Park a agente público que está em representação institucional em evento no Estado do Ceará.

Fernanda Marra Vidigal[1], autora de excepcional artigo sobre o tema, recorda "o caso da UTStarcom Inc. (UTSI), empresa norte-americana que, na tentativa de obter e manter contratos com empresas estatais de telecomunicações na China, organizou e pagou para que os funcionários chineses viajassem para destinos turísticos nos Estados Unidos, incluindo Havaí, Las Vegas e Nova Iorque".

E vale recordar que se trata de situação alcançada pelo FCPA, Foreign Corrupt Pratice Act, que contém defesa afirmativa expressa, no sentido de se pagarem despesas razoáveis e com boa fé para agentes estrangeiros.[2] A Lei anticorrupção brasileira não traz referência expressa neste sentido, razão pela qual maior cuidado há de se adotar.

O Decreto nada fala sobre noites extras e a extensão de despesas de hospitalidade para acompanhantes dos agentes públicos. Trata-se de tema costumeiramente tratado expressamente em normas anticorrupção.[3]

Cuidados importantes não foram adotados pelo Decreto. Especialmente se ressente a falta de uma orientação mais precisa sobre a escolha do agente público que, por exemplo, terá sua passagem aérea custeada por entidade privada, para representar determinado órgão/ente público.

As boas práticas recomendam que, como regra, os convites sejam dirigidos ao ente/órgão público, cumprindo-lhe indicar o agente público. Assim, evita-se uma aproximação que pode não ser a mais adequada, ao menos em dado momento.

O art. 19 dispõe que as hospitalidades devem ser precedidas de autorização e fixa a necessidade de que se considerem os interesses institucionais e os riscos em potencial à integridade e à imagem do órgão ou entidade. Novamente, recuperando literatura sobre o tema[4], se sugere considerar a revisão do dispositivo para o estabelecimento de métricas mais objetivas, ainda que não exaustivas, a conduzir a decisão pela autorização ou não.  Assim, fatores como a existência de pedido formulado pelo privado à espera de um pronunciamento, que será exercido de forma discricionária por agentes daquele órgão/entidade, devem ser considerados e podem indicar a inadequação da oferta.

O art. 3º do Decreto 10.889/21 prevê que os órgãos e entidades do Poder Executivo Federal poderão realizar gestão de risco para identificar agentes públicos que, embora não se enquadrem nos incisos I a IV do art. 2º da Lei 12.813/13, participem de forma recorrente de decisão passível de representação privada de interesses. Caso venham a identificar esses agentes, eles estarão obrigados a divulgar diariamente, via internet, e nos moldes detalhados pelo Decreto (art.11) seus compromissos públicos.

Representação privada de interesse é a interação entre o agente privado e o agente público destinada a influenciar o processo decisório da administração pública federal, de acordo com interesse privado próprio ou de terceiros, individual, coletivo ou difuso, no âmbito de:

a) formulação, implementação ou avaliação de estratégia de governo ou de política pública ou atividades a elas correlatas;

b) edição, revogação ou alteração de ato normativo;

c) planejamento de licitações e contratos; e

d) edição, alteração ou revogação de ato administrativo;

Realizada a leitura conjunta do caput do art. 3º e o conceito de representação privada de interesses do inciso III, surgem algumas dúvidas.

A primeira envolve a opção de se tratar a gestão de risco, por meio da qual se poderia identificar outros agentes públicos que recorrentemente tem compromissos públicos em que há a representação privada de interesse, como faculdade.  Não seria o caso de determinar aos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal a realização de gestão de risco, que de resto é necessária sempre com vistas à mitigação de comportamentos ofensivos ao interesse público e ao aprimoramento de fluxos e processos?

Mas há outras dúvidas. O inciso III do art. 5º parece exaurir o âmbito em que se configuraria a representação privada de interesses e consequentemente delimitação  dos casos em que haveria a necessidade de divulgação da agenda de compromissos. Assim, fora dos cenários do inciso III do art. 5º, quais sejam:  a) formulação, implementação ou avaliação de estratégia de governo ou de política pública ou atividades a elas correlatas; b) edição, revogação ou alteração de ato normativo; c) planejamento de licitações e contratos; e d) edição, alteração ou revogação de ato administrativo, não se poderia falar em representação privada de interesse.  Imaginemos o caso de uma empresa que quer apresentar um produto para que os agentes públicos o conheçam, o que pode, naturalmente, impactar uma eventual e futura licitação que, naquele momento, não está em curso.  A audiência (usando o conceito da alínea d, inciso I do art. 5º) não deveria ser divulgada?

Por outro lado, há um rol de situações que não são consideradas representação privada de interesses (§1º do art. 5º). 

Entre as situações descritas está a prática de ato no âmbito do processo judicial. Ora, como seria possível que um agente público realizasse um ato no processo judicial e que esse ato ao mesmo tempo pudesse configurar representação privada de interesse diante do conceito criado pelo Decreto? Se há processo judicial, já não teria havido o “processo decisório da administração pública federal” ? Ou não seria a ausência de uma decisão a razão de ser do enfrentamento judicial?

Por outro lado, no mesmo inciso III se excetuam também os atos praticados no âmbito de processos administrativos. Aqui a dúvida está no motivo para que eles sejam excetuados.  

Nos processos administrativos, instaurados de ofício ou por provocação, haverá decisão/pronunciamento de agentes públicos. Portanto, há o ambiente para a “representação privada de interesse”.

O inciso IV do mesmo §1º também chama atenção. Segundo a regra, também não se considera representação privada de interesse “a prática de atos com a finalidade de expressar opinião técnica ou de prestar esclarecimentos solicitados por agente público, desde que a pessoa que expresse a opinião ou o esclarecimento não participe de processo de decisão estatal como representante de interesses”.  O final da norma soa incompreensível.  Como alguém que, ao que parece é agente privado, expressaria opinião ou esclarecimento a pedido de agente público e ao mesmo tempo participaria de decisão estatal? Mais, o represente de interesse, à luz do conceito do inciso II do art. 5º, participa de decisão estatal?

Parece por fim ser o caso de reavaliar possíveis problemas redacionais. O enorme art. 5 º é repleto de conceitos. Entre os conceitos estão os de compromisso público e suas espécies (inciso I). Entre as espécies de compromisso público está a audiência, referida na alínea d do inciso I do citado art. 5 º como compromisso presencial ou telepresencial do qual participe agente público em que haja representação privada de interesse.

Ocorre que a audiência não apenas é referida novamente no § 3º do mesmo art. 5º, como é conceituada de outro modo em dois incisos.  Talvez a ideia do parágrafo tenha sido a de dizer que o conceito de audiência também alcança as situações descritas nos seus incisos, mas a dúvida não milita a favor do interesse público.

O conceito de presente também parece insuficiente (inciso VIII do art. 5º do Decreto) Reconheço que o problema não seria apenas do Decreto 10.889/21, já que remonta à Lei 12.813/13, que diz caracterizar conflito de interesse “receber presente de quem tenha interesse em decisão do agente público ou de colegiado do qual este participe fora dos limites e condições estabelecidos em regulamento”. A hipótese de recebimento de presente por agente público para influenciar a decisão de outro agente público não se encaixa no conceito de conflito de interesse. Não seria o caso de também caracterizar?

Enfim, essas as considerações iniciais.


[1] VIDIGAL, Fernanda Marra. Política relacionada ao oferecimento de hospitalidade, brindes e presentes a agente público nacional ou estrangeiro à luz da lei anticorrupção brasileira. In: FERES, Marcelo; FORTINI, Cristiana; LARA, Fabiano. Estado e empresa: Encontros e Desencontros em matéria de corrupção e Programas de Integridade. Belo Horizonte: D’Placido.2019 p.173.

[2] Apesar de não haver defesa afirmativa expressa na Lei 12.846/13, concordamos com Fernanda Marra Vidigal, no sentido de que a manifestação da CGU a respeito do tema, por meio das Diretrizes para empresas privadas, reconhecendo que o pagamento de hospitalidades é prática importante e usual para a divulgação de produtos e marcas está em sintonia com a melhor interpretação da lei, desde que adotadas algumas posturas e cuidados. BRASIL. Controladoria-Geral da União. Programa de Integridade: Diretrizes para Empresas Privadas. Disponível em :https//www.cgu.gov.br/Publicacoes/ética-e-integridade/arquivos/programa-de-integridade-diretrizes-para-empresas-privadas. 

[3] TILLIPMAN, Jessica. Gifts, Hospitality & the Government Contractor. Briefing Papers, No. 14-7, Junho de 2014; GW Law School Public Law and Legal Theory Paper No. 2014-35; GW Legal Studies Research Paper No. 2014-35. Disponível em SSRN: <http://ssrn.com/abstract=2467247>. Acesso em 10 de janeiro de 2022.

[4] TILLIPMAN, Jessica. Gifts, Hospitality & the Government Contractor. Briefing Papers, No. 14-7, Junho de 2014; GW Law School Public Law and Legal Theory Paper No. 2014-35; GW Legal Studies Research Paper No. 2014-35. Disponível em SSRN: <http://ssrn.com/abstract=2467247>. Acesso em 10 de janeiro de 2022.

Autores

  • Brave

    é advogada, professora da Universidade Federal de Minas Gerais, ex-controladora-geral e ex-procuradora-geral-adjunta de Belo Horizonte, especialista (pós-graduação) em mediação, conciliação e arbitragem, visiting scholar na George Washington University, professora visitante na Universidade de Pisa, doutora em Direito Administrativo e vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA).

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