Controvérsias Jurídicas

O valor das multas dos Procons e sua função social

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

13 de janeiro de 2022, 8h00

A defesa do consumidor é garantia fundamental do cidadão e a CF, em seu artigo 5º, XXXII, a considerou um dos direitos básicos e inerentes à condição humana. O respeito às interações sociais manifestadas por meio do consumo constitui um novo estágio na civilização.

Assegurou ainda a Carta Magna, em seu artigo 170, V, a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica, impondo limites à absoluta liberdade de mercado e autorizando a criação legal da figura do abuso de direito.

Sob mandamento constitucional, foi aprovado o Código de Defesa do Consumidor, marco legal das relações de consumo no país, o qual fixou os conceitos de consumidor, fornecedor, produto e serviço, enumerou os direitos básicos do consumidor e as práticas abusivas, prevendo sanções administrativas.

Determinou como princípios da Política Nacional das Relações de Consumo o respeito à dignidade, saúde e segurança do consumidor, bem como a transparência e harmonia nas relações de consumo (CDC, artigo 4º, caput, e inciso II, alínea "c"). Criou, ainda, o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, integrado pelos órgãos federais, estaduais, distrital e municipais de defesa do consumidor (CDC, artigo 105).

O Decreto nº 2.181, de 1997, autorizou a criação da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon), vinculada ao Ministério da Justiça, com competência para a coordenação da política do SNDC, cabendo-lhe, entre outras atividades, executar a política nacional de proteção e defesa do consumidor e fiscalizar a aplicar as sanções administrativas previstas no CDC.

A partir da organização do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, os estados, Distrito Federal e alguns municípios criaram seus próprios órgãos de atuação, os quais ficaram conhecidos pela denominação Procons.

O estado de São Paulo criou a Fundação de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) por meio da Lei Estadual nº 9.192, de 23 de novembro de 1995; o estado do Rio de Janeiro criou a Autarquia de Proteção e Defesa do Consumidor (Procon) por meio da Lei Estadual nº 5.738, de 7 de junho de 2010; o estado de Minas Gerais criou Procon como um órgão do Ministério Público, conforme previsto na Lei Complementar nº 34, de 12 de agosto de 1994, e assim sucessivamente nas demais unidades federativas.

Com relação ao processo administrativo a ser seguido na aplicação das sanções administrativas, em especial, a multa (CDC, artigos 56, I, e 57), o CDC apenas dispôs que as sanções serão aplicadas pelas autoridades administrativas, mediante processo administrativo, sem disciplinar o procedimento.

Como decorrência do princípio federativo, cada Procon pode fixar livremente sua respectiva estrutura e organização administrativa, bem como estabelecer seu próprio procedimento de apuração e imposição de sanções no âmbito da defesa do consumidor.

Desse modo, os princípios constitucionais da ampla defesa, contraditório, devido processo legal e duração razoável do processo são incorporados aos processos administrativos de cada estado, município ou Distrito Federal (CF, artigo 5º, incisos LIV, LV e LXXVIII), mantendo-se, no entanto, a liberdade a cada ente federativo para disciplinar seus procedimentos.

Embora gere certa insegurança jurídica, a liberdade de fixação de procedimento administrativo por cada ente da federação, obedece ao princípio federativo. Na lição de Hely Lopes, "o processo administrativo não pode ser unificado pela legislação federal para todas as entidades estatais, em respeito a autonomia de seus serviços" (Meirelles, Hely Lopes. "Direito Administrativo Brasileiro" São Paulo: Malheiros, 23ª edição, 1998).

Por este motivo, a disciplina do processo administrativo sancionador pelo Decreto federal nº 10.887, de 6 de dezembro de 2021, tem aplicabilidade apenas à Senacon, em nada alterando a organização e os regramentos administrativos dos Procons dos estados, do Distrito Federal e municípios.

A multa administrativa é a sanção mais aplicada e, portanto, aquela que tem suscitado maior polêmica. A questão central gravita em torno da dosimetria, isto é, dos critérios para o cálculo do valor da multa. A base jurídica está nos artigos 56 e 57 do CDC, tendo o legislador apontado os critérios de graduação: gravidade da infração; vantagem auferida; e condição econômica do fornecedor.

Cada Procon, no entanto, tem liberdade para especificar cada um desses critérios. A título de exemplo, enquanto a Senacon leva em conta os elementos de dosimetria do Decreto nº 2.181 de 1997, o Procon paulista utiliza-se da Portaria Normativa Procon/SP nº 57/2020.

É justamente nessa liberdade de cada Procon estabelecer seus próprios critérios de dosimetria que se concentram os principais debates: a base de cálculo deve ser o faturamento bruto ou líquido? Qual o critério para definição da gravidade da infração? Como calcular a vantagem auferida no caso de propaganda enganosa ou abusiva?

Pesem todas essas variáveis, a autonomia de cada Procon para fixar seus critérios e procedimentos tem encontrado respaldo no Poder Judiciário, sendo mínimo o número de anulações de multas ou redução do valor por falta de proporcionalidade.

Sob a perspectiva do Judiciário, a quem compete o controle da legalidade dos atos administrativos, as regras autônomas de processo administrativo e dosimetria estão de acordo com o direito, na maior e mais expressiva quantidade de casos.

Se, sob o ângulo jurídico, o Poder Judiciário tem reiterado a legalidade dos instrumentos normativos e multas administrativas, sob o enfoque das políticas públicas nada impede uma revisão de critérios. A alteração dos critérios de fixação da multa administrativa não é uma necessidade jurídica, muito menos de adequação a princípios constitucionais, mas uma questão a ser mensurada do ponto de vista da conveniência e oportunidade da gestão pública.

A questão não reside, portanto, na juridicidade das multas e seus valores, mas da sua capacidade para cumprir sua função social. Sob esse prisma, faz-se necessário refletir se a política pública das relações de consumo, especificamente quanto à vertente fiscalizatória, está adequada ao fim que se destina: harmonizar a defesa do consumidor com o desenvolvimento econômico e social.

Nossa CF está estruturada sob um regime democrático de Direito, no qual a lei e seu respectivo cumprimento devem prestigiar a livre iniciativa e garantir o desenvolvimento nacional (CF, artigo 1º, IV, e artigo 3º, II). Ao mesmo tempo em que a Constituição assegura a proteção do consumidor, garante a livre iniciativa como princípio da ordem econômica, com a finalidade de assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social (CF, artigo 170, caput).

O momento de pandemia que aflige o país e o planeta pede uma reflexão: se as multas aplicadas pela Senacon e pelos Procons necessitam de novos parâmetros de cálculo. A análise estritamente técnica deve estar baseada em evidências, longe do campo ideológico, e com o equilíbrio.

É dessa tarefa que se encarregará a Comissão de Segurança Jurídica e Processo Administrativo, recentemente criada no Conselho Nacional de Defesa do Consumidor, sob relatoria do Procon de São Paulo.

Multas insuficientes são ineficazes e não protegem com eficácia o consumidor, deixando de cumprir sua missão constitucional de proteção e defesa nas relações de consumo.

Multa exacerbada inibe a atividade econômica, inibe o crescimento do país, gera desemprego, redução da arrecadação tributária e desestimula a atividade empresarial e a livre iniciativa.

A busca do equilíbrio é o grande desafio, aliás do país como um todo. Sem objetividade e bom senso não se chega a lugar algum.

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