Opinião

Profetas do passado pensam o presente

Autor

  • Guilherme Braidotti Filgueiras

    é líder de Novos Negócios da LacLaw Consultoria Tributária com atuação na gestão de Contencioso Ativo e Auditoria Contábil e especialista em Adequação de Mecanismos Fiscais Tributários.

12 de janeiro de 2022, 20h11

"Todos os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem, por assim dizer, duas vezes", uma vez disse Friedrich Hegel, que, se conhecesse o Brasil contemporâneo, certamente entenderia que, por aqui, as coisas se repetem muito mais de duas vezes.

As mesmas receitas ruins são utilizadas desde o Brasil Imperial, sendo reproduzidas de forma contínua e errática ao longo de nossa história republicana como "uma grande repetição de tragédias e farsas", ideia de outro grande estudioso que nunca pisou por aqui, Karl Marx.

Em janeiro de 2021, o panorama político estava claro: o país enfrentava a sua pior crise sanitária, com perda de arrecadação, estagnação econômica e aumento dos preços; acompanhado da necessidade de manter um auxílio emergencial, com custos totais previstos de R$ 64,9 bilhões, e enfrentando no Judiciário algumas das guerras tributárias mais duras das últimas décadas: a "tese do século", com o debate sobre a exclusão do ICMS da base do PIS e da Cofins, com um prejuízo previsto aos cofres públicos de R$ 258 bilhões, e do fim da não cumulatividade do PIS e da Cofins, com um déficit de R$ 472,7 bilhões, caso o governo perca.

Para fins comparativos, o valor somado dessas duas discussões tributárias equivale a 40% da arrecadação total dos tributos do ano de 2020, sendo também 10,7 vezes maior do que todo o auxílio emergencial pago ao longo do ano de 2021 e 16 vezes mais do que todo o investimento em infraestrutura previsto pelo ministro Tarcísio de Freitas, algo na ordem dos R$ 100 bilhões.

Não surpreende que se faça uso de conhecidas receitas e ações requentadas para contornar a realidade. O primeiro ingrediente pertence à velha culinária dos discursos de reforma tributária, prometendo atacar o tamanho do Estado e a alta carga de impostos, entretanto, na prática, o que vimos foi bem diferente do discurso: uma reforma que aumenta o peso da arrecadação e não ajuda em nada na diminuição do tamanho da máquina pública.

As quatro propostas diferentes, divididas entre Senado e Câmara, inviabilizaram politicamente a discussão de uma alteração estrutural do sistema tributário nacional, debate que já dura, pelo menos, quatro décadas.

Embora necessária, a reforma com os projetos atuais continua sendo pouco efetiva em resolver a injustiça de pagamento de tributos no Brasil; todas elas aumentam a carga tributária, contrariando o discurso liberal do ministro da Economia, Paulo Guedes, o que torna o discurso de combate ao tamanho do Estado e da carga tributária como algo apenas retórico, e não ajustam a proporcionalidade de arrecadação entre as classes mais ricas e mais pobres, dando pouco peso aos tributos sobre a renda e mantendo a distorção que os impostos indiretos causam sobre as classes mais baixas.

Novamente, como diria Hegel, os personagens se repetem, e, como diria Marx, como farsa e tragédia.

Atacar o sistema tributário de maneira retórica, agindo absolutamente contra os interesses populares, não é exatamente algo original. Acontece desde a formação do Estado nacional, aos moldes do que também ocorreu no século 19, quando a elite local resistiu com rompante à proposta do visconde de Jequitinhonha de criação de um tributo sobre a renda. Nessa ocasião, os grandes poderosos do Brasil, como o senador Souza Franco e o visconde do Rio Branco, embora necessitassem aumentar a arrecadação e defendessem também uma grande reforma tributária nacional, impediram que o tributo fosse criado  imposto esse que afetaria exatamente as classes mais ricas da sociedade. Dessa forma, o país só foi ver um Imposto de Renda na década de 1920, ou seja, no período republicano do século seguinte.

As velhas manobras fiscais, tão conhecidas pelo povo brasileiro, como se pode perceber no debate da PEC dos Precatórios, estão sempre à espreita e, no caso em questão, se revelou uma inteligente e juridicamente legal pedalada fiscal, chutando para os próximos exercícios quase R$ 40 bilhões que deveriam ser pagos em 2022. A justificativa? A necessidade do pagamento do Auxílio Brasil — medida de amparo social fundamental para que o presidente tenha forças eleitorais em outubro de 2022.

Tal estratégia, além de repetida, nem é tão antiga assim, uma vez que é bastante fácil nos lembrarmos da grande razão jurídica do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, em 2016: as famigeradas pedaladas fiscais. Naquela ocasião, a justificativa era de que se fazia necessário que a Caixa Econômica Federal continuasse bancando alguns dos mais importantes projetos sociais do país.

Ocorre que, desta vez, as pedaladas parecem ter sido mais bem feitas e amparadas por um processo plenamente legal.

O grande problema, pouco percebido a partir do debate da PEC dos Precatórios, é que  a um estilo inverso de Robin Hood  a emenda à Constituição vai tirar dinheiro do bolso dos mais pobres para colocar no bolso dos mais ricos. A manobra para isso é brilhante: a criação de mecanismos de utilização dos precatórios para as pessoas que não irão receber o dinheiro em 2022, como a compra de imóveis da União, pagamento de outorga de cessão de serviços públicos, abatimento de dívida tributária, entre outros. Com isso, apenas grandes empresas terão possibilidade real de utilizar os seus precatórios, e todas as pessoas físicas, com títulos emitidos e que estarão fora do teto em 2022, deverão esperar por mais um bocado. Ou seja, é a falta de pagamento para as pessoas mais pobres que possibilitará a criação do Auxílio Brasil.

Há, porém, outros ingredientes dessa receita que são ainda mais significativos e estruturais: as despesas obrigatórias estabelecidas pela Constituição Federal de 1988, como previdência social e gastos com salários de funcionalismo público, seguem crescendo e diminuindo espaço para movimentação do Estado.

Segundo a FGV, os investimentos em infraestrutura em 2021 chegarão a 0,1% do PIB, frente a 0,5% da última década. Ironicamente, um dia após a divulgação desse dado, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que "o Brasil está condenado a crescer".

Ao mesmo tempo, a indústria brasileira está definhando, enquanto o país continua colocando sua sorte nas commodities que fazem de nós uma grande fazenda dos mercados europeus, chinês e americano, e o quintal de plantação de soja, cana e milho do mundo

No ano passado, 5,5 mil fábricas encerraram suas atividades no país, a indústria encolheu 1,6%, enquanto o agronegócio avançou 3,6%. Atualmente, a participação da indústria no PIB é apenas de 11%, já tendo alcançado o patamar de 20%. Esse definhamento do sistema industrial brasileiro não começou neste governo, nada mais é do que uma grande imitação do que as administrações dos presidentes antigos realizaram.

A receita é velha, os ingredientes, conhecidos, e a retrospectiva de 2021 é dura

Agora, mais duras ainda são as perspectivas do que ocorrerá em 2022. Ano de eleição, sem debates públicos, e por vezes impopulares, a serem pautados, mas, com certeza, com as mesmas tragédias e farsas conhecidas pelo povo brasileiro. Nos resta uma postura firme pela transparência das contas públicas e inserção da sociedade civil nos debates relevantes do país  esta é a única forma de evitar que novas farsas voltem a aparecer.

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