Opinião

Outra vez a suspensão de liminar para mandar prender: o STF e o 'caso Boate Kiss'

Autores

  • Benedito Cerezzo Pereira Filho

    é advogado doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) com pesquisa pós-doutoral pela Universidad Complutense de Madrid na Espanha professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) pesquisador do Grupo de Pesquisa Processo Civil Acesso à Justiça e Tutela dos Direitos (CNPq/UnB) e membro Efetivo do Instituto Brasileiro de Direito Processual e da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil (ABPC).

  • João Pedro de Souza Mello

    é doutorando e mestre em Direito pela UnB e sócio do Aguiar e Mello Advogados.

7 de janeiro de 2022, 15h14

Nunca antes o Supremo Tribunal Federal determinou a prisão de um cidadão por meio de suspensão de liminar [1]. É o que mostra a consulta à sua base de jurisprudência. De repente, acontece duas vezes em pouco mais de um ano, e justamente no âmbito do remédio heroico de proteção da liberdade.

Em outubro de 2020, no ruidoso "caso André do Rap", o ministro Marco Aurélio de Mello concedeu liminar aplicando a literalidade do artigo 316, parágrafo único, do Código de Processo Penal, e determinou a soltura de um preso provisório cuja prisão ultrapassava mais de 90 dias sem revisão. A interpretação desse artigo, àquela altura, encontrava divergências entre os ministros do STF. O Ministério Público ajuizou suspensão de liminar, a presidência deferiu, e a decisão foi referendada por um plenário pressionado pela repercussão do caso e pela fúria das multidões.

Já tratamos sobre isso em artigo para esta ConJur [2]. Naquela ocasião, procuramos mostrar como a possibilidade de combater liminares em HC por meio de SLs — em vez do ortodoxo agravo regimental — desequilibrava o jogo processual em favor da acusação, sobretudo considerando a impossibilidade de impetração de HC contra ato de ministro.

No dia 14 de dezembro, o ministro Luiz Fux repetiu o que fizera em outubro do ano passado e determinou a prisão de quatro réus por meio de uma suspensão de liminar ajuizada pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, no caso da Boate Kiss.

Aqui, como antes, a suspensão se deu em matéria que ainda está em debate na jurisprudência nacional. Há recurso extraordinário sobre a constitucionalidade da execução imediata das penas aplicadas no procedimento do júri, com repercussão geral reconhecida (Tema 1.068) e pendente de julgamento. Para obter o improvável decreto prisional, a acusação manejou o pedido de suspensão diretamente perante a presidência do STF — cujo ocupante atual, o ministro Fux, compreende a matéria de forma abertamente favorável à execução provisória da pena.

Se a absolvição do culpado é sempre preferível à condenação do inocente, é razoável que a defesa tenha, às vezes, instrumentos mais efetivos que a acusação para veicular suas teses. No entanto, o poder do Habeas Corpus, esse grande instrumento de defesa da liberdade, que tantas vezes desempenha esse papel de afastar as injustiças, parece esmaecer diante da força esmagadora do pedido de suspensão.

Mesmo em matéria cível, o incidente de suspensão é um instituto de índole autoritária, que permite a prevalência de um juízo político sobre a análise jurídica da questão. É de se notar, por exemplo, que o STJ não admite o recurso especial contra acórdão em incidente de suspensão, "uma vez que o apelo extremo visa combater argumentos que digam respeito a exame de legalidade, ao passo que o pedido de suspensão ostenta juízo político" [3].

De forma coerente com esse entendimento, o STJ não admite o incidente de suspensão em matéria penal [4]. Parece mesmo profundamente anticivilizado tratar da liberdade das pessoas, no caso a caso, segundo juízos políticos, e não de legalidade.

Da perspectiva dogmática, a decisão agora proferida na SL nº 1.504/RS passa ao largo de questões importantes, cuja superação é difícil de aceitar.

O primeiro ponto obscuro é a competência. O artigo 4º da Lei nº 8.437 de 1992 estabelece a competência para "o presidente do tribunal ao qual couber o reconhecimento do respectivo recurso". Ora, o recurso cabível contra decisão monocrática do relator é o agravo regimental para o órgão colegiado que ele integra. A competência para julgar a suspensão seria, portanto, do presidente do próprio TJ-RS.

É bem verdade que o STF já deferiu pedidos de suspensão de liminares concedidas por desembargadores de Tribunais de Justiça [5]; em nenhum desses casos, no entanto, houve debate aprofundado sobre a questão da competência — e sobre o inarredável fato de que não cabe recurso extraordinário contra decisão monocrática, porque não preenche o requisito "causa decidida em única ou última instância" estabelecido pelo artigo 102, III, da Constituição, como já reconhecido pelo próprio STF [6].

O segundo ponto obscuro é que a ação de Habeas Corpus não se amolda ao conceito de "ação movida contra o Poder Público e seus agentes", também exigido pelo artigo 4º da Lei nº 8.437 de 1992. No Processo Civil, as decisões possuem repercussão sobre a esfera jurídica dos dois polos da relação processual; no Processo Penal, apenas sobre a esfera jurídica do réu. A Fazenda Pública pode perder uma ação cível e sofrer prejuízos; o Ministério Público e o assistente de acusação, em rigor, não perdem, nem ganham — a sorte da ação penal é indiferente para suas próprias esferas jurídicas. Por isso, o Processo Penal se caracteriza por uma assimetria estrutural entre polo ativo e passivo. Daí que não se possa dizer que a ação penal é "contra o Poder Público".

Se isso vale para a ação penal, tanto mais vale para o Habeas Corpus. Nele, o acusador não é sequer parte. A ação de Habeas Corpus é apenas em favor de alguém, e pede a ordem prevista pelo artigo 5º, LXVIII, da Constituição. Não há contraditório, não há acusação. Tanto é que o Enunciado nº 208 da súmula do STF veda o recurso extraordinário interposto pelo assistente de acusação da decisão concessiva de Habeas Corpus, justamente porque se trata se procedimento exclusivo da defesa. Quando o Ministério Público recorre, segundo a jurisprudência, fá-lo na condição de custos legis. Em nosso entendimento, aliás, o Ministério Público carece até mesmo de interesse/legitimidade recursal, sendo sua atuação limitada a essa condição de custos legis, de parecerista, não podendo, assim, fazer pedido contrário ao da liberdade.

O terceiro ponto é a legitimidade ativa. O artigo 4º da Lei nº 8.437 de 1992 permite seja a suspensão requerida pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica de direito público interessada. Quando a Lei se refere a "Ministério Público", pretende, evidentemente, indicar o Ministério Público como fiscal da ordem jurídica. Já que, no caso, o Ministério Público não é pessoa interessada no Habeas Corpus [7], só pode ter ajuizado o pedido de suspensão no suposto exercício dessa função fiscalizadora

O artigo 297 do RISTF, no entanto, dá concretude e especificidade à lei: a suspensão pode ser requerida pela pessoa jurídica de direito público interessada (o que o MP não é) ou pelo procurador-geral da República. Quer dizer: ainda que se admitisse que o MP pudesse formular pedido de suspensão de liminar em HC perante o STF, apenas o PGR poderia fazê-lo — jamais o MP-RS.

O quarto ponto obscuro diz respeito à eficácia da decisão. A lei diz que o presidente do tribunal poderá "suspender a execução da liminar". Isto é: diante de uma decisão que modifica o status quo, poderá ser deferida a suspensão para impedir essa modificação. Diante, no entanto, de liminar que retire eficácia de uma outra decisão, poderia haver a suspensão da suspensão e, com isso, uma providência ativa?

A questão é velha em Direito Processual Civil [8]. Antes que a legislação processual passasse a prever a atribuição de efeito suspensivo ope iudicis aos recursos, era comum a impetração de mandado de segurança para obtê-lo. Nessa época, a impetração de mandado de segurança contra decisão denegatória de liminar para conferir "efeito ativo" ao recurso — isto é, obter a providência denegada — era controversa. A controvérsia permaneceu quando a reforma de 95 generalizou o efeito suspensivo atribuível pelo relator no agravo de instrumento. Por prever apenas a suspensão, e não a providência ativa, Eduardo Talamini chegou a criticar o instituto e propor-lhe uma interpretação "teleológica" que permitisse a maior efetividade da tutela dos direitos.

A questão só viria a arrefecer quando, com a reforma de 2001, o CPC então vigente passou a reger, em seu artigo 527, III, que o relator poderia "atribuir efeito suspensivo ao recurso (artigo 558), ou deferir, em antecipação de tutela, total ou parcialmente, a pretensão recursal".

A lei que autoriza a suspensão de liminar ainda menciona apenas a "suspensão". Mandar prender um cidadão que se encontra em liberdade é, a toda evidência, uma providência ativa. Será que a suspensão de liminar, agressiva como é, não deveria ser interpretada de forma mais restritiva que o CPC? Será que a decisão proferida na SL nº 1.504/RS trata mesmo de suspensão, na medida em que susta decisão que já era suspensiva de decisão inferior? Essas questões são suscitadas em razão do fato comentado, pois, entendemos que esse instituto não tem lugar no processo penal e muito menos na ação de Habeas Corpus.

O quinto ponto obscuro é este: a "ordem pública", como bem jurídico público privilegiado pela Lei 8.437 de 1992, se aproxima da "garantia da ordem pública" que autoriza a prisão preventiva segundo o artigo 312 do Código de Processo Penal? Se há grave lesão à ordem pública, então por que o juiz de primeiro grau não decretou a prisão preventiva — mas se valeu da execução imediata da pena?

A questão é problemática porque, analisada sob a ótica da construção jurisprudencial sobre o conceito de ordem pública, os fundamentos utilizados na suspensão de liminar não seriam idôneos para a decretação de prisão preventiva. Segundo a decisão do STF, "a decisão impugnada abala a confiança da população na credibilidade das instituições públicas, bem como o necessário senso coletivo de cumprimento da lei e de ordenação social". De acordo com a própria jurisprudência do STF, no entanto, a exigência do clamor público e da credibilidade da Justiça não justificam a prisão cautelar, não se prestam a preencher o conteúdo da expressão "ordem pública" [9].

Ademais, também segundo a jurisprudência do STF, o tribunal não pode, em julgamento de Habeas Corpus contra prisão preventiva, suprir-lhe a ausência de fundamentação [10]. Se o juiz sentenciante não viu risco à ordem pública apto à decretação da preventiva, não poderia o juiz recursal decretá-la. Mas, ao que parece, pode fazê-lo pela via transversa da suspensão de liminar — que o põe diante da análise do mesmíssimo requisito do risco à ordem pública.

Essas ponderações de ordem processual não são meros formalismos, não estão no plano dos meros erros de interpretação das normas processuais. A suspensão de liminar, essa "medida profundamente invasiva do devido processo legal judicial" (SL 743/MG, ministro presidente Joaquim Barbosa), se é que é constitucional, deve ser restritivíssima. A ampliação do seu uso preocupa. Sua introdução no jogo processual do dia a dia, consequência inevitável da flexibilização de seus pressupostos, transformá-la-á em um terrível instrumento de defesa do encarceramento — e mais poderoso do que o Habeas Corpus, que se apequena.

Talvez o maior erro nisso tudo esteja no equívoco de julgar matéria penal (processo de liberdade) com o olhar cível (processo de pança). Possivelmente, neste relato, estejamos cometendo o mesmo erro, já que pelo menos um dos coautores deste artigo — o professor Benedito Cerezzo — tem a sua pesquisa e a sua atuação profissional voltadas eminentemente às causas cíveis; e aqui estamos nos intrometendo nas dificílimas questões penais. Mas a prisão em Habeas Corpus por meio de um instituto cível nos causa muita indignação e, seguindo Clarice Lispector, "porque há o direito ao grito. Então eu grito".


[1] Há decisões concessivas de suspensão de liminar em matéria penal, mas jamais para determinar a prisão de um sujeito que estava em liberdade. Na SL 453/RJ, o ministro Cezar Peluso impediu uma transferência do sistema penitenciário federal para o estadual — com base em entendimento alterado logo na SL 492/RJ, quando o ministro certamente percebeu que estava para se tornar revisor-geral das transferências prisionais. Na SL 787/RS, o ministro Joaquim Barbosa suspendeu as liminares em uma profusão de HCs impetrados pela Defensoria Pública do Rio Grande do Sul para debater a disposição cênica do Tribunal do Júri.

[3] STJ. AgRg no AREsp 126.036/RS. rel. ministro Benedito Gonçalves. 1ª Turma. J. 4/12/2012. DJ 7/12/2012.

[4] Vide STJ. AgRg na SLS 1/BA. rel. ministro Edson Vidigal. Corte Especial. J. 25/10/2004. DJ 6/12/2004. Acórdão até hoje citado como precedente em julgados do STJ.

[5] STF. SS 4265 AgR. Rel. Min Cezar Peluzo. Tribunal Pleno. J. 09/12/2010. DJ 11/02/2011; STF. STP 78 AgR. Rel. ministro Dias Toffoli. Tribunal Pleno. J. 20/4/2020. DJ 18/5/2020.

[6] STF. ARE 868922 AgR, rel. ministro Dias Toffoli. 2ª Turma. J. 2/6/2015. DJ 9/9/2015.

[7] Mesmo para a doutrina segundo a qual há réu no processo de habeas corpus (cf. JARDIM, Afrânio Silva. O habeas corpus na perspectiva da teoria geral do processo. In: JARDIM, Afrânio Silva. COUTINHO DE AMORIM, Pierre Souto Maior. Direito processual penal: estudos, pareceres e crônicas, p. 269-274), esse polo passivo seria ocupado pela autoridade coatora, e não pelo Ministério Público — de modo que seria dela a eventual legitimidade para a propositura do pedido de suspensão de liminar. É claro, entretanto, que um juiz que ajuizasse suspensão de liminar para preservar a eficácia de decreto prisional que prolatou revelaria, no ato, sua suspeição para julgar a causa.

[8] A esse respeito, cf. TALAMINI, Eduardo. A nova disciplina do agravo e os princípios constitucionais do processo. Revista de processo. v. 80, 1995, p. 125-146.

[9] STF. HC 93315. Rel. ministro Cezar Peluso. 2ª Turma. J. 27/05/2007. DJ 27/06/2008; STF. HC 111244. Rel. ministro Ayres Britto. 2ª Turma. J. 10/04/2012. DJ 26/6/2012; STF. HC 109449. Rel. ministro Marco Aurélio. 1ª Turma. J. 28/5/2013. DJ 21/6/2013; STF. Rcl 24506. Rel. ministro Dias Toffoli. 2ª Turma. J. 26/6/2018. DJ 6/9/2018.

[10] Por exemplo, STF. HC 95024. Rel. ministra Carmen Lúcia. Primeira Turma. J. 14/10/2008. DJ 20/2/2009.

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  • Brave

    é sócio do escritório Marcelo Leal Advogados Associados em Brasília, professor dos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito da UnB, doutor em Direito pela UFPR, com período de pesquisa pós-doutoral em Direito pela Universidad Complutense, em Madrid (Espanha), e ex-membro da comissão de juristas responsável pela elaboração e acompanhamento do anteprojeto do novo CPC no Senado.

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    é advogado em Brasília e mestrando em Direito pela UnB.

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