Voto de Minerva

Web story resgata as origens míticas e históricas do in dubio pro reo

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11 de janeiro de 2022, 21h14

Um longo ciclo de vingança e retribuição que alcança várias gerações de uma mesma família, mas rompido pela intervenção divina. Essa é, em resumo, a origem mítica do conceito de que a dúvida deve favorecer o réu. A partir do pacto social celebrado pelo mito, ele foi incorporado à vida dos cidadãos e passou a balizar a vida em sociedade. Uma narrativa visual sobre essa história foi publicada pela ConJur um formato de Web Story.

Adolphe Bouguereau (1862) - Google Art Project
Pintura mostra Orestes sendo atormentado pelas Fúrias após assassinar a própria mãe
Adolphe Bouguereau (1862)

A origem mítica ficou registrada na Oresteia, um conjunto de três peças trágicas de Ésquilo, que datam do século V a.C. Elas contam a trajetória de Orestes, filho de Agamemnon e Clitemnestra, e o fim de um ciclo de derramamento de sangue que já atravessava gerações.

Tudo começou porque Agamemnon irritou a deusa Ártemis. Segundo Ésquilo, ela estava desgostosa por causa dos jovens que morreriam na guerra de Troia; segundo Sófocles, porque Agamemnon tinha matado um animal sagrado e se gabado de ser igual à deusa na caça.

O fato é que, antes da partida para a guerra, a deusa enviou pragas e parou os ventos, impedindo o exército de Agamemnon de zarpar. Um adivinho informou que ele teria de sacrificar a própria filha, Ifigênia, para acalmar a ira de Ártemis.

Em algumas versões, ela é sacrificada; em outras, Ártemis se apieda da moça e a leva para Táurida, onde ela se torna sua sacerdotisa. De qualquer forma, a ação da primeira peça começa quando Agamemnon retorna da guerra de Troia, nove anos depois.

Clitemnestra, durante todo esse tempo, não tinha perdoado o sacrifício da filha. Além disso, durante a ausência do marido, ela se envolveu com o primo dele, Egisto, e juntos eles conceberam um plano para matar Agamemnon e vingar a morte de Ifigênia.

Quando Agamemnon volta para Argos, seu reino, a esposa o recebe com honrarias. Dentro do palácio, ela o assassina, assim como a Cassandra, a profetisa condenada a nunca ser acreditada, que Agamemnon tinha levado para casa como escrava de guerra.

A segunda peça da Oresteia, chamada "Coéforas", acompanha a trajetória de Orestes, filho de Agamemnon. Anos após o assassinato do pai, ele deve vingar sua morte, por ordem do deus Apolo. Ele vai a Argos, então, onde é recebido no castelo, mas não é reconhecido pela mãe. Fingindo ser outra pessoa, ele diz que Orestes está morto.

Clitemnestra chama Egisto para dar-lhe a notícia. Orestes, aproveitando-se do momento, assassina Egisto. (Os dois ramos da família eram inimigos: Atreu, o pai de Agamemnon, ao descobrir que sua esposa o estava traindo com o irmão, Tiestes, castigou-o matando seus filhos e servindo-os para o pai como jantar. Desolado e expulso do reino, Tiestes teve outro filho, fruto de um incesto com sua própria filha, esse nosso Egisto. Foi ele quem matou Atreu. Posteriormente, Agamemnon e seu irmão Menelau retomaram o trono de Argos das mãos de Tiestes e Egisto, que só voltou a reinar por ação de Clitemnestra).

Voltando à história, Orestes é então confrontado pela mãe, e vacila diante da tarefa de matá-la para vingar o pai. Mas ele se lembra da ordem de Apolo e por fim assassina a própria mãe. Depois disso, no entanto, ele passa a ser perseguido pelas Erínias (também conhecidas como as Fúrias, seu nome romano), divindades responsáveis por vingar atos de parricídio e matricídio.

Arrasado pela culpa e perseguido pelas Erínias, Orestes, no início da última peça, visita um templo de Apolo para lhe pedir ajuda, já que foi ele que o encorajou a matar a mãe. Apolo não tem poderes sobre as Erínias, que são deusas ainda mais antigas que os do Olimpo, e manda Orestes buscar a ajuda de Palas Atena.

A deusa o salva de ser estraçalhado pelas Eríneas e anuncia então que vai instituir um julgamento para decidir sobre a culpa de Orestes. Para isso, convoca 12 cidadãos, que se reúnem no Areópago, a parte noroeste da Acrópole.

Ali, ao ar livre, Apolo defende Orestes, enquanto as Erínias o acusam. Os doze jurados votam, mas o julgamento termina empatado. Palas Atena, então, vota ela mesma, declarando que o empate favoreceria o réu. Por isso, aliás, até hoje o voto de desempate é chamado de "voto de Minerva" (o nome romano de Atena). A deusa declara que as Erínias devem passar a se chamar Eumênides (as "bondosas", que dão título à peça) e zelar pelo cumprimento da lei.

Na Grécia antiga, cinco séculos antes de Cristo, o teatro tinha uma função de legitimação social. O estabelecimento de um sistema de Justiça, apesar de sua origem mítica, é chancelado e passa a efetivamente reger a vida das pessoas a partir da encenação da tragédia, com um caráter ritualístico.

Assim, a Oresteia marca a estaca zero de um pacto que alargou o horizonte emocional dos gregos, dos próprios clãs familiares para a cidade, a polis; que deu fim ao ciclo de vingança e reparação para instituir um julgamento justo, por julgadores imparciais; e que definiu que, em caso de dúvida sobre a culpa, deve-se sempre favorecer o réu, para não arcar com o preço de cometer uma nova injustiça.

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