Edifício Legislativo

Em 20 anos, Código Civil promoveu integração com outras normas e segue atual

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10 de janeiro de 2022, 20h14

O Código Civil completou 20 anos de sua promulgação nesta segunda-feira (10/1). Nessas duas décadas, a norma promoveu a integração com a Constituição Federal de 1988 e a jurisprudência e estimulou a formação de novas gerações de civilistas. Ainda que tenha limitações que expressam as contradições dos diferentes períodos pelos quais sua tramitação se estendeu, a lei não precisa de grandes mudanças. É o que avaliam especialistas ouvidos pela ConJur.

Secretaria de Estado da Justiça e Defesa da Cidadania
Jurista Miguel Reale coordenou comissão que elaborou projeto do Código Civil
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O Código Civil anterior, o chamado Código Beviláqua, foi promulgado em 1916. Na década de 1930, começaram a surgir tentativas de reformulação da norma. Em 1969, o governo Costa e Silva constituiu uma comissão para atualizar o código, coordenada pelo professor da Universidade de São Paulo Miguel Reale. Também participaram do grupo de trabalho os juristas Agostinho Alvim, José Carlos Moreira Alves, Clóvis do Couto e Silva, Silvio Marcondes, Torquato Castro e Ebert Chamoun.

Seis anos depois, o anteprojeto de um novo código civil foi entregue ao governo Ernesto Geisel. O texto foi publicado no Diário Oficial e foi feita a solicitação a diversas instituições culturais e jurídicas do país para que colaborassem, encaminhando sugestões.

Com alterações, o projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em 1983. Contudo, devido à redemocratização do Brasil e à instauração da Assembleia Nacional Constituinte, a proposta foi deixada de lado.

No fim dos anos 1990, o projeto voltou a ser discutido e diversas emendas foram feitas para atualizá-lo. Após ser aprovado pela Câmara dos Deputados e pelo Senado, o novo Código Civil foi sancionado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso em 10 de janeiro de 2002.

A norma aproveitou a estrutura do código de 1916 e ampliou o uso das cláusulas gerais. Também unificou as obrigações de Direito Civil e de Direito Comercial. Além disso, incorporou mudanças feitas por outras leis, pela Constituição e pela jurisprudência, como a permissão do divórcio e o reconhecimento da união estável.

O ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin afirma, em artigo publicado na ConJur, que as regras e princípios do Código Civil demonstram sua resiliência.

"O Código Civil é obra de um pensamento estruturado, que emerge de um sistema de normas de direito privado, correspondente às aspirações de uma dada sociedade. O Direito Civil contemporâneo, nesse influxo, é reflexo de um tempo que se firma a partir da segunda metade do século XX, e mais diretamente, entre nós, a partir da Constituição de 1988, que redemocratizou o país", declara Fachin.

  O colunista da ConJur Otavio Luiz Rodrigues Junior, professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, ressalta que o Código Civil é um documento dos anos 1970, modernizado "no que era possível" no final dos anos 1990.

"Nesse sentido, ele reflete as contradições de três eras: a fase ditatorial, a constitucional de 1988 e as primeiras transformações do século XXI. Tudo isso não diminui seus grandes méritos, devidos à qualidade técnica de seus autores, mas também não elimina problemas recorrentes no âmbito de setores como família e sucessões", avalia Rodrigues Junior.

Segundo o jurista, 20 anos e um período muito curto para se avaliar códigos. A seu ver, são necessárias eventuais atualizações específicas da norma, mas nada que interfira nas estruturas desse "belo edifício legislativo".

Cláudia Franco Corrêa, professora de Direito Civil da Universidade Federal do Rio de Janeiro, afirma que o Código Civil de 2002 impulsionou diversas mudanças importantes promovidas pela jurisprudência ou por outras normas.

A docente destaca a amplitude do princípio da boa-fé como uma garantia basilar, aliado aos princípios da dignidade humana e da solidariedade social como amálgamas de todo sistema interpretativo das relações jurídicas. "O indivíduo passou a ser tratado com maior consideração, levado ao centro das relações jurídicas, e não apenas o seu patrimônio".

"Portanto, além dos passos relevantes e essenciais que demos em direção ao sistema das capacidades, do Direito Obrigacional, da teoria da empresa e tantos outros, houve um amadurecimento que nos levou a considerar com maior presteza a concepção do diálogo das fontes, considerando que o sistema civil não pode estar apartado dos outros sistemas jurídicos", opina Cláudia.

Novas gerações
Por um lado, o Código Civil de 2002 provocou um grande interesse pelo Direito Civil, estimulando cursos, atualizações e treinamentos de estudantes e profissionais da área jurídica, atraídos pela alteração legislativa. Por outro, deflagrou inevitável reflexão metodológica, por vezes intuitiva, por parte da magistratura, diz o professor de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro Gustavo Tepedino.

"Afinal, o Código Civil, quando promulgado, representaria apenas uma atualização legislativa? Em muitos casos, se constituiria em uma adequação, por parte do codificador, a soluções interpretativas anteriormente alcançadas pela jurisprudência? Além disso, temia-se que certas alterações legais pudessem representar retrocesso em relação a orientações vindas a lume, ainda sob a égide da codificação de 1916, com fundamento nos princípios constitucionais aplicados diretamente às relações privadas, ou com base na expansão interpretativa de leis especiais, como o Código de Defesa do Consumidor, que entrara em vigor em 1990".

Nesse cenário, aponta Tepedino, a comunidade jurídica percebeu que o Código Civil não deveria representar ruptura em relação a modelos hermenêuticos estabelecidos ainda durante o período de vigência do código de 1916 e que não poderia ser acolhido como a norma geral de Direito Privado.

"O Código Civil, como o vemos hoje, não se traduz na letra fria de enunciados normativos, mas se constitui no resultado de trabalho interpretativo intenso e ininterrupto, levado a cabo pela doutrina e pela jurisprudência, com base nos valores e princípios da Constituição da República de 1988, integrando-se assim ao ordenamento em sua complexidade e unidade", opina o docente.

Nos 20 anos de existência do código, houve a formação de novas gerações de civilistas, atraídos pelas transformações sociais que suscitaram "verdadeiro renascimento do Direito Civil", analisa Tepedino.

Tais transformações, conforme o professor, consistiram no surgimento de novas tecnologias; reconstrução dos modelos de família; ampliação da proteção das vítimas de danos, hiperbolizados pela expansão do potencial danoso da atividade econômica; agravamento das vulnerabilidades da pessoa humana em situações de assimetria econômica ou informacional; agigantamento da circulação de dados pessoais; novos desafios da tutela da personalidade decorrentes da maior exposição da pessoa humana e de suas demandas de autonomia existencial; e deslocamento do controle de riquezas de bens imóveis para ações de companhias e participações societárias, entre outras.

Próximos 20 anos
Diante de tantas transformações, os próximos 20 anos devem ser positivos para o Código Civil, prevê Gustavo Tepedino.

"O Código Civil constitui importante instrumento normativo para a interpretação e aplicação do Direito brasileiro. Não como processo lógico, mas axiológico, plasmado pelo texto constitucional. A codificação, compreendida corretamente pela sociedade como parte integrante de um conjunto de núcleos legislativos, teve seus dispositivos incorporados, nessas duas décadas de lida interpretativa, por valores e princípios constitucionais, que asseguram a unidade do sistema na complexidade das fontes normativas, em permanente e persistente construção da legalidade constitucional", analisa, defendendo a continuidade desse processo.

Cláudia Franco avalia que o Código Civil tem maleabilidade que permite ajustes rápidos às necessidades sociais. Conforme a professora, o maior desafio da codificação para o futuro é alcançar um equilíbrio entre avanço econômico e justiça social, entre proteger a segurança jurídica das relações patrimoniais e expandir o acesso a direitos sociais.

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