Direito Eleitoral

Impeachment e inelegibilidade de governadores e presidentes da República

Autor

  • Márcio Gonçalves Moreira

    é advogado palestrante e professor de pós-graduação ex-juiz eleitoral do TRE/TO membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP) da Academia Palmense de Letras (APL) e do Instituto de Direito Eleitoral do Tocantins (IDETO).

10 de janeiro de 2022, 11h16

A correlação entre impeachment e inelegibilidade é assunto que por vez ou outra volta a ser discutido, sobretudo por se tornarem mais frequentes a ocorrência de casos de impedimentos não só na esfera federal, mas agora nos âmbitos estaduais.

Estaria automaticamente inelegível o agente político que perdeu seu cargo por processo político de impeachment?

De plano, registro, fixarei um recorte temático no sentido de analisar os impedimentos dos governadores e presidentes da República, sobretudo no sentido de demonstrar a diferença formal dos processos, suas implicações na elegibilidade e a compatibilização da Lei 64/90 com o quanto estampado no artigo 52 da Constituição Federal (CF).

Em primeiro plano, já se mostra evidente que os processos de impeachment, no Brasil, contra governadores e presidentes da República contam com particularidades que os tornam diferentes. A primeira delas residiria no fato de que, na órbita federal, considerando o bicameralismo eleito pelo Brasil, incumbiria à Câmara dos Deputados o recebimento do pedido de impedimento e ao Senado o seu processamento e julgamento definitivo.

A título infraconstitucional, dispõe a Lei 64/90 sobre a inelegibilidade derivada de impeachment:

"Artigo 1º São inelegíveis:

I – para qualquer cargo:

c) o governador e o vice-governador […] que perderem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual, […], para as eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos oito anos subsequentes ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos;

k) o presidente da República, o governador de Estado […], que renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da Constituição Federal, da Constituição Estadual[…], para as eleições que se realizarem durante o período remanescente do mandato para o qual foram eleitos e nos oito anos subsequentes ao término da legislatura;"

Acentuando a diferença sobre a qual me referi, note que a Lei 64/90 trata de seus efeitos de forma própria e individualizada para os governadores e para o presidente que tiverem seus mandatos cassados em razão de prática ofensiva às constituições estaduais e federal, respectivamente.

Outro ponto que merece reflexão é a previsão de inelegibilidade para o caso de renúncia derivada da abertura de processo de impedimento. Não obstante a previsão legal, a jurisprudência já se formou no sentido de que a renúncia com a abertura do processo de impedimento não seria motivo para seu arquivamento por perda de objeto.

Percebe-se que a letra 'c' acima transcrita não incluiu o presidente da República dentre os cargos que ficam inelegíveis por perda do cargo por infringência a dispositivo da Constituição. O presidente foi incluído apenas na letra 'k', dentre os cargos que renunciar a seus mandatos desde o oferecimento de representação capaz de autorizar a abertura de processo por infringência a dispositivo da CF.

Tal situação me parece um pouco ilógica, pois renunciar ao cargo, por si só, quando já houver representação, ao passo que se responder ao processo de impeachment e inclusive for cassado não ficará automaticamente inelegível, pois tal decisão caberá ao Senado.

Veja, a teor da alínea "k", o ato de renúncia ao cargo no contexto de impeachment, por si só, já atrairia a inelegibilidade, ao meu sentir, de forma automática. Contudo, em caso de permanência no cargo e enfrentamento do processo de impeachment e deste derive a cassação, a hipótese de inelegibilidade deve ser analisada individualmente, ou seja, não haveria inelegibilidade automática. Pode ou não ser inabilitado para o exercício de função pública.

Nesse sentido, analisando a candidatura ao Senado da ex-presidente Dilma Rousseff  após o impeachment , decidiu o TSE:

"Ementa:

Mérito
7. A causa de inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, c, da LC nº 64/1990 refere-se, exclusivamente, à perda de cargo eletivo em virtude de processo de impeachment instaurado contra o chefe do Poder Executivo estadual, distrital ou municipal. Não há como se interpretar o dispositivo de forma a abranger, também, o presidente da República, que possui regramento próprio (artigo 52, I e parágrafo único, da CF/1988).

8. A condenação em processo de impeachment não configura a causa de inelegibilidade prevista no artigo 1º, I, e, da LC nº 64/1990. Isso porque, dada a sua natureza, a condenação por crime de responsabilidade não se equipara a uma 'decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado'.

10. Hipótese em que preenchida a condição de elegibilidade do artigo 14, §3º, II, da CF/1988, já que não se impôs à recorrida a sanção de inabilitação para o exercício de função pública, de modo que ela se encontra em pleno gozo de seus direitos políticos.

Conclusão
12. Considerando-se 1) o preenchimento das condições de elegibilidade, em especial as previstas no artigo 14, §3º, II e IV, da CF/1988; e 2) a não incidência de quaisquer causas de inelegibilidade, afastando-se a alegação de incidência das causas de inelegibilidade do artigo 1º, I, c, e e g da LC nº 64/1990, deve-se reconhecer a aptidão da candidata para participar das eleições de 2018 visando ao cargo de senador da República.

(…)

21. A recorrida não incide na causa de inelegibilidade prevista na alínea 'c' do inciso I do artigo 1º da Lei Complementar nº 64/19908. Tal causa de inelegibilidade tem incidência restrita ao governador e ao vice-governador de Estado e do Distrito Federal e ao prefeito e ao vice-prefeito que perderem seus cargos eletivos por infringência a dispositivo da Constituição Estadual e da Lei Orgânica do Distrito Federal ou do Município. (ministro Luís Roberto Barroso. 0601644-30.2018.6.13.0000/TSE)"

Em seu voto como relator no processo acima referenciado, o ministro Luís Roberto Barroso ponderou:

"12. … a necessidade de se privilegiar o direito fundamental à elegibilidade. Os direitos políticos de votar (capacidade eleitoral ativa ou alistabilidade) e de ser votado (capacidade eleitoral passiva ou elegibilidade em sentido amplo) são, afinal, direitos fundamentais. Disso decorre, de um lado, que o intérprete, diante de normas sobre direitos políticos, deverá, sempre que for juridicamente possível, privilegiar a linha interpretativa que amplie o gozo de tais direitos, interpretando-se quaisquer restrições de forma estrita. Apenas em caráter excepcional deve-se subtrair do povo o poder de decidir em quem votar. Nesse sentido consolidou-se a jurisprudência do TSE, que entende que as causas de inelegibilidades, requisitos de caráter negativo previstos na Constituição e na Lei Complementar nº 64/1990, devem ser interpretadas restritivamente. […]. De outro lado, não se deve admitir a aplicação analógica das causas de inelegibilidade. Sendo a inelegibilidade uma restrição a direito fundamental, não se pode aplicá-la por analogia a casos não expressamente previstos no relato da norma. As causas de inelegibilidade são apenas aquelas taxativamente previstas na Constituição e na lei."

Fechado este recorte, adiante, necessário explorarmos outra questão que merece reflexão. A nível Federal, o impeachment é regido pelo artigo 52, da CF:

"Artigo 52. Compete privativamente ao Senado Federal:

I – processar e julgar o presidente e o vice-presidente da República nos crimes de responsabilidade…

Parágrafo único. Nos casos previstos nos incisos I e II, funcionará como presidente o do Supremo Tribunal Federal, limitando-se a condenação, que somente será proferida por dois terços dos votos do Senado Federal, à perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública, sem prejuízo das demais sanções judiciais cabíveis."

Regulamentando o referido artigo, a Lei Federal 1.079/50 traz o detalhamento dos processos de impeachment, inclusive, no tocante aos governadores:

"Artigo 78. O Governador será julgado nos crimes de responsabilidade, pela forma que determinar a Constituição do Estado e não poderá ser condenado, senão à perda do cargo, com inabilitação até cinco anos, para o exercício de qualquer função pública, sem prejuízo da ação da justiça comum."

Nota-se que a Lei nº 1.079/1950 não fez qualquer referência ao prazo de inabilitação do Presidente. Sendo assim, há quem defenda que cabe ao Senado, por expressa autorização da CF, firmar tal penalidade em processo de impedimento. Esta corrente seria afeta à teoria dos poderes implícitos, que preconiza poderes gerais derivados de uma concessão constitucional.

Entretanto, no caso do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, diversos mandados de segurança foram ajuizados perante o Supremo Tribunal Federal, distribuídos para a relatoria da ministra Rosa Weber. Nos writs se sustentou justamente a violação ao parágrafo único do artigo 52 da CF, ao argumento de que a perda do mandato não poderia ser dissociada da inabilitação para o exercício da função pública. Os Mandados de Segurança nº 34.378, nº 34.370 e nº 34.394 ainda pendem de julgamento.

No caso do cargo de presidente da República, não se verificaria a incongruência legislativa quanto ao prazo, já que não consta no rol do artigo 1º, I, 'c', da LC 64/90, razão pela qual o prazo de inelegibilidade é aquele a ser fixado pelo Senado.

Entretanto, quanto ao governador, percebe-se que há um conflito aparente de normas entre o artigo 78 da Lei 1079/1950 e o artigo 1º, I, 'c', da LC 64/90.

A Lei 1079/1950 diz que o "governador será julgado nos crimes de responsabilidade, pela forma que determinar a Constituição do Estado e não poderá ser condenado, senão à perda do cargo, com inabilitação até cinco anos". Ocorre que a LC 64/90 reza que o governador, caso cassado, ficará inelegível para as eleições que se realizarem durante o período remanescente e nos oito anos subsequentes ao término do mandato para o qual tenham sido eleitos.

O ponto nodal da questão se concentraria em saber se a competência para fixar o prazo de inelegibilidade é do Tribunal Misto previsto na Lei 1079/1950 ou se a inelegibilidade decorre da mera cassação.

Veja que são pontos complexos e algumas premissas parecem razoáveis. Uma delas é no sentido de que se a competência para fixação de tal inabilitação for do Tribunal Misto, não terá aplicação a LC 64/90, pelo que a letra 'c' quanto ao governador é letra morta.

Recentemente o Estado do Rio de Janeiro foi palco de um processo de impeachment do então governador Wilson Witzel. Na ocasião, o Tribunal Misto aprovou, por unanimidade, o impeachment e assentou a impossibilidade de exercer função na administração pública pelo prazo de cinco anos.

Não se olvidando quanto a teoria de Hans Kelsen sobre o conflito aparente de normas, antinomia e coerência da órbita jurídica e a resolução para o caso, tenho que a aplicação dos princípios seria a melhor perspectiva  artigo 4º da LINDB.

Há vertente que se forma no sentido de que o princípio da especialidade seria suficiente para saneamento do conflito de normas acima citado, ou seja, nessa relação, a LC 64/90, por tratar especificamente da inelegibilidade, além do que é norma posterior à Lei 1079/1950, prevaleceria. Somado a isso, a Lei Federal 1079/50 foi recepcionada pela CF/88, portanto, anterior a esta. Além disso, a CF estabelece no artigo 14, §9º que normas sobre inelegibilidade são tratadas por Lei Complementar.

A outra vertente preconiza que a Lei 1079/1950 não foi revogada, pelo contrário, foi recepcionada pela CF. Nesse sentido, o STF afirmou que:

"EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. IMPUGNAÇÃO DA EXPRESSÃO "E JULGAR" [ART. 40, XX]; DO TRECHO 'POR OITO ANOS' [ARTIGO 40, PARÁGRAFO ÚNICO]; DO ARTIGO 73, §1º, II, E §§3º E 4º, TODOS DA CONSTITUIÇÃO DO ESTADO DE SANTA CATARINA. IMPUGNAÇÃO DE EXPRESSÃO CONTIDA NO §4º DO ARTIGO 232 DO REGIMENTO INTERNO DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA. PRECEITOS RELATIVOS AO PROCESSO DE IMPEACHMENT DO GOVERNADOR. LEI FEDERAL Nº 1.079/50. CRIMES DE RESPONSABILIDADE. RECEBIMENTO DO ARTIGO 78 PELA ORDEM CONSTITUCIONAL VIGENTE. VIOLAÇÃO DO ARTIGO 22, I, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1) A expressão 'e julgar', que consta do inciso XX do artigo 40, e o inciso II do §1º do artigo 73 da Constituição catarinense consubstanciam normas processuais a serem observadas no julgamento da prática de crimes de responsabilidade. Matéria cuja competência legislativa é da União. Precedentes. 2) Lei federal nº 1.079/50, que disciplina o processamento dos crimes de responsabilidade. Recebimento, pela Constituição vigente, do disposto no artigo 78, que atribui a um Tribunal Especial a competência para julgar o Governador. Precedentes. 3) Inconstitucionalidade formal dos preceitos que dispõem sobre processo e julgamento dos crimes de responsabilidade, matéria de competência legislativa da União. 4) A CB/88 elevou o prazo de inabilitação de cinco para oito anos em relação às autoridades apontadas. Artigo 2º da Lei nº 1.079 revogado, no que contraria a Constituição do Brasil. 5) A Constituição não cuidou da matéria no que respeita às autoridades estaduais. O disposto no artigo 78 da Lei nº 1.079 permanece hígido  o prazo de inabilitação das autoridades estaduais não foi alterado. O Estado-membro carece de competência legislativa para majorar o prazo de cinco anos  artigos 22, inciso I, e parágrafo único do artigo 85, da CB/88, que tratam de matéria cuja competência para legislar é da União. 6) O Regimento da Assembléia Legislativa catarinense foi integralmente revogado. Prejuízo da ação no que se refere à impugnação do trecho 'do qual fará chegar uma via ao substituto constitucional do Governador para que assuma o poder, no dia em que entre em vigor a decisão da Assembléia', constante do §4º do artigo 232. 7. Pedido julgado parcialmente procedente, para declarar inconstitucionais: 1) as expressões 'e julgar', constante do inciso XX do artigo 40, e 2) 'por oito anos', constante do parágrafo único desse mesmo artigo, e o inciso II do §1º do artigo 73 da Constituição daquele Estado-membro. (ADI 1628, relator(a): EROS GRAU, Tribunal Pleno, julgado em 10/08/2006, DJ 24-11-2006 PP-00060 EMENT VOL-02257-02 PP-00311)"

Vale ressaltar que, inobstante não ser objeto desta análise, no caso de prefeitos o "impeachment" está regulado pelo DECRETO-LEI Nº 201, DE 27 DE FEVEREIRO DE 1967 (Dispõe sobre a responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores, e dá outras providências.):

Artigo 4º São infrações político-administrativas dos prefeitos municipais sujeitas ao julgamento pela Câmara dos Vereadores e sancionadas com a cassação do mandato:

Observa-se que no caso do prefeito, o DL 201/67 não traz qualquer previsão de período de inabilitação. Então, neste caso, entendo que não existem dúvidas quanto à aplicação da LC 64/90.

Portanto, esta matéria quanto aos efeitos da inelegibilidade do cargo de governador decorrente de impeachment, penso, precisa de novo debate, pois quando do julgamento da ADI 1628 ainda não vigia a LC 135/2010, que trouxe importantes alterações às regras de elegibilidade, a exemplo da alteração do prazo de inelegibilidade de três para oito anos.

Autores

  • é advogado, palestrante e professor de pós-graduação, ex-juiz eleitoral do TRE/TO, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (ABRADEP), da Academia Palmense de Letras (APL) e do Instituto de Direito Eleitoral do Tocantins (IDETO).

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