Opinião

A proteção ao entregador por aplicativo: uma análise da Lei nº 14.297/2022

Autores

  • Adriano Marcos Soriano Lopes

    é juiz do Trabalho substituto no Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região especialista em Ciências do Trabalho pela Faculdade Lions e autor de diversos artigos jurídicos e coautor do livro O Direito Autônomo à Proteção dos Dados Pessoais: uma Análise Constitucional-trabalhista.

  • Solainy Beltrão dos Santos

    é juíza do Trabalho substituta do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região especialista em inovações em Direito Civil e seus instrumentos de tutela pela Universidade Anhanguera autora de diversos artigos jurídicos e coautora do livro O Direito Autônomo à Proteção dos Dados Pessoais: uma Análise Constitucional-trabalhista e Sentença Trabalhista Descortinando a Teoria e Facilitando a Prática.

12 de janeiro de 2022, 13h39

A pandemia da Covid-19 impactou as relações de trabalho e exigiu do poder público ações imediatas e emergenciais, permitindo-se, inclusive, a flexibilização de direitos trabalhistas durante o estado de calamidade pública na busca da preservação do emprego e da renda.

A Organização Mundial da Saúde, em 11 de março de 2020, declarou o surto da doença como pandemia, sendo certo que no Brasil, por meio do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, o Congresso Nacional reconheceu oficialmente a ocorrência do estado de calamidade pública até 31 de dezembro de 2020, o que permitiu a lídima instituição de medidas provisórias e necessárias como providências paliativas à situação calamitosa que emanou no mundo inteiro.

Em decorrência de tal reconhecimento, editaram-se, ao longo desses quase dois anos, diversas normas, entre elas a Lei nº 13.379/20, que, atrelada ao decreto referido e visando a proteger a coletividade, impôs o isolamento social, a quarentena, o uso obrigatório de máscaras de proteção individual, entre outras medidas, a fim de conter o surto do vírus e o colapso dos serviços de saúde, o que impactou a economia, a saúde, a política, as relações sociais, as relações laborais e as relações institucionais.

Cabe registrar, todavia, que o ministro Ricardo Lewandowski, em decisão liminar, em 8/1/2021, na ADI 6.625/DF [1], referendada pelo Plenário do STF em 8/3/2021, prorrogou os efeitos da Lei nº 13.379/2020, cuja vigência era limitada ao prazo do Decreto nº 6/2020.

Não há dúvida de que essa desgraça secular, que provoca mortes diárias no Brasil e no mundo, causou e causa uma grande recessão mundial, o que possibilita uma tênue comparação com o crack da Bolsa em 1929 em Nova York e impacta no número de desempregados, na demissão em massa, no reclamo por auxílios emergenciais para que as verbas alimentares antes obtidas com a força de trabalho possam ser subsidiadas de outra forma com o auxílio do governo.

Nessa ordem de raciocínio, destaca-se a novel Lei nº 14.297/2022, oriunda do Projeto de Lei nº 1.665/2020, relatado no Senado por Randolfe Rodrigues (Rede-AP), publicada no Diário Oficial da União no último dia 6, que visa a proteger os entregadores que trabalham por meio de aplicativos durante a pandemia.

De antemão, convém destacar que a jovem legislação possui caráter temporário ou excepcional, visto que é um diploma que conta com período certo de duração, sendo autorrevogável, possuindo data para a perda de sua vigência, qual seja, até que seja declarado o término da Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (Espin) em decorrência da infecção humana pelo coronavírus Sars-CoV-2 (confira artigo 1º, parágrafo único).

A Lei nº 14.297/2022, em sua essência, veio dispor sobre medidas de proteção asseguradas ao entregador que presta serviço por intermédio de empresa de aplicativo de entrega durante a vigência da emergência em saúde pública decorrente do coronavírus.

Tirante a divergência da existência ou não de vínculo empregatício, objeto de controvérsia em várias demandas trabalhistas apreciadas na vessada laboral, da análise da novel lei é indene de dúvidas que a competência para processar e julgar os processos que versem sobre as versadas medidas de proteção propagadas pela Lei nº 14.297/2022 seja da Justiça do Trabalho, na forma do artigo 114, I, da Carta Constitucional, que dispõe sobre a competência da Justiça do Trabalho para processar e julgar "as ações oriundas da relação de trabalho".

Nesse contexto ainda, a mens legislatoris não foi pacificar quaisquer controvérsias quanto à existência de liame empregatício entre plataforma e empregador, tanto que no artigo 10 a lei já deixa certo que: "Os benefícios e as conceituações previstos nesta Lei não servirão de base para caracterização da natureza jurídica da relação entre os entregadores e as empresas de aplicativo de entrega". Isso quer dizer que a natureza jurídica da relação existente entre os envolvidos na lide de prestação de serviços de entrega pode ser objeto de demanda paralela, não sendo pressuposto para o reconhecimento do dever de proteção da intermediadora que a Justiça do Trabalho se manifeste quanto à existência ou não do vínculo laboral.

A lei ainda conceitua os destinatários da norma e o titular do direito a ser vindicado logo em seu artigo 2º, ao descrever quem seria a empresa de aplicativo de entrega (destinatário da norma) e entregador (destinatário da norma e titular do direito). Nesse ponto, convém mencionar que a lei não veio proteger todo e qualquer trabalhador de plataformas online, mas tão somente aqueles que prestam serviços de retirada e entrega de produtos e serviços (entregador), razão pela qual entende-se não aplicável aos motoristas de aplicativo, nem mesmo por analogia, os dispositivos da tenra lei, pois se o legislador assim o quisesse teria expandido o direito garantido aos casos semelhantes.

O artigo 3º, por sua vez, traduz a busca pela higidez do meio ambiente laboral, visando-se à sadia qualidade de vida e segurança do trabalhador, o que compreende, in casu, medidas de tutela de saúde e segurança, mormente por ser obrigação da empresa a adoção e uso das medidas coletivas e individuais de proteção e segurança da saúde do trabalhador (artigo 19, §1º, da Lei nº 8.213/91), manutenção do meio ambiente de trabalho sadio de forma a reduzir os riscos inerentes ao trabalho (artigo 157 da CLT, c/c artigo 7º, XXII, da CF), ante seu dever social de zelar pela proteção dos direitos à vida e segurança daqueles que lhe prestam serviço, pois esses trabalhadores não se despojam dos seus direitos fundamentais ao se submeterem a qualquer tipo de relação jurídica.

Importante a menção que o parágrafo único do artigo 3º prevê que na hipótese de o entregador prestar serviços para mais de uma empresa de aplicativo de entrega, a indenização, no caso de acidente, será paga pelo seguro contratado pela empresa para a qual o entregador prestava o serviço no momento do acidente, o que requer cautela na análise do caso concreto, pois não raro haver entregadores por aplicativo que prestam, ao mesmo tempo, serviços a mais de uma plataforma e, com isso, deve-se investigar a quem ele porventura prestava serviços no momento do infortúnio para fins de responsabilidade da indigitada plataforma eletrônica.

Na sequência, o artigo 4º vem trazer o dever de assistência da empresa de aplicativo de entrega em razão do afastamento do entregador devido à infecção pelo coronavírus, prevendo assistência financeira pelo período de 15 dias, o qual pode ser prorrogado por mais dois períodos de 15 dias, mediante apresentação do comprovante ou do laudo médico que justifique o afastamento do entregador, versando que o valor do auxílio deva ser calculado de acordo com a média dos três últimos pagamentos mensais recebidos pelo entregador.

Nessa ótica, permite-se resolver duas situações hipotéticas: se o trabalhador possui menos de três meses de prestação de serviço, a solução mais razoável para fins de montante do auxílio seria o cálculo pela média do que recebera enquanto em atividade e que se o comprovante médico do entregador atestar que ele necessita de mais do que 45 dias de afastamento (15 dias mais duas prorrogações de 15 dias trazidas na lei), ainda assim remanesceria a obrigação da empresa em prestar assistência em homenagem à sua função social, bem como em consideração ao estado de hecatombe vivenciado ante a pandemia da Covid-19 e, ainda, visando à manutenção do direito à subsistência do entregador.

Como parcela de sua função social, a empresa de aplicativo de entrega deve fornecer ao entregador informações sobre os riscos do coronavírus e os cuidados necessários para se prevenir do contágio e evitar a disseminação da doença (artigo 5º, caput). Isso mormente se levar em consideração que, no exercício do mister de retirada e entrega, o trabalhador tem contato com diversas pessoas em situações imprevisíveis (com ou sem máscara, vacinados ou não, negacionistas ou não) e está sujeito, como todos aqueles que não respeitam o isolamento social, ao risco de contágio.

Por isso, os §§1° e 2º do artigo 5º preveem a obrigação da empresa de aplicativo de entrega de disponibilizar máscaras e álcool em gel ou outro material higienizante aos entregadores, para proteção pessoal durante as entregas e que a empresa poderá fazer o repasse ou reembolso das despesas efetuadas pelo entregador com a compra de ditos equipamentos de proteção individual.

Ademais, a lei apresenta na mesma linha protetiva e pautada na responsabilidade em assegurar a saúde laboral que a empresa fornecedora do produto ou do serviço deverá permitir que o entregador utilize as instalações sanitárias de seu estabelecimento, bem como deverá garantir o acesso do entregador a água potável (artigo 6°, I e II).

Na sequência, o artigo 7º veio dispor do meio de pagamento a ser realizado pela empresa de entrega e a empresa fornecedora que deverá ser prioritariamente observada a forma de pagamento por meio da internet, o que vem facilitar o pagamento e comprovação deste.

Outra novidade trazida pela jovem lei refere-se ao contrato ou ao termo de registro celebrado entre a empresa de aplicativo de entrega e o entregador que deverá conter expressamente as hipóteses de bloqueio, de suspensão ou de exclusão da conta do entregador da plataforma eletrônica (artigo 8º, caput), ressaltando que no caso de exclusão de conta haverá uma comunicação prévia, com antecedência mínima de três dias úteis e será acompanhada das razões que a motivaram, devidamente fundamentadas, preservadas a segurança e a privacidade do usuário da plataforma eletrônica (§1º do referido artigo). Isso significa dizer que o simples bloqueio/exclusão sem a comunicação prévia que detalhe o azo pelo qual o entregador está sendo excluído não tem validade e sujeita a empresa às penalidades descritas no artigo 9º da lei, o que poderá ensejar a aplicação de multa administrativa pelos órgãos de fiscalização trabalhista.

Conquanto a lei não verse a quem caberá a execução e/ou cobrança da multa, parece ser evidente que caberá ao Ministério do Trabalho e Previdência Social, por se tratar sanção administrativa, como expresso na letra fria da lei, ou seja, não pode ser reversível ao entregador.

Noutra banda, pode haver a exclusão do trabalhador sem a comunicação prévia versada nos casos de ameaça à segurança e à integridade da plataforma eletrônica, dos fornecedores e dos consumidores, em razão de suspeita de prática de infração penal prevista na legislação vigente (§2º do artigo 8º).

Por fim, vale dizer que a questão pode ser discutida tanto em tutela provisória (urgência e evidência), bem como ser discutida como mérito da demanda, valendo dizer que, com relação às obrigações de fazer a que podem ser condenadas as empresas, o seu descumprimento pode ensejar a aplicação de astreinte, na forma da legislação processual em vigor.

 

Referências bibliográficas
BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.html. Acesso em: 10.jan.2022.

_______. Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020. Reconhece, para os fins do artigo 65 da Lei Complementar nº 101, de 4 de maio de 2000, a ocorrência do estado de calamidade pública, nos termos da solicitação do Presidente da República encaminhada por meio da Mensagem nº 93, de 18 de março de 2020. Brasília: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/portaria/DLG6-2020.htm. Acesso em 10.jan.2022.

_______. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Brasília, DF: Presidência da República, [2021]. Disponível em:  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452.htmL. Acesso em:  10.jan.2022.

_______. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. STF. ADI 6.625/DF. Data de Julgamento: 08/03/2021, relator: Ministro Ricardo Lewandowski. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivocms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADI6.625MC4.pdf. Acesso:  10.jan.2022.

_______. Lei nº 13.379, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Brasília: Presidência da República, [2021]. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm. Acesso em: 10.jan.2022.

WHO. World Health Organization, 2021. Disponível em: https://www.who.int/. Acesso em:  10.jan.2022

 


[1] "Ementa: TUTELA DE URGÊNCIA EM AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. CONCESSÃO MONOCRÁTICA. INTERPRETAÇÃO CONFORME À CONSTITUIÇÃO PARA CONFERIR SOBREVIDA A MEDIDAS TERAPÊUTICAS E PROFILÁTICAS EXCEPCIONAIS PARA O ENFRENTAMENTO DA COVID-19. PROVIDÊNCIAS PREVISTAS NA LEI 13.979/2020 CUJA VIGÊNCIA FINDOU EM 31 DE DEZEMBRO DE 2020. RECRUDESCIMENTO DA PANDEMIA COM O DESENVOLVIMENTO DE NOVAS CEPAS VIRAIS. EMERGÊNCIA DE SAÚDE PÚBLICA QUE SE MANTÉM INALTERADA. INCIDÊNCIA DOS PRINCÍPIOS DA PREVENÇÃO E PRECAUÇÃO. CAUTELAR REFERENDADA PELO PLENÁRIO.
I – A Lei 13.979/2020, com o propósito de enfrentar de maneira racional e tecnicamente adequada o surto pandêmico, permitiu que as autoridades adotassem, no âmbito das respectivas competências, determinadas medidas profiláticas e terapêuticas.
II – Embora a vigência da Lei 13.979/2020, de forma tecnicamente imperfeita, esteja vinculada àquela do Decreto Legislativo 6/2020, que decretou a calamidade pública para fins exclusivamente fiscais, vencendo em 31 de dezembro de 2020, não se pode excluir, neste juízo precário e efêmero, a conjectura segundo a qual a verdadeira intenção dos legisladores tenha sido a de manter as medidas profiláticas e terapêuticas extraordinárias, preconizadas naquele diploma normativo, pelo tempo necessário à superação da fase mais crítica da pandemia, mesmo porque à época de sua edição não lhes era dado antever a surpreendente persistência e letalidade da doença.
 III – A prudência – amparada nos princípios da prevenção e da precaução, que devem reger as decisões em matéria de saúde pública  aconselha que as medidas excepcionais abrigadas na Lei 13.979/2020 continuem, por enquanto, a integrar o arsenal das autoridades sanitárias para combater a pandemia.
 IV – Medida cautelar referendada pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal para conferir interpretação conforme à Constituição ao artigo 8° da Lei 13.979/2020, com a redação dada pela Lei 14.035/2020, a fim de excluir de seu âmbito de aplicação as medidas extraordinárias previstas nos artigos 3°, 3°-A, 3°-B, 3°-C, 3°-D, 3°-E, 3°-F, 3°-G, 3°-H e 3°-J, inclusive dos respectivos parágrafos, incisos e alíneas" (STF. ADI 6.625/DF. Data de Julgamento: 08/03/2021, relator: ministro Ricardo Lewandowski).

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