Diário de Classe

A autonomia do Direito e a indeterminação democrática

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8 de janeiro de 2022, 8h00

O ano começa sem diferir muito do ciclo anterior por aqui: problemas econômicos e sanitários na ordem do dia das discussões, tensão no diálogo institucional entre os poderes da república e, claro, polarizados posicionamentos não apenas sobre política, mas também sobre o Direito. As eleições — sobretudo, presidenciais — parecem agudizar ainda mais esse cenário, em que políticas de Estado e de governo mostram-se embaralhadas como sinônimos. E, muito por isso, nessa projeção, o Direito não figuraria mais como o instrumento civilizatório que é — para dirimir os inevitáveis e também já esperados conflitos próprios da democracia —, mas para fazer prevalecer vontades e posições muito pessoalizadas. Esse é o ponto — e o problema — neste ainda incipiente 2022.

Colocada a questão nesses termos, em que o Direito figura mesmo como ferramenta para assentar ou manter o poder — e não para contê-lo, como é de se supor republicanamente —, entabular uma necessária e robusta defesa de sua autonomia beira uma espécie de dever (acadêmico) de ofício — considerado o lugar de fala, aqui, como o intersubjetivo paradigma do Estado democrático de Direito. E é o caso, claro. Mas estas linhas — que não desconhecem a importância desse cada vez mais necessário constrangimento epistemológico — caminham em um sentido diferente. Buscam, nos limites deste texto, revolver o chão linguístico dessas discussões para fazer compreender, no fio do tempo, os componentes desta intrincada engrenagem.

Sigamos, então, com essa projeção:

Embora a passagem de modelos de organização social e política, no Brasil, apresente-se invariavelmente marcada por um componente estamental — seja da colônia ao império, ou desse período à república —, a "origem desse específico problema" talvez encontre reflexos ainda mais distantes. Quero dizer, talvez menos responsiva às nossas singularidades de formação, a sanha que percebe no Direito um caminho ao exercício incontido do poder — algo como o meu Direito dentro do meu Estado — esteja justamente nas promessas não cumpridas da própria modernidade política, agudizadas, depois, na paradoxalmente saudável indeterminação desse mesmo modelo em ambientes democráticos. Essa é, digamos assim, a "tese".

Claro, não estou querendo aproximar os problemas bem palpáveis de nossa contemporaneidade democrática àqueles enfrentados pelo Estado em seu momento embrionário. Mas proponho, sim, pensá-los como uma espécie de aprofundamento daquele modelo de estatalidade primitiva, que séculos atrás passou a ocupar o lugar (político) da fragmentada forma de vida do Medievo no Ocidente. Afinal, uma espécie de finalidade — daquele e deste modelo — parece semelhante: a redução das incertezas em diversos níveis, a partir da produção de "segurança".

Encadeando essas ideias sem perder de vista tanto Hobbes quanto Locke como bases teóricas para o edifício desse mesmo Estado, é também a partir desses objetivos (de segurança) que a construção política do mundo moderno se fez, tornando o próprio Estado um ente voltado a garantir não apenas a vida, mas também a propriedade enquanto extensão do indivíduo que o integra e lhe empresta sentido. De modo mais sofisticado, claro, é muito por isso que os projetos políticos da atualidade se colocam como um certo tipo de "radicalização" do modelo clássico, a ganhar contornos mais robustos a partir do século 18, sobremodo, em função das revoluções liberais. É a partir daí que se passa, afinal, a reivindicar uma série de direitos, principalmente voltados à proteção do indivíduo, e a uma complexa gama de orientação cidadã.

Originalmente nesse sentido, Pierre Rosanvallon vai observar uma espécie de ápice também da secularização estatal, uma vez que seu surgimento se alinha ao declínio da Igreja como ponto de unidade a todo Ocidente. Grosso modo, há a substituição da providência divina pela providência estatal — completando o processo de laicização do Estado — e "transferindo para suas prerrogativas regulares os benefícios aleatórios que apenas o poder divino era suposto poder dispensar" [1].

Eis o "romance em cadeia" — para usar a famosa expressão dworkiniana — da formação do Estado na modernidade, coerentemente, dizendo algo sobre o nosso presente: se a atualidade é uma radicalizada continuidade do Estado como produto da modernidade política, também dela se espera a minimização dos riscos, a produção de segurança e a redução das incertezas. Natural, por isso, que seu prolongamento levasse à morte de Deus e ao enterro da indeterminação de sua providência, prontamente substituída pela do Estado — como vai, mais uma vez, observar o mesmo Rosanvallon. Contudo, como de resto todos sabemos, o próprio Estado, principalmente aquele orientado democraticamente, será também um espaço de indeterminação, como dirá outro pensador francês, Claude Lefort [2].

Como sair desse "impasse"?

A História tem mostrado diferentes caminhos. Um deles projeta o aniquilamento do "político", como ocorre em regimes totalitários, dissipando os diferentes níveis de indeterminação a partir da produção das solipsistas certezas do "partido único". Em outras palavras, quanto maior a intransigência diante de certas cosmovisões, implacavelmente impostas de cima para baixo, menor é o catálogo de possibilidades — e portanto, de indeterminação — em um certo grupo.

O preço desse "congelamento" é alto, claro, porque sufoca também a esperança em um futuro melhor. E é por essa razão que o Direito passa, modernamente, a ocupar um lugar de destaque nessa discussão, dirimindo uma série de desacordos e permitindo conviver com os inevitáveis graus de indeterminação que tanto a providência divina quanto o Estado – já sob ventos liberais — não foram capazes de minimizar.

Nessa segunda possibilidade, evidentemente, há um preço também: a institucionalização da vida pressupõe respeito à autonomia do próprio Direito. Em miúdos, isso significa que não há espaço para o "meu Direito dentro do meu Estado”. E é justamente aí que os contemporâneos problemas — como os desse início de 2022 — ganham antigos contornos, diante dos inevitáveis e já esperados conflitos mencionados no início desse texto: a última palavra só faz sentido ou tem um quê de divino se forem favoráveis à prevalência de determinada posição, como não cansam de mostrar polarizadas discussões político-jurídicas ("lava jato", "mensalão", "rachadinhas", vacinas etc.) e nomeações institucionais religiosamente ideologizadas (como a de André Mendonça ao STF).

O resultado? O Direito não figura mais como o instrumento civilizatório que é. Diferente disso, é mais como uma ferramenta para assentar ou manter o poder. E, convenhamos, como de resto já parece claro, é um ululante péssimo negócio — considerado o republicano paradigma em que estamos assentados. Afinal, se o "romance em cadeia" até aqui entabulado procurou assentar a humana necessidade de produção de alargados níveis de segurança ao longo do tempo, o saldo dessa confusa opção é justamente o contrário, porque "babeliza" a única linguagem pública que temos — o Direito —, tornando cada vez mais pálidas as nossas pretensões de certeza. Tiro no pé. Que em 2022, em meio à agudização dos já elevados graus de polarização, isso fique, finalmente, muito claro.


[1] ROSANVALLON, Pierre. A crise do Estado-providência. Tradução de Joel Pimentel de Ulhôa. Goiânia: UFG, 1997. p. 22.

[2] Ver, do autor, LEFORT, Claude. Pensando o político: ensaios sobre a democracia, revolução e liberdade. Tradução de Eliane Souza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

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    é doutor em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos, em estágio pós-doutoral com bolsa Capes na mesma instituição e integrante do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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