Intercâmbio questionado

Resolução do CNJ que permite intercâmbio de juízes gera dúvidas e críticas

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11 de janeiro de 2022, 8h21

Por um lado, não há dúvidas que a troca de experiência entre juízes de diferentes localidades, que lidam com realidades bastante distintas por conta das dimensões continentais do Brasil, pode ser enriquecedora e trazer benefícios à prestação do serviço judicial. Por outro lado, as regras de um intercâmbio entre tribunais têm de ser mais claras e esmiuçadas para evitar favorecimentos indevidos e somente a lei poderia prever a possibilidade de juízes atuarem em locais diversos daquele para o qual prestaram concurso público — nunca uma resolução do Conselho Nacional de Justiça.

Reprodução/CNJ
Possibilidade de troca de aprendizado é positiva, mas resolução não define regras claras, segundo magistrados
CNJ

De forma geral, são essas as reações de magistrados ouvidos pelo site Consultor Jurídico a respeito da Resolução 441/2021 do CNJ, aprovada na última sessão do Conselho e publicada na semana passada. Muitos enxergam a boa intenção da proposta, mas observam que ela é confusa e tem lacunas que podem ser usadas de forma desvirtuada.

A regra instituiu o que se batizou de Programa Nacional "Visão Global do Poder Judiciário" e tem como objetivo declarado a troca de experiências, compartilhamento de informações entre juízes e a disseminação de boas práticas, entre outros motivos. Como? Com o intercâmbio de juízes. Um magistrado estadual de Rondônia que esteja interessado em trabalhar na Justiça estadual da Bahia pode requisitar seu deslocamento, que tem de ser aceito pelo tribunal anfitrião e permitido por seu tribunal de origem.

A ideia surgiu no contexto da cooperação internacional entre magistrados de outros países com o Brasil. Questionou-se: se estudamos as boas práticas internacionais, por que não compartilhar as boas ideias e soluções caseiras, com um intercâmbio entre os juízes brasileiros a partir de suas diferentes realidades? Daí surgiu a resolução que vem movimentando a magistratura neste início de ano.

O CNJ acredita que a regra não atenta contra o princípio do juiz natural, tampouco que necessitaria de alteração legislativa ou constitucional. Na visão do Conselho, já se regulamentou coisas mais importantes, como a Resolução 135, que rege o processo administrativo disciplinar, sem grande oposição. O que o CNJ buscou ao idealizar o intercâmbio foi prestigiar o princípio da eficiência, da autonomia dos tribunais e cumprir uma diretriz da Emenda Constitucional 45, da Reforma do Judiciário, que incentiva a capacitação dos juízes. Gestão eficiente da mão de obra da Justiça foi o mote da ideia na cabeça de seus gestores.

Desamparo legal
"É uma ótima ideia, até a página dois", afirmou um juiz ouvido pelo ConJur. "Como ficarão, por exemplo, os processos da vara deixados por um juiz que decidiu ir trabalhar em outro estado? Neste outro estado, a vara terá três juízes — o substituto, o titular e o visitante — e apenas um na vara deixada para trás? A resolução diz que o prazo máximo que o juiz pode prestar serviço em juízo diverso é de seis meses. Em tese, não há prorrogação. Mas não há prorrogação para atuação na mesma localidade. O juiz, então, pode solicitar a atuação em outro local por outros seis meses? Qual o número máximo de intercâmbios que um magistrado poderá fazer? Há muitas perguntas que não estão respondidas pela resolução".

Outro magistrado paulista viu méritos na ideia. "Sem dúvida, seria muito interessante atuar em uma localidade diversa, até para enriquecer a visão sobre o sistema de Justiça, para observar outras formas de práticas judiciárias. É uma medida interessante". Mas ele também apontou falhas: "Por exemplo, é preciso criar balizas para que não se permita intercâmbio apenas para lugares bacanas, melhores do que aquele em que o magistrado atua. Não pode ser algo que acabe usado apenas para agradar amigos." Para o juiz, seria possível identificar varas problemáticas e direcionar para elas o magistrado visitante, para que ele julgue os casos novos enquanto o juiz local cuida do acervo atrasado. "Neste caso, a norma beneficiaria, sim, juízes e cidadãos."

Dois ministros de tribunais superiores, um aposentado e outro da ativa, fizeram críticas semelhantes à regra. A primeira foi sobre a competência do CNJ para regular o tema. "Não vejo na Loman, nem na Constituição Federal, amparo legal para o exercício da judicatura em local diverso daquele para onde o juiz foi concursado", disse um deles. Outro apontou para a quebra do princípio do juiz natural e para a falta de clareza para o intercâmbio. "Há o risco de quebra do princípio do juiz natural, porque uma coisa é o juiz ser promovido, removido e outro da mesma jurisdição assumir o processo; outra, diferente, é a vara ser assumida por alguém de fora, de outro tribunal", afirmou.

Também há críticas em relação à falta de transparência sobre qual o critério para disponibilização de varas a serem assumidas pelo juiz visitante, sem contar o prejuízo de quem está na lista de promoção e não pode assumir uma vara porque ela pode estar ocupada por alguém de outro estado. Os ministros também demonstraram receio de favorecimento indevidos. "O sujeito faz um concurso e é lotado em uma unidade com pouca estrutura no interior do país, mexe seus pauzinhos e vai parar por seis meses em São Paulo, em uma unidade ótima. Não dá para dizer que isso irá acontecer, mas podemos imaginar. Existe a possibilidade", disse um deles.

Em artigo publicado no ConJur na segunda-feira (10/1), o professor Lenio Streck abordou as duas questões levantadas pelos ministros: falta de competência legal e quebra do princípio do juiz natural. "A Constituição garante o princípio (não raras vezes esquecido) do juiz natural. Que não é um direito do juiz e que não é um adorno que pode ser trocado, mas sim uma garantia do jurisdicionado. Se é para o jurisdicionado, juiz não pode renunciar ao que não é seu. Não há no sistema constitucional e nem legal a possibilidade de um juiz exercer jurisdição em outro Estado: o acesso ao cargo é por concurso", escreveu o professor no texto — clique aqui para ler. "Decisões de um juiz do Amapá proferidas no Rio Grande do Sul são nulas. Írritas."

Consultado pelo site, o professor ainda pontuou que "faltaram regras republicanas". Para ele, a escolha de quem fará intercâmbio não pode ser discricionária. "Faltou a exigência de expertise que possa ser levada a outra unidade da federação. Por qual razão um juiz vai para outro estado? Deve ter algo em especial: expertise." A resolução não faz exigência alguma sobre isso.

Ao blog do jornalista Frederico Vasconcelos, publicado pela Folha de S.Paulo, a desembargadora aposentada Kenarik Boujikian fez coro à crítica sobre a quebra do juiz natural. Segundo ela, trata-se de uma garantia que não é dirigida aos magistrados, mas ao jurisdicionado e à democracia: "Se entendemos que a regra se destina ao jurisdicionado, evidentemente não pode o juiz individualmente abrir mão do cargo, pois não lhe pertence e, muito menos, o próprio Poder Judiciário."

Presidente eleita do Tribunal Regional Federal da 3ª Região (TRF-3), a desembargadora Marisa Santos abordou a resolução sob um ângulo prático. "A falta de juízes — temos muitas vagas para preencher — vai dificultar ao tribunal de origem ceder o magistrado para outros tribunais", opinou. Um juiz federal disse ao site que não consegue enxergar o benefício da resolução do CNJ. "Para ser franco, confesso ainda não ter compreendido qual o efeito prático positivo da possibilidade de um juiz atuar em tribunal diverso da lotação original", diz. Outro juiz, este estadual, acredita que os tribunais deveriam contestar a resolução: "O problema é que, nos tempos que correm, não se questiona nada do CNJ. Não se questionam nem mesmo coisas altamente questionáveis, como essa resolução."

Judiciário uno
Apesar das críticas, a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) comemorou a regra do CNJ. De acordo com manifestação enviada ao site (leia a íntegra abaixo) pela juíza Julianne Freire Marques, secretária-geral da entidade, a resolução é "mais um passo em direção à integração do Judiciário" e seu resultado "será o aperfeiçoamento dos serviços oferecidos aos cidadãos". Para a magistrada, "a disseminação de boas práticas trará mais equilíbrio à prestação jurisdicional como um todo".

O presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe), Eduardo André Brandão, afirmou que a entidade ainda não tem uma posição institucional sobre a resolução, mas que pessoalmente a enxerga com muito bons olhos. "Creio que ela tende ao princípio da eficiência e tem como foco o crescimento do magistrado por entrar em contato com realidades diferentes. Trata-se de um intercâmbio com prazo definido e sem assumir processos em curso em outro local, então não vejo uma firme violação do princípio do juiz natural."

Para o juiz federal, como qualquer ideia que é implantada, esta deve ser fiscalizada para evitar quaisquer privilégios. Mas ele acredita que gestão dos tribunais funcionará para impedir eventuais tentativas de desvios, como um juiz que queria assumir seguidas vezes postos em locais diferentes do seu tribunal original. "Vejo como uma nova e boa ideia de tentar tornar os juízes mais completos, de treinar magistrados, fazê-los evoluir, desafiá-los."

A ConJur entrou em contato com o CNJ para ouvir o órgão administrativo sobre as críticas à resolução. A assessoria de comunicação do Conselho respondeu que eventuais lacunas nas regras podem ser suplementadas naturalmente com "diversas outras normativas e legislações" que já regulam o dia a dia do Judiciário. E também que se algum abuso ocorrer, acredita que será identificado pela Corregedoria Nacional ou pelas corregedorias dos tribunais e prontamente corrigido.

Ainda de acordo com a nota enviada ao site (leia a íntegra abaixo), "as gestões dos tribunais têm o compromisso da realização das metas e resultados e por tal é tácita a responsabilidade da gestão de cada órgão ao aprovar a participação de magistrados e magistradas no programa".

Leia a manifestação da assessoria de comunicação do CNJ

A luz do princípio da eficiência previsto no Art.º 37 da Constituição Federal, o CNJ, por meio da Resolução 441/2021, estimula os tribunais brasileiros a, no exercício de suas autonomias, fazerem melhor uso da sua força de trabalho com o objetivo de alcançar uma melhor gestão. O intercâmbio de magistrados e magistradas promoverá a troca de experiências que é, inclusive, importante para a capacitação exigida pela Constituição.

O Programa Visão Global é estruturado de forma simples, em sua normativa, pois é suplementado naturalmente com diversas outras normativas e legislações que já regulamentam o dia a dia do Judiciário.

Não se espera que haja uso indevido do programa. Mas, se eventualmente alguma situação concreta ocorrer, certamente será identificada, tanto nas inspeções ordinárias realizadas pela Corregedoria Nacional e pelas Corregedorias dos tribunais. Além disso, as gestões dos tribunais têm o compromisso da realização das metas e resultados e por tal é tácita a responsabilidade da gestão de cada órgão ao aprovar a participação de magistrados e magistradas no programa.

Os pontos que podem gerar dúvidas na aplicação da Resolução 441/2021 podem ser objeto de avanços a partir de análise do CNJ.

Leia a manifestação da AMB

Apesar de o Brasil possuir dimensões continentais, o Poder Judiciário é uno: todos os seus ramos estão interligados e respondem, do ponto de vista do controle externo, ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

Com a Resolução nº 441, de 24 de dezembro de 2021, damos mais um passo em direção à integração do Judiciário, dentro de uma visão global. O resultado será o aperfeiçoamento dos serviços oferecidos aos cidadãos.

A possibilidade de magistrados atuarem em órgãos do Poder Judiciário diversos do tribunal de origem não apenas representa um ganho de conhecimento para os juízes, por meio do intercâmbio e da troca de experiências, como pode ajudar a suprir deficiências e desigualdades na distribuição de recursos humanos.

O ato normativo não autoriza o recebimento de qualquer vantagem excepcional pelos magistrados, nem imporá custos extras aos cofres públicos; pelo contrário, a disseminação de boas práticas trará mais equilíbrio à prestação jurisdicional como um todo.

Julianne Freire Marques

Secretária-geral da AMB

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