Opinião

Evolução e aplicabilidade da teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova

Autor

  • Anelise Ambiel Dagostin

    é advogada no escritório Medina Guimarães Advogados coordenadora da área de Contencioso Cível e Direito Contratual pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Estadual de Londrina em Direito de Família e das Sucessões pela Damásio Educacional e em Direito Ambiental e do Agronegócio pela PUC-PR.

12 de janeiro de 2022, 17h07

A teoria estática da distribuição do ônus da prova, inicialmente positivada no artigo 333 do CPC de 1973, foi conveniente aos anseios e ideais do momento de sua criação. Influenciados pelos teóricos italianos Chiovenda e Carnelutti, os legisladores da época entenderam por praticamente copiar os dispositivos existentes na legislação italiana e portuguesa, de modo que, no Direito Processual brasileiro, levando-se em consideração o interesse das partes, estruturou-se a regra pela qual ao autor cabe provar o fato constitutivo de seu direito, enquanto que ao réu cabe provar o fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor. Pode-se dizer, assim, que o legislador de 1973 entendia como satisfatória e suficiente a distribuição estática, mantendo como absoluta regra sobre a qual decorrem inúmeras exceções.

Muita coisa mudou desde então. Os processos eram menos complexos quando comparados aos da atualidade. A ideia que se tinha sobre direitos subjetivos era outra e pouco se falava acerca de direitos difusos e da dificuldade — ou impossibilidade — de se observar a regra da distribuição estática em tais casos. Percebeu-se, então, "que, de algum modo, mudanças legislativas são insuficientes para se dar conta de tal demanda" e, ainda, que "aplicar a lei ao fato como se isso fosse algo aritmético, já não funciona mais" [1].

Sobre a insuficiência da regra da distribuição estática do onus probandi para abarcar toda e qualquer situação, aduz Alexandre Freitas Câmara:

"Este é texto normativo muito tradicional no direito processual civil brasileiro, mas que é claramente insuficiente para explicar todas as situações. É que de sua leitura ressalta a (falsa) impressão de que em um processo só poderiam ser discutidos quatro tipos de fato: constitutivo do direito, impeditivo do direito, modificativo do direito e extintivo do direito. Assim não é, porém" [2].

A necessidade de mudança foi confirmada com a promulgação da Constituição Federal de 1988 e com o fortalecimento da ideia de Estado constitucional democrático de Direito. O Estado, por meio da jurisdição, tem o dever de proteger os direitos fundamentais não somente por meio do processo, mas também durante o processo [3].

Notava-se que, durante a instrução probatória, em algumas situações, era muito difícil à parte onerada realizar a produção da prova, caracterizada, muitas das vezes, como diabólica. Para solucionar a questão, foi desenvolvido, de início, um mecanismo que permitia a inversão do ônus da prova, em casos determinados, normalmente quando predominava a hipossuficiência de uma parte em relação à outra. O exemplo de inversão mais comum pode ser verificado no inciso VIII do artigo 6º do CDC. Outras hipóteses de inversão, além do mais, foram criadas pelo legislador e pela jurisprudência [4], reconhecendo que, em ocasiões específicas, atribuir o onus probandi ao autor significaria, na prática, julgar os pedidos precoce e injustamente em seu desfavor [5].

Percebe-se, desse modo, que a inversão do ônus da prova foi concebida com o intuito de ampliar o material probatório de determinados casos, a fim de obter decisões mais justas. Ocorre que, na prática — em que pese a boa intenção contida no escopo da inversão do ônus da prova e as evidentes progressões na busca da efetiva tutela jurisdicional e do acesso à Justiça, sobretudo no âmbito das relações consumeristas —, a inversão nada mais é do que a manutenção da distribuição estática, com a única diferença de que a parte originalmente encarregada da produção da prova dela se desincumbe, transferindo o ônus exclusivamente à parte contrária. Restavam mantidos, portanto, a universalização e o abstracionismo característicos do princípio estático, sendo essa a principal diferença da inversão prevista no CDC para a inovação da distribuição dinâmica trazida pelo CPC/2015 [6].

Com a finalidade de dar cabo à problemática do ônus da prova, foi desenvolvida a "teoria de las cargas probatórias dinámicas" pelo argentino Jorge W. Peyrano, na década de 1990 [7], trazendo como fundamento central a ideia de que o ônus da prova deve ser atribuído àquele que tem chance de produzi-la mais facilmente, e não àquele que, por imposição legal, deve necessariamente produzi-la, apesar da dificuldade de fazê-lo.

De acordo com tal teoria, o próprio processo pressupõe um dinamismo, devendo todas as posições processuais, também, serem vistas de forma dinâmica, não fazendo mais sentido, na atualidade, que o ônus seja distribuído estaticamente, em toda e qualquer hipótese.

A teoria da distribuição dinâmica do ônus da prova carrega por base os princípios da efetividade da prestação jurisdicional, da veracidade, da boa-fé, da lealdade e da solidariedade, e defende a análise do caso concreto para, somente então, imputar-se o ônus da prova a determinada parte, escolhendo aquela que tem mais possibilidade de realizá-la.

A ideia concebida por Peyrano foi recepcionada com bons olhos tanto por doutrinadores, que defendiam sua positivação no ordenamento processual, quanto pelos tribunais, que, antes mesmo da previsão legal, passaram a adotar, de forma recorrente, o método dinâmico, sendo a possibilidade de dinamização incluída então nos §§1º e 2º do artigo 373, com a edição do CPC de 2015.

De tal forma, nos casos em que adotada a dinamização do ônus da prova, o processo deixa de ter como característica central a vontade das partes, que foi durante tanto tempo marca do processo liberal dispositivo, para buscar um processo cooperativo, tanto entre as próprias partes quanto entre o magistrado e as partes, sem que, todavia, haja prevalência de qualquer desses sujeitos.

Em suma, para que o método de distribuição dinâmica do ônus da prova obtenha êxito, pondo fim à discussão sobre a melhor forma de distribuição e garantindo o efetivo acesso à Justiça, necessária se faz a observância dos seguintes requisitos: a) análise do caso concreto para verificação de eventual desigualdade; b) análise das condições das partes em relação à produção das provas; e c) obediência ao princípio do contraditório e da motivação das decisões judiciais [8]. Tais pressupostos, porém, não são únicos, cabendo ao julgador estar atento às mudanças da sociedade, nunca fugindo da análise do caso concreto e pautando-se pela garantia do contraditório e pela fundamentação suficiente da decisão que decidir pela distribuição do ônus da prova, evitando, assim, quaisquer riscos de abusos, excessos ou discricionariedades [9].

Em se tratando de aplicação prática, como se mencionou, os tribunais já vinham adotando de forma reiterada a distribuição dinâmica para determinados casos, em que pese a ausência de dispositivo legal expresso até a vigência do CPC atual [10]. Sobrevindo a norma do artigo 373, §1º, a jurisprudência, agora amparada em dispositivo de lei, vem utilizando da teoria das cargas probatórias dinâmicas em variadas situações, como nos casos de responsabilidade civil por erro médico [11], de ações coletivas de consumo [12] e de defesa dos interesses de condôminos [13].

A doutrina cita, também, outras hipóteses em que o ônus da prova pode ser distribuído de forma dinâmica, a exemplo das seguintes:

"(…) a) Lesões pré-natais: a prova de que a doença do recém-nascido deriva do acidente que a suma mãe sofreu quando em gestação, não pode ser dela exigida, para a procedência da ação ressarcitória; b) atividades perigosas ou de responsabilidade pelo perigo: tal hipótese não pode ser tratada como as outras, pois, guarda inúmeras peculiaridades, não podendo do autor se exigir a prova da causalidade entre a atividade e o dano; c) responsabilidade por violação de dever legal: de igual modo, ao autor não pode ser imposta prova do nexo entre a violação do dever legal e o dano sofrido" [14].

São incontáveis, na prática, os casos em que pode ser procedida a distribuição dinâmica, cabendo aqui a ressalva, contudo, de que a regra no Direito Processual Civil Brasileiro continua sendo a prevista no caput do artigo 373 do CPC, fato este que foi, inclusive, reiterado pela nova Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/1992, com alterações da Lei nº 14.230/2021), em cujo artigo 17, §19, II [15], consta expressamente a vedação, nas ações de improbidade administrativa, da aplicação dos §§1º e 2º do artigo 373 do CPC. De modo geral, cabe ao magistrado, amparado pelo intuito cooperativo que deve prevalecer entre as partes, e na análise do caso concreto, ponderar qual dos métodos trará melhores soluções na busca pela efetiva prestação da tutela jurisdicional e pelo acesso à Justiça.


[1] MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual Civil Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 69.

[2] CÂMARA, Alexandre Freitas. O Novo Processo Civil Brasileiro. São Paulo: Atlas, 2015, p. 230/231.

[3] MEDINA, José Miguel Garcia. Direito processual Civil Moderno. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 72.

[4] Menciona-se, aqui, v.g., a inversão do ônus da prova decorrente do princípio da precaução, em situações de danos ao meio ambiente, no sentido de que, não havendo certeza sobre o causador do dano ambiental, cabe ao suposto autor do dano o ônus de provar que adotou conduta precavida e que não ensejou riscos ao meio ambiente. A propósito, o enunciado da Súmula 618/STJ: "A inversão do ônus da prova aplica-se às ações de degradação ambiental".

[5] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Imposição e Inversão do Ônus da Prova. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 218.

[6] CABRAL, Antônio do Passo; CRAMER, Ronaldo. Comentários ao Novo Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2015, p. 579.

[7] Cumpre aqui registrar que a teoria desenvolvida por Peyrano é exclusiva nos moldes por ele propostos, contudo, a ideia que a compõe já havia sido tratada por outros autores, quando se discutia a adoção da teoria estática do ônus da prova, a exemplo de Jeremy Bentham, que, em sua obra, já defendia a imputação do onus probandi à parte que o suportasse com menos dificuldades, após a análise do caso concreto.

[8] LOURENÇO, Haroldo. Teoria Dinâmica do Ônus da Prova no novo CPC. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo, Método, 2015, p. 140.

[9] "A norma legal deixa evidente a necessidade de atender as peculiaridades da causa, garantir o efetivo contraditório, além de proferir decisão fundamentada e, por fim, de não atribuir prova diabólica a uma das partes. Ainda que a norma legal não traga de fato todas as hipóteses expressas de dinamização do ônus da prova, traz ela importantes elementos para minimizar excessos de poderes do julgador, como a decisão fundamentada e o efeito contraditório" (FUGA, Bruno Augusto Sampaio. O ônus da prova e a carga dinâmica das provas no CPC/2015. In: FUGA, Bruno Augusto Sampaio (et. al. org.). Principais inovações do Novo Código de Processo Civil. 2ª ed. Londrina: Editora Thoth, 2019, p. 300).

[10] STJ, AgReg no AREsp nº 216.315/RS. 2ª Turma. Relator: ministro Mauro Campbell Marques. Julgado em 23/10/2012, DJe 06/11/2012.

[11] STJ, AgInt no AREsp 1757143/DF, Relatora ministra ASSUSETE MAGALHÃES, 2ª TURMA, julgado em 1/3/2021, DJe 08/03/2021.

[12] STJ, REsp 1478173/RS, relatora ministro HERMAN BENJAMIN, 2ª TURMA, julgado em 5/11/2019, DJe 11/09/2020.

[13] STJ, AgInt no AREsp 1293126/DF, relator ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, 3ª TURMA, julgado em 10/12/2018, DJe 14/12/2018.

[14] LOURENÇO, Haroldo. Teoria Dinâmica do Ônus da Prova no novo CPC. Rio de Janeiro: Forense; São Paulo, Método, 2015, p. 136.

[15] Lei nº 8.429/1992. Artigo 17. § 19. Não se aplicam na ação de improbidade administrativa: II — a imposição de ônus da prova ao réu, na forma dos §§ 1º e 2º do artigo 373 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil). (Incluído pela Lei nº 14.230, de 2021).

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  • é advogada no escritório Medina Guimarães Advogados, coordenadora da área de Contencioso Cível e Direito Contratual, pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Universidade Estadual de Londrina, em Direito de Família e das Sucessões pela Damásio Educacional e em Direito Ambiental e do Agronegócio pela PUC-PR.

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