Opinião

O termo de compromisso de cessação (TCC) e seus reflexos na esfera penal

Autor

  • Gabriel Domingues

    é advogado criminalista na Fernando José da Costa Advogados pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

13 de janeiro de 2022, 7h12

São inegáveis os avanços do programa de leniência brasileiro. Conforme destaca a professora Ana Paula Martinez, em sua obra "Repressão a cartéis. Interface entre direito administrativo e direito penal" [1]  cujo rico conteúdo inspira o presente trabalho —, desde a criação do programa, em 2000, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) passou a impor multas recordes para as condutas de cartel, ao passo em que a Justiça Criminal também passou a impor penas mais severas (superiores a cinco anos de reclusão) àqueles que praticassem tal conduta.

Avançaram ainda os números de apurações a respeito de tal conduta, tanto no âmbito administrativo quanto criminal, o que ocasiona maior receio de detecção. O próprio cenário em que se deram tais progressos se mostrou possível a partir de uma regulamentação infralegal do instituto [2], além, é claro, da previsão legal do tipo penal e da infração administrativa pela Lei 12.529/2011.

Sem embargo, ainda existem diversos desafios que deverão ser necessariamente enfrentados para melhoria do programa, no sentido de que "a delação perante a Superintendência seja tida como a estratégia dominante do agente racional" [3].

Entre os desafios, busca-se abordar, no presente estudo, aspectos relacionados precipuamente àquele atinente à intersecção entre o chamado termo de compromisso de cessação de condutas, conhecido pela sigla TCC, e o próprio acordo de leniência, com enfoque direcionado a um dos requisitos do termo que reflete diretamente na esfera penal.

A respeito da introdução do instituto do TCC em nosso ordenamento, anota Ana Paula Martinez que a possibilidade de suspensão de investigações que tratavam da suposta formação de cartéis foi inicialmente incluída pela Lei 8.884/1994, sendo excluída na sequência, na ocasião da introdução do acordo de leniência na legislação brasileira, no ano 2000 (Lei 10.149/2000). Tal exclusão se dava justamente para que o recém introduzido acordo de leniência não fosse desincentivado pelo próprio termo de cessação.

Passados alguns anos, já mais bem estruturado e consolidado o programa de acordos de leniência, a Lei 11.482/2007, em seu artigo 16, tratou de reintegrar o TCC ao ordenamento jurídico, sendo o mesmo mantido pela Lei 12.529/2011 (artigo 85).

Em recente estudo publicado pelo próprio Cade [4], denota-se um considerável aumento de TCCs celebrados entre os anos de 2015 e 2018, apresentando queda substancial em 2019 (queda essa atribuída a período em que o tribunal do conselho esteve sem o quórum necessário para homologação de requerimentos para celebração do termo).

Tais acordos, como se sabe, podem ser firmados tanto por pessoas físicas quanto por pessoas jurídicas. Como destaques dos benefícios decorrentes de tal instituto, o próprio estudo da autarquia federal aponta que "para o administrado, a principal função do acordo é suspender o processo administrativo, além de ter acesso a benefícios como a redução do valor da multa que pagaria como resultado de eventual condenação ao final do processo administrativo e o arquivamento do processo em relação a ele quando do julgamento final do caso, desde que sejam atendidas todas as obrigações estabelecidas no acordo" [5].

Imperioso, nesse ponto, destacar o correto alerta da professora Ana Paula Martinez no sentido de que os incentivos aos TCCs, firmados com base em análise de conveniência e oportunidade do Cade [6], devem também se atentar para a preservação do próprio acordo de leniência, na medida em que, se muito elevado o fomento, aquelas pessoas físicas ou jurídicas membros de cartéis deverão optar por aguardar o início de eventual investigação para só então decidir-se pela assinatura do termo de compromisso.

Ocorre que é justamente dessa espécie de sistema de "freios e contrapesos" entre o TCC e o acordo de leniência que se origina tema de debate, concernente à exigência de "reconhecimento de participação na conduta" por parte do compromissário, conforme determina o artigo 185 [7] do regimento interno da autarquia federal.

Remonta à própria natureza de ato administrativo discricionário  lastreado na conveniência e oportunidade, conforme dispõe o artigo 85 da Lei 12.529/2011  a defesa que o Cade faz de tal exigência. O próprio parágrafo 14 do mesmo artigo 85 estabelece que caberá ao Cade definir normas complementares sobre o termo de compromisso de cessação.

Em uma primeira análise, recorrendo à própria natureza de ato discricionário, preconiza Celso A. Bandeira de Mello [8] que "ao agir discricionariamente o agente estará, quando a lei lhe outorga tal faculdade (que é simultaneamente um dever), cumprindo a determinação normativa de ajuizar sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força da indeterminação legal quanto ao comportamento adequado à satisfação do interesse público no caso concreto".

Em sendo assim, havendo certa liberdade para que o administrador pratique o deixe de praticar o ato (no caso, compor o TCC com o administrado), não se pode olvidar que a configuração do motivo que autorize ou não o ato  motivação essa, necessariamente fundamentada (artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal)  estará diretamente atrelada à finalidade legal do ato, que, em última análise, recai inexoravelmente no melhor atendimento ao interesse público.

Sob esse prisma, entendemos que, ao prever a possibilidade da composição por meio do TCC, é notável que o legislador buscou incrementar a dissuasão de futuras práticas lesivas à concorrência por meio do aprimoramento da resolução de demandas mediante prática negocial, o que também reduz os custos públicos envolvendo tais apurações.

Feita a ressalva de que o incentivo ao TCC não pode afetar sobremaneira o próprio acordo de leniência, nos parece que a postura de exigir do compromissário o reconhecimento de participação na conduta investigada vai de encontro à finalidade legal da norma, a partir do momento em que impõe ao compromissário a adoção de conduta que acarretará automático prejuízo na esfera penal, visto que o reconhecimento de participação na conduta, se não tem condão para, sozinho, ensejar a condenação, certamente será capaz de deflagrar persecução penal ou mesmo fortalecer eventual processo penal já em curso [9].

De mais a mais, também nos parece que a exigência da confissão em muito supera a complementariedade sugerida pela legislação de origem (referido artigo 85, §14 da Lei 12.529/2011), até mesmo em razão dos mencionados reflexos criminais decorrentes dessa confissão. Assim, ao estabelecer tal condição por meio de mera regulamentação, contraria-se o princípio da legalidade, tornando o comando inconstitucional [10].

Reforçando o caráter antagônico de tal previsão regulamentar, face ao objetivo conciliador da norma, dispõe Eduardo Reale [11] que o "'reconhecimento na participação na prática do fato', em face da ausência normativa de dependência entre as searas administrativa e penal, conduz a instrumentalizar a confissão em desfavor do próprio confesso na seara criminal, tornando-se um claro desincentivo à mediação" [12].

É no sentido de melhor atender ao interesse público a sugestão da professora Ana Paula Martinez, cujo entendimento é o de que melhor atenderia a finalidade da norma a não exigência do reconhecimento, ao menos no caso das pessoas físicas. Indica acertadamente a professora que, com tal medida, preservar-se-ia a o benefício maior da proteção contra responsabilidade criminal para aqueles indivíduos signatários do acordo de leniência. Ao mesmo tempo, aqueles que recorrerem ao termo de compromisso não estarão isentos de eventual persecução penal. No entanto, não deverão suportar o encargo do reconhecimento da prática no âmbito administrativo (bem como seus evidentes reflexos penais).

Nessa perspectiva ficaria mantida, portanto, a necessidade de reconhecimento da prática pela pessoa jurídica. Com isso, ainda segundo a autora, a pessoa jurídica signatária da leniência não ficaria em posição menos favorável se comparada àquela compromissária do TCC, pontuando que a confissão tem como principal consequência a exposição dos membros do cartel a ações privadas de indenização [13].

Todavia, a nosso ver (e com a devida vênia), tema que escapa da apreciação da autora recai sobre o fato de que a confissão da pessoa jurídica também é perfeitamente capaz de gerar alto risco de desencadeamento de investigações ou mesmo processos criminais em desfavor das pessoas físicas que integram aquela organização [14].

Assim, a despeito daquela se apresentar como a melhor solução para o conflito  consubstanciada na efetiva exclusão da previsão regulamentar para exigência de reconhecimento da prática , convém advertir que tampouco nos parece o melhor caminho a alteração da Lei 12.529/2011 para previsão de equivalência na extinção da punibilidade penal aos compromissários (tal como se procede no acordo de leniência) [15]. Isso porque tal benefício tenderia a esvaziar o instituto do acordo de leniência no âmbito de carteis, na medida em que seus membros não se sentiriam compelidos a buscar o acordo anteriormente ao início de eventual investigação.

De tal modo, em alternativa subsidiária à já acertada proposta de exclusão da necessidade de confissão (imposição essa, reitere-se, inconstitucional), sob o inevitável enfoque penal da matéria, aventa-se uma reforma da Lei 12.529 de forma a garantir ao compromissário (assim como aos membros integrantes da PJ compromissária) ao menos uma previsão de redução substancial da pena, o que ao menos mitigaria os efeitos de tal previsão regulamentar.

 


[1] MARTINEZ, Ana Paula. Repressão a cartéis. Interface entre direito administrativo e direito penal. São Paulo, Ed. Singular, 2013.

[2] Portarias do Ministério da Justiça n. 04/2006 e 456/2010, além do próprio Regimento Interno do CADE.

[3] Op. cit., p. 275.

[4] TCC na Lei nº 12.529/2011, disponível em: TCC na Lei nº 12.529-11.pdf (cade.gov.br) (Acesso em 03.01.22).

[5] Op. cit., p. 8-9.

[6] Interessante sublinhar que o mencionado estudo elaborado pelo próprio Cade tem como um dos objetivos facilitar a análise a respeito da sobredita conveniência e oportunidade para celebração de TCCs, a partir da análise da "jurisprudência", consistente na análise de acordos firmados durante a vigência da Lei nº 12.529/2011, até mesmo para melhor padronização e definição de critérios.

[7] "Artigo 185 – Tratando-se de investigação de acordo, combinação, manipulação ou ajuste entre concorrentes, o compromisso de cessação deverá, necessariamente, conter reconhecimento de participação na conduta investigada por parte do compromissário".

[8] MELLO, Celso A. Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo, Ed. Malheiros, 29ª Ed.2012, p. 437.

[9] Conforme alerta Pierpaolo Cruz Bottini "o signatário do termo fica protegido das sanções administrativas, mas é muito provável que seja processado criminalmente e que tenha contra si suas próprias declarações prestadas ao Cade, onde reconheceu o comportamento delitivo". Disponível em: http://www.btadvogados.com.br/pt/artigo/alguns-problemas-no-combate-a-carteis-no-brasil/ (Acesso em 05.01.22).       

[10] Nesse sentido, José Luis de Oliveira Lima e Rodrigo Dall’Acqua: https://www.conjur.com.br/2013-abr-09/confissao-culpa-infracao-concorrencial-inconstitucional (Acesso em 05.01.22).

[11] Disponível em: https://www.ibccrim.org.br/noticias/exibir/4627/ (Acesso em 05.02.22).

[12] Complementa o professor Eduardo Reale, indicando que a exigência da confissão acaba "colocando em xeque a própria eficácia do relevantíssimo instituto do TCC, vez que ao condicionar a sua aceitação ao reconhecimento da existência e participação dos fatos considerados como prática de cartel, em face da absurda independência criminal e administrativa, difícil se torna a resolução dos conflitos, por meio da mediação, não se podendo abrir mão de tão importante instituto, sob pena de indefinido procedimento administrativo, assim como de inúmeros e morosos questionamentos jurisdicionais, devendo se fomentar a resolução do conflito de forma bilateral, com base na lei e preferencialmente fora do âmbito jurisdicional, já tão atolado de processos administrativos".

[13] As ações privadas de indenização e sua intersecção com o acordo de leniência também foi tema merecedor de especial abordagem pela autora, que sugere a exclusão da responsabilidade solidária entre o signatário do acordo de leniência e os demais membros da conduta, além da atribuição de confidencialidade dos documentos a fim de vedar o compartilhamento com terceiros ou mesmo com outras jurisdições.

[14] Nesse sentido, Pierpaolo Cruz Bottini: "Ainda que o signatário do compromisso seja uma pessoa jurídica — contra a qual não caberá ação penal  a confissão cria o risco de um processo criminal para as pessoas físicas que a integram, com elementos fortes para a acusação, uma vez que a própria instituição reconheceu a prática do delito em seu seio. Em suma, a assinatura do termo de compromisso equivale a uma nota de culpa confessa, que será usada para instruir uma ação penal contra o próprio signatário ou seus integrantes". Op. cit.

[15] Como defende o mesmo Professor Pierpaolo: "Ou bem se modifica a Lei 12.529/11, garantindo-se ao compromissário a mesma extinção de punibilidade penal prevista para a leniência".

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    é advogado criminalista na Fernando José da Costa Advogados, pós-graduado em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM).

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