Inocentes no Cárcere

Rever prisões feitas com reconhecimento por foto reduz risco de erros

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12 de janeiro de 2022, 19h16

A recomendação do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para que magistrados reavaliem as decisões que decretaram prisão preventiva apenas com base no reconhecimento fotográfico, sem obedecer ao procedimento do artigo 226 do Código de Processo Penal, reduz o risco de se prender inocentes e combate o racismo estrutural. Essa é a opinião de especialistas ouvidos pela ConJur.

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TJ-RJ recomenda que juízes reavaliem prisões decretadas com base em reconhecimento
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O artigo 226 do CPP estabelece que a pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida. Já a pessoa cujo reconhecimento se pretende deve ser colocada, se possível, ao lado de outras que com ela tiverem semelhança. Em seguida, quem tiver de fazer o reconhecimento deverá apontar quem considera ser o autor do crime.

No Aviso 1/2022, publicado na edição desta terça-feira (11/1) do Diário da Justiça Eletrônico do Rio, o desembargador Marcus Henrique Pinto Basílio, segundo vice-presidente do TJ-RJ e supervisor do Grupo de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário, citou a decisão da 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no Habeas Corpus 598.886.

Os ministros estabeleceram que o reconhecimento — pessoal ou fotográfico — feito na fase de inquérito policial só é apto para identificar o réu e fixar a autoria do crime quando seguir o procedimento do artigo 226 do CPP e for corroborado por outras provas produzidas na fase judicial, com respeito ao contraditório e à ampla defesa. O STJ determinou que todos os Tribunais de Justiça tivessem ciência da decisão.

Janaina Matida, professora de Direito da Universidade Alberto Hurtado (Chile) e integrante do Grupo de Trabalho Reconhecimento Pessoal, do Conselho Nacional de Justiça, afirma que a recomendação é acertada se o objetivo é reduzir o risco de se prender inocentes, especialmente negros.

"Sabemos que o reconhecimento, enquanto prova dependente da memória (matéria-prima altamente contaminável), merece tratamento atento de todos os operadores do sistema de Justiça brasileiro. São danos irreparáveis, que acometem de forma prioritária a população negra e que pouco a pouco vêm ganhando a atenção que merecem. É indispensável que o reconhecimento seja regularmente produzido (com observância do artigo 226 do CPP) e que venha acompanhado de outras provas dele independentes, se o que se pretende seja um efeito tão gravoso como a prisão de alguém", avalia a docente, que também é colunista da ConJur.

Segundo Janaina Matida, é importante disseminar os cuidados que o STJ, no HC 598.886, considerou necessários para a mínima confiabilidade epistêmica do reconhecimento. "Basta de decisões que decretam a preventiva a partir de jurisprudência ultrapassada, sem a observância de mudanças fundamentais ao asseguramento da presunção de inocência de todos os cidadãos, independentemente da cor de sua pele. Faço votos de que o TJ-RJ seja seguido por outros por todo o país".

Falibilidade da memória
A coordenadora de Defesa Criminal da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, Lucia Helena Oliveira, entende que a recomendação do TJ-RJ representa um grande avanço. Diante da falibilidade da memória humana, "a possibilidade de falha no reconhecimento por fotografia é absurda", sobretudo quando não se observam as formalidades legais, diz.

"Em diversos casos é utilizado o reconhecimento na modalidade showup, em que há a apresentação de uma única fotografia para que a vítima ou testemunha faça o reconhecimento. Essa prática é completamente falha, segundo diversos especialistas na matéria, e divorciada do procedimento legal. Desse modo, acredito que a recomendação do TJ-RJ em muito contribuirá para minimizar falhas em nosso sistema processual penal", destaca Lucia Helena Oliveira.

Vieses cognitivos
A também colunista da ConJur Rachel Herdy, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, opina que a mudança de posição do judiciário no caso do reconhecimento pessoal e fotográfico, agora apontando para o respeito ao procedimento do artigo 226 do CPP, deve ser aplaudida e ampliada. "Contudo, também deve ser vista como uma resposta no meio de tantas outras que esperamos das nossas instituições às pesquisas e estudos de outras áreas do conhecimento que apontam para os riscos dos vieses cognitivos".

De acordo com a docente, o caso dos vieses na produção da prova pericial é outro tema que deveria ser visto com atenção pelas instituições brasileiras. Em texto publicado em sua coluna, Rachel Herdy argumenta que o alinhamento (medida pela qual a pessoa que se pretende reconhecer é colocada ao lado de outras a ela semelhantes, prevista no inciso II do artigo 226 do CPP) pode ser incorporado como um procedimento útil para minimizar os erros que decorrem do viés de confirmação em alguns tipos de exame pericial.

"Assim como o reconhecimento da pessoa suspeita deve ser feito alinhando-a com outras pessoas não suspeitas, a determinação da compatibilidade entre a amostra do suspeito e o vestígio encontrado na cena do crime deve ser feita alinhando-a com outras amostras de não suspeitos. O perito, assim, deve ser capaz de determinar qual das amostras analisadas apresenta (maior) correspondência com o vestígio encontrado na cena do crime. Tal procedimento seria aplicável aos exames periciais comparativos, nos quais se busca esclarecer se um material ou uma marca encontrada na cena de crime foi deixada pelo suspeito ou por um instrumento por ele utilizado. Os exames de DNA e de impressões digitais, a grafoscopia e o confronto microbalístico estão entre os exemplos mais conhecido", afirma professora da UFRJ no artigo.

Racismo estrutural
A recomendação do TJ-RJ está de acordo com as decisões mais recentes dos tribunais superiores, mas é preciso avançar, especialmente no enfrentamento do racismo estrutural, que ainda impacta diretamente na atividade de reconhecimento, ressalta Gustavo Noronha de Ávila, professor da Pontifícia Universidade Católica do Paraná.

"Também é necessário observar que a Psicologia do Testemunho, há décadas, tem desenvolvido critérios seguros, embasados na ciência, para a realização de reconhecimentos precisos. Esses critérios ainda não foram incorporados por nosso ordenamento. Ignorar os riscos envolvidos nesses procedimentos é promover o aprisionamento de inocentes", declara Ávila.

Já a defensora pública do Rio de Janeiro Lara Teles destaca que o procedimento do artigo 226 do CPP não é mera formalidade, mas influi diretamente na qualidade do conteúdo probatório produzido. Quando o reconhecimento é usado como único fundamento da prisão preventiva, especialmente se descumpridos os requisitos legais, aumenta a possibilidade de encarceramento de inocentes, aponta a defensora. Ela também lembra que o reconhecimento é a causa de cerca de dois terços das condenações injustas, conforme pesquisa do Innocence Project Brasil.

"O grande desafio do momento é fazer os juízos de primeiro e segundo grau compreenderem a importância do tema e adotarem o entendimento dos tribunais superiores em suas decisões de piso. Enquanto isso não for o padrão decisório dos casos, injustiças continuarão acontecendo. Se o magistrado aceita reconhecimento fora dos ditames legais, por que então o delegado se sentirá na obrigação de segui-lo? Gera-se um ciclo de potenciais erros judiciários, que só é rompido quando não se admitem as identificações viciadas. Portanto, a recomendação é muito pertinente e deve servir de exemplo para os outros Tribunais de Justiça", analisa Lara Teles.

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