Opinião

Reina no Processo Penal o rito ordinário

Autor

  • Almir Santos Reis Junior

    é doutor em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) professor do Curso de Doutorado em Direito Público da Universidade Católica de Moçambique docente do curso de Mestrado em Direito Penal na Universidade Católica de Moçambique professor Adjunto TIDE do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) ex-presidente da Comissão de Advogados Criminalistas da Ordem dos Advogados do Brasil na subseção de Maringá.

11 de janeiro de 2022, 12h14

Os procedimentos processuais penais dividem-se em comum e especial; aquele é subdividido em ordinário, sumário e sumaríssimo, tendo sua distinção fundamentada no quantum de pena máxima cominada, em abstrato, no molde penal. Portanto, em razão da redação do artigo 394, §1º, do CPP, se o crime descrito na inicial acusatória cominar, em abstrato, pena máxima igual ou superior a quatro anos, o rito empregado será o ordinário; se a pena máxima prevista no tipo penal for menor que quatro anos, o rito adotado será o sumário; e tratando-se de infrações penais de menor potencial ofensivo (as contravenções penais e os crimes, cuja pena máxima seja igual ou inferior a dois anos), adotar-se-á o rito disposto na Lei 9.099/95, excetuando aquelas infrações, com tal penalidade, cometidas no âmbito de incidência da Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), a que por vedação expressa do artigo 41 do referido diploma legal não serão aplicadas as diretrizes da Lei 9.099/95, mas, sim, do rito sumário. Por outro lado, o procedimento especial leva em consideração a natureza da infração penal; é o que ocorre, por exemplo, nos ritos do júri e da Lei de Drogas, empregados, respectivamente, para instrução e julgamento dos crimes dolosos contra a vida e aqueles definidos na Lei 11.343/06, com exceção ao tipo penal descrito no artigo 28 desse diploma legal, cujo rito processual será sumaríssimo.

Nessa esteira, depreende-se que o procedimento penal é determinado pelo titular da ação penal, já que um dos requisitos que devem estar presentes na inicial acusatória (denúncia ou queixa) é a classificação do crime (artigo 41, CPP) [1], ou seja, deve o proponente da inicial indicar a moldura penal sobre a qual os fatos por ele narrados encaixam-se, já que o réu se defende dos fatos, afastando-se, então, da questão relacionada à tipificação eleita pelo titular da ação penal, que é sempre provisória, porém, determinadora do procedimento penal [2].

Pois bem, à luz dos dispositivos que disciplinam o procedimento comum ordinário, sobretudo os artigos 396 ao 405 do Código de Processo Penal, em correspondência às prescrições que regulam o rito comum sumário, singularmente os artigos 531 ao 534, do CPP, chega-se à síntese de que as diferenças que pousam entre eles são:

a) No rito ordinário, as partes podem arrolar até oito testemunhas (artigo 401, CPP), enquanto no rito sumário o número máximo é de cinco (artigo 532, CPP);

b) No rito ordinário, a instrução e julgamento deve ocorrer em até sessenta dias (artigo 400, CPP), enquanto no procedimento sumário o prazo máximo é de 30 dias (artigo 531, CPP);

c) No rito ordinário, após a tomada de declarações da vítima, oitiva das testemunhas, complementos dos peritos, realização de acareações, reconhecimento de pessoas ou coisas e interrogatório do acusado, o juiz indaga às partes se há requerimento de diligências complementares, conforme ordena o artigo 402, CPP (ex. requerimento de prazo para juntada de prova documental); no rito sumário não há tal previsão legal; portanto, após a instrução criminal, segue-se a fase de alegações finais orais;

d) No rito ordinário, independentemente da existência de requerimento de diligências complementares, o magistrado pode substituir as alegações orais das partes por memoriais, conforme autoriza o artigo 403, §3º, do CPP, concedendo o prazo de cinco dias para tal ato e, por consequência, o magistrado terá dez dias para proferir a sentença; no rito sumário, não há previsão legal sobre a substituição das alegações orais por memoriais e, por conseguinte, as alegações, em princípio, são sempre orais, e a sentença é prolatada no termo de audiência (artigo 534, CPP);

e) No rito ordinário, especialmente nos crimes contra a dignidade sexual, devem as partes e os sujeitos processuais zelar pelas integridades física e psicológica da vítima, sendo vedadas a manifestação sobre fatos alheios à causa e a utilização de vocábulos que maculem a vítima ou as testemunhas (artigo 400-A, CPP, introduzido pela Lei 14.245/21); no rito sumário, não há qualquer previsão legal sobre a cláusula de respeito ou reverência.

Em que pese tais distinções legais, a leitura do precioso artigo 94, §5º, do CPP, que dispõe: "Aplicam-se subsidiariamente aos procedimentos especial, sumário e sumaríssimo as disposições do procedimento ordinário", permite concluir que as distinções entre ambos os procedimentos são meramente decorativas, uma perfumaria legislativa no âmbito do processo penal. Isso porque a disposição topográfica desse parágrafo revela sua importância, já que vem depois das diretrizes que disciplinam as regras para escolha do rito processual, inclusive aquelas de competência do júri. Portanto, seu valor hierárquico é inquestionável face demais disposições contidas nos parágrafos antecedentes.

Sob a ótica desse parágrafo, pode-se chegar ao epílogo de que as diferenças que repousam sobre os procedimentos ordinário e sumário são meras ficções legais, porquanto todas as disposições descritas nos artigos 396 ao 405 do CPP são aplicadas, subsidiariamente, a todos os procedimentos penais, inclusive os especiais dispostos ou não em microssistemas legais. À vista disso, não há qualquer ilegalidade no fato de o juiz, no rito sumário, ouvir número maior de testemunhas para a produção da verdade que mais se aproxima à realidade dos fatos, porque age amparado pelo §5º do artigo 394, CPP; da mesma forma, não há insurgência à lei em determinar a realização de diligências complementares no rito sumário, cuja necessidade se origine de circunstâncias ou fatos apurados na instrução criminal. Ademais, a substituição das alegações finais orais por memoriais é uma realidade forense brasileira, da mesma forma em que a regra, no Brasil, é que as sentenças não sejam proferidas em audiência, seja qual for o procedimento. É bom lembrar que a previsão legal de substituição das alegações orais por memoriais não existe, expressamente, nem mesmo no rito do júri, ou seja, é uma identidade exclusiva do rito ordinário, mas que em razão da incidência do artigo 394, §5º, do CPP pode ser extensiva a todos os demais ritos processuais [3]. Idêntica interpretação deve ser extraída quanto ao prazo para a realização da instrução e julgamento.

Por fim, a última característica diferenciadora está ligada à previsão legal sobre o respeito que as partes (defesa e acusação) e os sujeitos processuais devem ter em relação à vítima e às testemunhas, especialmente para que não ocorra qualquer ofensa corporal ou psicológica à vítima além daquela derivada da ação criminosa. Embora a Lei 14.245/21 tenha determinado tal diretriz somente nos ritos ordinário, sumaríssimo e do júri, não é possível dela distanciar em relação a qualquer outro rito processual, já que o respeito àqueles que compõem, por meio da exposição de seus sentidos humanos, a massa probatória do processo penal, é medida medular a qualquer rito processual, independentemente de previsão legal específica. Não obstante, é importante registrar a omissão censurável do legislador, na redação do artigo 400-A do CPP, em relação à ausência de previsão legal ao desvelo às integridades física e psíquica também do acusado, que, atualmente, é o mais tolhido na produção probatória, na qual ainda é comum interrogatórios longos, com perguntas capiciosas, evasivas e arguciosas, que maculam sua integridade. Consequentemente, o emprego da integração analógica, com escopo de agregar o acusado nessa previsão legal de respeito, é postura que amolda à dignidade do mesmo e, portanto, é inafastável.

Nessa senda, chega-se do outro lado da margem, em terra firme, com a consciência de que tudo o que for amparado pelas normativas do rito ordinário deve ser referendado, seja pelo juiz ou tribunal, pois, além da previsão legal autorizadora, avizinha-se com maior relevo à ampla defesa. Assim, ouvir o réu por último no procedimento especial da Lei de Drogas, em revelia ao artigo 57, da Lei 11.343/06, ou permitir que no rito especial definido por essa lei haja autorização judicial para que sejam realizadas diligências complementares como, por exemplo, a expedição de ofício solicitando a remessa de laudo toxicológico definitivo, tem arrimo nas diretrizes do rito ordinário, já que esse é o procedimento de maior impacto e incidência nos demais ritos (com a ressalva da segunda fase do rito do júri, cuja especialidade é peculiar), porquanto assegura o acato e a submissão aos princípios da ampla defesa, do contraditório e da verdade real.

 


[1] Embora o referido dispositivo processual traga, em sua redação, o vocábulo "crime", deve-se ler como "infração penal", tendo em vista que esta, enquanto gênero, contempla os crimes e as contravenções penais.

[2] Isso ocorre porque o julgador, ainda que divirja da tipificação descrita na inicial, pelo titular da ação penal, receberá a denúncia ou queixa, porquanto, na fase da sentença, fará a adequação típica formal correta, na forma do artigo 384, do CPP (emendatio libelli), desde que, evidentemente, os fatos narrados na inicial sejam os mesmos.

[3] Nesse sentido, pode-se embasar as alegações finais orais por memoriais das seguintes formas: no rito ordinário  artigo 403, §3º, do CPP; no rito sumário  artigo 534, na forma do artigo 403, §3º, c/c 394, §5º, todos do CPP); no rito sumaríssimo  artigo 81, caput, da Lei 9.099/95, na forma do artigo 403, §3º, c/c 394, §5º, todos do CPP); no rito da Lei 11.343/06  artigo 57, da Lei 11.343/06, na forma do artigo 403, §3º, c/c 394, §5º, todos do CPP; no rito do júri  artigo 411, na forma do artigo 403, §3º, c/c 394, §5º, todos do CPP.

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    é doutor em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, professor do curso de doutorado em Direito Público da Universidade Católica de Moçambique, docente do curso de mestrado em Direito Penal na Universidade Católica de Moçambique, professor adjunto Tide do curso de Direito da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e advogado.

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