Processo Tributário

Instrumentalidade no plano recursal e a exigência de dialeticidade nos tribunais

Autor

  • Lázaro Reis Pinheiro Silva

    é assessor de ministro do Superior Tribunal de Justiça procurador do estado de Goiás em Brasília mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC-SP especialista em Direito Tributário pelo Ibet professor do curso de extensão "Processo Tributário Analítico" do Ibet e pesquisador do grupo de estudos de "Processo Tributário Analítico" do Ibet.

9 de janeiro de 2022, 8h00

Se a deflagração do exercício da jurisdição em primeiro grau encontra na petição inicial o ato provocativo capaz de transformar em fato jurídico um dado conflito de direito material [1] [2], é através da atividade (re) provocativa do exercício da jurisdição, materializada na minuta recursal, que se converte em fato jurídico a irresignação da parte, agora recorrente, constatação que nos revela a importância do adequado delineamento da causa de recorrer [3].

Composta pela decisão impugnada — produto da atividade jurisdicional em grau inferior  e pelos fundamentos jurídicos para sua invalidação ou reforma, a causa de recorrer há de ser adequadamente delineada pelo recorrente, a fim de que o tribunal a quo possa divisar precisamente o objeto do recurso, ou seja, para que possa identificar as exatas dimensões da matéria devolvida ao seu exame, pressuposto indispensável à realização da instrumentalidade processual no plano recursal.

Num primeiro momento, o cuidadoso delineamento da causa de recorrer na apelação tem grande relevância para que o tribunal local possa identificar adequadamente todas as questões que foram objeto de controvérsia na primeira instância e os fundamentos que lhes são correspondentes, tenham sido ou não apreciados pelo juízo, o que, ademais de contribuir para uma prestação jurisdicional escorreita, previne uma série de óbices à admissibilidade dos recursos excepcionais [4], a exemplo da falta de prequestionamento e da necessidade de reexame de provas.

Contudo, em que pese a decantada relevância da causa de recorrer para uma maior efetividade da tutela jurisdicional em grau recursal, é de se questionar se, por outro lado, eventuais falhas no seu delineamento pela parte apelante seriam capazes de comprometer a insurgência recursal a ponto de obstar seu exame pelo tribunal local.

A questão não é de somenos importância, considerando a inovação trazida pelo artigo 932, inciso III, do Código de Processo Civil/2015, que viabiliza ao relator no tribunal deixar de conhecer do recurso que "não tenha impugnado especificamente os fundamentos da decisão recorrida". Trata-se do conhecido atributo da dialeticidade, a exigir que as petições recursais, para além de uma irresignação genérica quanto ao teor da decisão recorrida, ou mesmo de uma mera reiteração de fundamentos já invocados perante o órgão jurisdicional de origem, promovam efetivo confronto entre as razões da insurgência e as adotadas na decisão que se busca invalidar ou reformar.

A problemática da inadmissão de recursos por ausência de dialeticidade ganha especial relevância quando se toma em consideração a atividade jurisdicional revisiva no recurso de apelação, marcado por seu amplo efeito devolutivo.

Sabe-se que o efeito devolutivo é característica ínsita a todos os recursos, afinal, por meio da insurgência materializada na minuta recursal, não se busca outra coisa senão o reexame de uma decisão judicial desfavorável pela instância superior.

Contudo, sobredito efeito revela-se em duas dimensões distintas, quais sejam, a sua extensão (horizontal), pertinente àquilo que é objeto de impugnação pelo recorrente, e sua profundidade (vertical), referente aos fundamentos (de fato e de direito) que poderão ser examinados pelo órgão ad quem para julgamento do recurso.

Na apelação, embora o tribunal local esteja jungido aos limites da impugnação do recorrente  perspectiva da extensão do efeito devolutivo , o que se materializa na conhecida máxima tantum devolutum quantum apellatum, incumbe-lhe, por outro lado, conhecer de todos os fundamentos suscitados no processo, tenham ou não sido apreciados pelo juízo de primeiro grau, desde que pertinentes ao capítulo impugnado  perspectiva da profundidade do efeito devolutivo [5]  como resulta do artigo 1.013, §1º, do Código de Processo Civil/2015.

Ora, na medida em que a irrestrita profundidade do efeito devolutivo é característica inerente ao recurso de apelação, para que se dê a admissão do apelo bastaria, em tese, que o recorrente indicasse adequadamente, em sua minuta recursal, quais capítulos da sentença são objeto de impugnação. Como consequência, eventuais deficiências no delineamento da causa de recorrer, conquanto induvidosamente aptas a prejudicar uma maior efetividade do recurso enquanto meio de tutela do direito material, somente poderão ser invocadas pelo tribunal como fundamento para inadmissão do apelo em casos extremos, quando a ausência de dialeticidade revelar-se acentuada a ponto de comprometer a própria regularidade formal do recurso, como no caso da apresentação de razões recursais completamente dissociadas no caso em julgamento.

Colocando o tema em perspectiva tributária, diante de uma ação anulatória de débito fiscal por meio da qual a parte autora tenha se voltado contra um dado lançamento com fundamento em decadência, prescrição e ilegalidades no arbitramento que deu ensejo ao crédito tributário, o recurso de apelação interposto contra a sentença de improcedência, ainda que veicule fundamentação deficiente quanto a quaisquer dos fundamentos apontados ou mesmo quanto a todos eles, mas que permita inferir induvidosamente o alcance horizontal da irresignação quanto ao teor da sentença  extensão do efeito devolutivo , demandará plena cognição pelo tribunal competente, que não poderá invocar ausência de dialeticidade para justificar a inadmissão do recurso.

Desse modo, embora seja altamente recomendável que o apelante lance mão de ampla e congruente fundamentação, capaz não apenas de renovar os fundamentos contemplados em sua pretensão inicial ou em sua contestação, mas também de estabelecer uma relação dialética com os fundamentos da sentença recorrida, para o específico fim de admissibilidade do apelo, bastará que, do conjunto da petição recursal, seja possível identificar claramente os capítulos da sentença objeto de impugnação e, assim, não esteja caracterizada irregularidade formal.

Em suma: a dialeticidade nas instâncias ordinárias  ou, mais precisamente, a falta dela , conquanto dotada de inegável relevância, não pode erigir-se em empecilho à plena realização do direito material no plano recursal.

 


[1] CONRADO, Paulo Cesar. Processo Tributário – 3ª ed. – São Paulo: Quartier Latin, 2012, p. 29-32

[2] CONRADO, Paulo Cesar. Norma Processual e Recurso: definindo o conceito de recurso a partir da noção de norma jurídico-processual. In: Revista da Associação dos Juízes Federais do Brasil, nº 71, p. 225-239, 2002.

[5] Aliás, é também em função da profundidade do efeito devolutivo no recurso de apelação que se deve tomar com reservas a disseminada compreensão de que os tribunais inferiores não estão obrigados a examinar todos as alegações invocadas pela parte quando já tiverem fundamentos suficientes para decidir. A prevalecer tal compreensão, a parte vencida no julgamento do recurso inevitavelmente enfrentará severas dificuldades para preencher o requisito do prequestionamento e acessar as instâncias extraordinárias, uma vez que fundamentos relevantes que amparam sua insurgência terão sido desprezados quando do julgamento da apelação e, com isso, consagrar-se-á ausência de emissão de juízo de valor sobre a questão e a consequente ausência de prequestionamento.

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    é procurador do Estado de Goiás em Brasília, mestre em Direito Constitucional e Processual Tributário pela PUC/SP, especialista em Direito Tributário pelo Ibet, professor do Ibet e pesquisador do grupo de estudos de Processo Tributário Analítico do Ibet.

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