Opinião

Neutralidade jurídica: o CNJ e a epistemologia feminista

Autor

  • Fernanda Pacheco Amorim

    é advogada doutoranda em Direito na UFPR mestra em Ciências Jurídicas na Univali pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal na ABDConst autora dos livros "Respeita as Mina: inteligência artificial e violências contra a mulher" e "Pai te amo sempre" feminista inveterada e coapresentadora do podcast "Mulherão da Porra".

10 de janeiro de 2022, 9h13

O feminismo é um movimento político.

Começar um texto com essa afirmação ainda mais diante da incompreensão generalizada da etimologia da palavra "política" nos tempos atuais é perigoso [1], mas absolutamente necessário, pois é a partir dessa sentença que podemos entender que os feminismos derivam de luta social e política [2]. E é através dessas lutas travadas por mulheres, movimentos sociais, coletivos feministas, comissões voltadas às temáticas de gênero etc. que avanços são alcançados.

Conforme noticiado na ConJur [3] e no próprio site do Conselho Nacional de Justiça [4], no dia 16 de dezembro foi apresentado perante a Câmara dos Deputados, pela deputada Carmen Zanotto, o Protocolo de Julgamento com Perspectiva de Gênero [5], elaborado por grupo de trabalho do CNJ criado para esse fim.

O documento, o qual sugiro fortemente a leitura, apresenta conceitos básicos relativos às questões de gênero, bem como exemplos de situações que caracterizam preconceito de gênero em julgamentos e, ainda, indicações de condutas adotáveis por magistrados e magistradas para evitar que esse tipo de situação aconteça [6].

É essencial perceber que o "simples" reconhecimento da disparidade de tratamento em razão do gênero no Judiciário por um órgão como o CNJ já é um avanço. A elaboração e distribuição de um protocolo com diretrizes e ensinamentos sobre a temática, mais ainda. Evidente que, apesar disso, não desconsidero que é dever do Estado atuar de todas as formas possíveis para garantir e efetivar os direitos humanos, inclusive treinando seus agentes [7] a isso, inclusive, dá-se o nome de devida diligência estatal [8].

O protocolo, que é um documento com mais de 130 páginas, possui um texto bastante denso e didático, apresenta conceitos teóricos e questões práticas divididas por áreas, mas um ponto em especial chamou minha atenção. Há um alerta específico sobre a (im)parcialidade de julgamentos que se atentam para a perspectiva de gênero.

O protocolo se preocupa em esclarecer que "não é incomum a crítica de que, ao julgar com perspectiva de gênero, julgadores(as) estariam sendo parciais. Entretanto, como vimos acima, em um mundo de desigualdades estruturais, julgar de maneira abstrata ou seja, alheia à forma como essas desigualdades operam em casos concretos —, além de perpetuar assimetrias, não colabora para a aplicação de um direito emancipatório. Ou seja, a parcialidade reside justamente na desconsideração das desigualdades estruturais, e não o contrário" (p. 43).

Veja que a discussão sobre neutralidade e imparcialidade dentro do direito é antiga, especialmente no Processo Penal, em que a figura do juiz imparcial é confrontada veementemente pela doutrina crítica. Defende-se a impossibilidade de neutralidade dos julgadores dentro do campo jurídico o que demanda um reconhecimento desse fato e um cuidado extra para quando da construção das decisões judiciais a fim de garantir, ao menos, imparcialidade cognitiva , pois a construção ideológica pessoal de cada sujeito, bem como suas escolhas teóricas, afeta sua tomada de decisão [9].

O que o protocolo do CNJ faz é apontar a necessidade de assumirmos que estamos inseridos num caldo cultural patriarcal, o que afeta diretamente a possibilidade de "neutralidade" dos(as) julgadores(as). Portanto, atentar-se para a perspectiva de gênero é justamente o contrário de ser parcial; é compensar uma desigualdade estrutural que a sociedade e o Direito carrega desde há muito tempo.

No documento, fala-se que a observância da perspectiva de gênero nada mais é do que um método interpretativo-dogmático. Poderíamos falar ainda em hermenêutica feminista, ou seja, a adoção de lentes interpretativas que considerem as especificidades das mulheres (em todas as pluralidades existentes) quando da aplicação do Direito [10].

Lenio Streck, ao discorrer especificamente sobre as construções de decisões judiciais, argumenta pela necessidade de constrangimentos epistemológicos como instrumento de constrangimento do próprio sujeito, ou seja, um constrangimento epistêmico que fosse capaz de conter a subjetividade existente na tomada de decisão e nas construções teóricas dos juristas [11].

Para tanto, e aqui chegamos ao ponto central deste escrito, a construção dos saberes no campo jurídico também precisa de uma guinada. Não há como pensarmos numa hermenêutica feminista sem antes (re)pensarmos a forma de construção dos próprios saberes. Portanto, a epistemologia também precisa ser feminista.

Tendo isso em vista, e identificando a manutenção das estruturas de poder, que acontece por meio da linguagem e da forma de escrita adotada, surgiu um feminismo pós-estruturalista que buscou questionar justamente a forma de construção do saber, afirmando que o modo de escrita e de pesquisa existente se dá a partir da perspectiva masculina, patriarcal, elitista, racista etc.

Hélène Cixous, em "O riso da Medusa" [12], propõe que mulheres se inscrevam e escrevam na e a história de seu tempo, que se insiram nos textos, que desafiem as regras de escrita impostas pelos homens, ou seja, que construam novas epistemologias feministas. É importante frisar, contudo, que o pós-estruturalismo feminista sofre críticas em razão de sua elitização e inacessibilidade.

De qualquer forma, é inegável a relevância desse pensamento no impulsionamento do debate sobre uma possível construção de novas formas de pensar dentro dos feminismos como condição essencial para a existência de um feminismo acadêmico e jurídico não excludente.

Margareth Rago, ao escrever sobre a epistemologia feminista, diz:

"Portanto, o feminismo propõe uma nova relação entre teoria e prática. Delineia-se um novo agente epistêmico, não isolado do mundo, mas inserido no coração dele, não isento e imparcial, mas subjetivo e afirmando sua particularidade. Ao contrário do desligamento do cientista em relação ao seu objeto de conhecimento, o que permitiria produzir um conhecimento neutro, livre de interferências subjetivas, clama-se pelo envolvimento do sujeito com seu objeto. Uma nova ideia da produção do conhecimento: não o cientista isolado em seu gabinete, testando seu método acabado na realidade empírica, livre das emoções desviantes do contato social, mas um processo de conhecimento construído por indivíduos em interação, em diálogo crítico, contrastando seus diferentes pontos de vista, alterando suas observações, teorias e hipóteses, sem um método pronto. Reafirma-se a idéia (sic) de que o caminho se constrói caminhando e interagindo" [13].

Vemos, com isso, a indissociação entre a construção teórica feminista e a necessidade de repensar a própria estrutura do pensamento produzido. Ou seja, os feminismos demandam uma nova forma de interação com o objeto de pesquisa, ao mesmo tempo em que é através da pesquisa científica que se constrói essa interação [14].

Reforço aqui a importância da construção de saber a partir de uma epistemologia feminista e plural, rompendo absolutamente com as estruturas epistêmicas tradicionais que nos conduzem, de forma irrefreável, para supostas neutralidades que, ao fim, são excludentes.

Por isso tudo, a importância desse protocolo e da disseminação dele. O grupo de trabalho que elaborou o texto preocupou-se em construir conhecimento feminista, preocupou-se com uma hermenêutica feminista e, mais ainda, ensinou como fazer isso com dicas para realização do que poderíamos chamar de "autoconstrangimento epistêmico" sobre as questões de gênero.

Quando da Constituinte, as feministas foram extremamente atuantes, através, especialmente, do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, e responsáveis pelo que se chamou de "lobby do batom". Esse movimento foi importantíssimo para a inclusão de direitos e garantias às mulheres na nossa atual Constituição Federal [15]. Quando da elaboração desse protocolo, por atoras e atores sociais e jurídicos, visando a julgamentos que levem em conta a perspectiva de gênero, o feminismo e a epistemologia feminista foram essenciais.

Esse são dois exemplos simbólicos de como o feminismo é político. E ainda bem que é. Pois assim, mesmo que devagar, parece-me que caminhamos na direção certa.

 


[1] Aponto o perigo já que a confusão entre política e doutrinação ideológica (na concepção mais empobrecida do termo) está latente.

[2] Marcia Tiburi afirmou: Para começarmos nosso processo de compreensão sobre o feminismo, podemos defini-lo como o desejo por democracia radical voltada à luta por direitos daqueles que padecem sob injustiças que foram armadas sistematicamente pelo patriarcado. In: TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2018. p. 12.

[6] Importante destacar que o protocolo alerta para a observância da questão da interseccionalidade.

[7] Há um texto de Janaina Matida de leitura indispensável que fala sobre isso. Você pode acessar aqui: https://www.conjur.com.br/2021-nov-26/limite-penal-necessario-processo-penal-proteja-mulheres.

[8] Sobre a devida diligência estatal em relação aos direitos das mulheres é essencial a obra: MARCON, Chimelly Louise de Resenes. Já que Viver é Ser e Ser Livre: a devida diligência como standard de proteção dos direitos humanos das mulheres a uma vida sem violência. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019; escrevi, em parceria com Alexandre Morais da Rosa, sobre a devida diligência em casos de violência doméstica, você pode conferir aqui: https://www.conjur.com.br/2019-out-04/limite-penal-implica-devida-diligencia-violencia-domestica.

[9] Sobre imparcialidade e neutralidade no processo penal e no campo jurídico há muitos autores da doutrina crítica que defendem a diferenciação. O pensamento construído neste parágrafo teve como base os escritos de: LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 18. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2021; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. Poder judiciário: crises, acertos e desacertos. São Paulo: RT, 1995; BOUJIKIAN, Kenarik. Neutralidade é um mito, mas a imparcialidade do juiz é um dever. ConJur, 2020. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-jul-29/escritos-mulher-neutralidade-mito-imparcialidade-juiz-dever>. Acesso em 12 de agosto de 2021.

[11] STRECK, Lenio Luiz. O direito e o constrangimento epistemológico. Estado da Arte, 2020. Disponível em < https://estadodaarte.estadao.com.br/direito-constrangimento-epistemologico-streck/>. Acesso em 12 de agosto de 2021.

[12]CIXIOUS, Hélène. The laugh of the Medusa. Disponível em: <http://www.dwrl.utexas.edu/~davis/crs/e321/Cixous-Laugh.pdf>. Acesso em 16 de agosto de 2021.

[13] RAGO, Margareth. Epistemologia feminista, gênero e história. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 371-387.

[14] Evidente, no entanto, a impossibilidade de generalização das questões relativas às mulheres dentro dessa epistemologia feminista. Tanto é que a autocrítica feminista e o levante da concepção de um feminismo acadêmico excludente foi feita de forma notória por Judith Butler, após diversos apontamentos aos seus escritos, que reconheceu a reprodução cultural realizada ao trabalhar a questão das mulheres como se fossemos todas integrantes de um só grupo determinado, sem reconhecer as especificidades e os diversos marcadores de opressão atuantes sobre os diferentes corpos.

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    é advogada, doutoranda em Direito na UFPR, mestra em Ciências Jurídicas na Univali, pós-graduada em Direito Penal e Processo Penal na ABDConst, autora dos livros "Respeita as Mina: inteligência artificial e violências contra a mulher" e "Pai, te amo sempre", feminista inveterada e coapresentadora do podcast "Mulherão da Porra".

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