Seguros Contemporâneos

Seguros D&O em Portugal — desafios ao modelo contratual de regulação

Autor

  • Maria Elisabete Ramos

    é doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra professora auxiliar da Faculdade de Economia de Coimbra com agregação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto investigadora do Centre for Business and Economics Research (Ceber) e vice-presidente de Aida Portugal.

6 de janeiro de 2022, 8h00

1) No princípio está o contrato de seguro
O "Study on directors' duties and liability" [1] documenta que o D&O Insurance está presente em todos os Estados-membros da União Europeia. Em Portugal, nem o Código das Sociedades Comerciais, nem o Código dos Valores Mobiliários, contemplam normas que, direta ou indiretamente, autorizem a contratação do seguro pela sociedade. Também o Código de Governo das Sociedades [2], instrumento de soft law preparado pelo Instituto Português de Corporate Governance, é silente sobre o D&O Insurance.

Na Alemanha, o §93 Abs. 2 S. 3 AktG (Lei das S.A) pressupõe que é lícita a contratação do seguro pela sociedade anônima. Também é essa a solução que vigora no Reino Unido, por força da section 233 do Companies Act de 2006. O §93 AktG exige que seja estipulada uma franquia, fixando os respectivos valores mínimos e máximos.

A experiência portuguesa desconhece condições-modelo aplicáveis ao seguro de responsabilidade civil dos administradores, elaboradas pela indústria seguradora. Na Alemanha, a Gesamtverband der Deutschen Versicherungswirtschaft (GDV), associação que congrega as empresas de seguros, publica um modelo de "Condições Gerais de Seguro para o seguro de responsabilidade civil por perdas financeiras dos conselhos de supervisão, de administração e de direção (AVB-AVG) (seguro D&O)" [3].

Vigora em Portugal um modelo contratual de regulação do D&O Insurance, devolvendo à estipulação das partes, dentro dos limites da lei, a conformação do respectivo conteúdo contratual. O que está em sintonia com o princípio da liberdade contratual que rege o contrato de seguro, assumindo, em regra, natureza supletiva as normas do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (Decreto Lei nº 72/2008, de 16 de abril, designado como RJCS). Acresce ainda que, tendencialmente, o D&O Insurance é um seguro de grandes riscos e, por ser desnecessária a tutela da sociedade-tomadora de seguro, não se lhe aplicam as restrições próprias das normas relativamente imperativas (artigo 13º, 2, do RJCS).

Nesse quadro normativo podem ser questionadas: a) a necessidade de imposição legal de franquia na cobertura side A; b) a necessidade de explicitação legal de critério de repartição do capital seguro entre os vários administradores-segurados, quando estipulada(s) cláusulas de antecipação de despesas; e c) a obrigatoriedade do seguro D&O.

2) Risco moral: abordagem contratual ou disciplina legal-imperativa?
Para as sociedades anônimas, cotadas e não cotadas, o §93, 2, 3ª frase, AktG, continua a exigir a estipulação da franquia, fixando o montante mínimo e máximo [4]. Na doutrina, opõem-se as posições a favor e contra essa solução legislativa. Também se questionou a constitucionalidade do §93.2 frase 3, do ponto de vista do tratamento desigual ou de uma violação da liberdade contratual.

As cláusulas-modelo elaboradas pela indústria alemã (AVB D&O) não aplicam a franquia às despesas de defesa, o que corresponde à opinião predominante, mas não incontestada, na doutrina alemã [5]. Argumenta-se que a finalidade preventiva da responsabilidade civil dos administradores não exige que a franquia seja devida até que a responsabilidade de um membro do conselho de administração tenha sido finalmente determinada [6].

A franquia, quando aplicada à cobertura Side A, representa o incentivo econômico dissuasor de violação dos deveres dos administradores, porquanto parte da indenização ao lesado fica a cargo do patrimônio de segurado(s).

A doutrina alemã, contudo, expressa algumas dúvidas sobre o exato efeito preventivo da franquia, porque se admite que seja segurável o risco correspondente à franquia. O que, do ponto de vista da política legislativa, parece contrariar o efeito preventivo da franquia [7]. Por fim, a doutrina alemã tende a considerar válido o contrato de seguro que, em violação do §93 AktG, não estipula a franquia para a cobertura Side A.

A ordem jurídica portuguesa não exige franquia para a cobertura Side A, seja qual for o tipo societário ou a natureza (cotada ou não cotada) da sociedade-tomadora do seguro. De fato, é duvidoso que a imposição legal de franquia no Side A tenha um efeito preventivo se, simultaneamente, for admitida a segurabilidade desse risco e a plena validade de contratos de seguro sem a cláusula de franquia. A solução portuguesa permite que o conteúdo das apólices seja ajustado a diferentes tendências do mercado e, em particular, à da não previsão de franquia.

Parece-nos que o regime da responsabilidade civil dos administradores tem, essencialmente, uma função reparadora de danos (da sociedade e de terceiros). São, essencialmente, os mecanismos jurídico-societários que devem promover o cumprimento dos deveres funcionais dos administradores, sendo especialmente relevante a prevenção de conflitos de interesses.

3) Adiantamento de despesas de defesa e repartição do capital seguro pelos segurados
Do ponto de vista comercial, o risco de despesas de defesa é o motivo determinante da contratação do D&O insurance. Atualmente, esse risco é exponenciado pelo ativismo dos "third party litigation funds" que já estão a financiar ações populares em Portugal.

Aos administradores segurados interessa o chamado adiantamento das despesas de defesa, ou seja, que o segurador realize os respectivos pagamentos em momento anterior ao do trânsito em julgado da sentença. O segurador paga as despesas de defesa à medida que os pagamentos vão sendo solicitados pelo segurado, mediante a apresentação de comprovativo. Porque esses pagamentos feitos pelo segurador têm natureza provisória e função auxiliar da cobertura da responsabilidade civil, os segurados devem devolver os montantes prestados pelo segurador, se os fatos pelos quais são condenados não estiverem cobertos pela apólice.

Não tendo sido estipulados sub-limites para o custeio das despesas de defesa, pode acontecer que o capital seguro se esgote integramente na satisfação dessas despesas e, por essa razão, caduque o contrato de seguro (artigo 110 do RJCS). Mas não se extingue a responsabilidade civil do administrador. Pode acontecer que os administradores-segurados não disponham de meios suficientes para devolver os montantes provisoriamente pagos pelo segurador. Notícias recentes mostram práticas de opacidade patrimonial adotadas por administradores, que as regras europeias e nacionais sobre o beneficiário efetivo não conseguiram inverter completamente. É, pois, conveniente estipular sub-limites para as coberturas de despesas de defesa, conjugando interesses de segurados, segurador e terceiros lesados.

Sabendo que tipicamente o D&O insurance é contratado para toda a equipa de gestores, a lei portuguesa não dispõe de norma expressa aplicável ao concurso de segurados quando o capital seguro é insuficiente para cobrir todas as despesas de defesa. No panorama internacional encontramos a regra da distribuição proporcional e a regra first come first served. O critério da distribuição proporcional vigora em Portugal no artigo 604º do Código Civil, relativo ao concurso de credores, e inspira o artigo 142º do RJCS, relativo à pluralidade de lesados. Aplicando-se o critério first come first served, a seguradora vai pagando consoante as reclamações que lhe são apresentadas. Esgotado o capital seguro, caduca o contrato de seguro (artigo 110, 1, do RJCS) e cessam os pagamentos. Ou seja, pode acontecer que o capital seguro para despesas de defesa seja consumido em reclamações apresentadas por um ou parte da equipa de administradores.

O critério proporcional, aplicável ao "concurso de credores", pode paralisar o pagamento das despesas de defesa por parte do segurador, pois essa regra não responde à pergunta essencial que é saber "quanto deve o segurador a cada um dos segurados" [8].

Perante essas dificuldades, é necessária a intervenção legislativa? Não me parece. Há, sim, toda a conveniência que esse aspeto seja regulado contratualmente, de modo que, antecipadamente, cada administrador-segurado saiba qual é o seu quinhão no capital seguro.

4) Dever de segurar, com fundamento em dever de diligência dos administradores?
Em Portugal, o D&O Insurance é um seguro facultativo, seja qual for o tipo societário, dimensão da sociedade, sua natureza cotada ou não. Nem a sociedade nem os administradores estão legalmente obrigados a contratar o D&O Insurance. Debate-se internacionalmente se o D&O Insurance deve tornar-se um seguro obrigatório. Mais especificamente, discute-se a pertinência do dever geral de segurar com base no dever geral de cuidado [9].

Não se discute que, como parte de estratégia de gestão de riscos, seja adequado que os titulares do órgão de administração sejam cobertos por um seguro de D&O. Essa decisão de contratar o seguro (justificada por razões de estratégia empresarial) serve também o interesse da sociedade em obter a satisfação do seu crédito à indenização de que são devedores os administradores. E hoje é admitido que a sociedade-tomadora do seguro é, para efeitos de reclamações contra os administradores, um terceiro-lesado.

Todavia, à luz da ordem jurídica portuguesa, não existe fundamento para retirar dos deveres legais gerais de cuidado (artigo 64º, 1, "a", do Código das Sociedades Comerciais) o dever legal de o administrador contratar o D&O Insurance. A decisão de contratar ou não contratar o seguro depende de avaliação do grau de risco e do valor dos prêmios de seguro. Pense-se, por exemplo, em sociedades startups, pequenas ou micro sociedades que poderão não ter meios econômicos para financiar o prêmio de seguro. Acresce que exigir que sejam os administradores a custear este prêmio constituirá um entrave ao recrutamento, em vez de favorecer os interesses da sociedade. Além disso, os seguradores podem não ter interesse comercial em contratar o seguro com sociedades muito jovens ou que exercem atividades consideradas especialmente danosas. Assim, contratar ou não o D&O Insurance é uma decisão discricionária, e não imposta legalmente pelos deveres de cuidado dos administradores.

Por outro lado, ainda que se admita que também a sociedade tem deveres de lealdade e de diligência para com os seus órgãos de gestão, como reconhece a doutrina alemã, de tal dever de diligência e de cuidado não pode ser extraído o dever legal de a sociedade contratar e financiar o D&O Insurance por conta dos administradores. Se os administradores (futuros segurados da cobertura side A) têm interesse em que a sociedade contrate por sua conta um seguro D&O, deve tal obrigação ser estipulada em convenção celebrada entre estes e a sociedade.

Por fim, discute-se se o D&O Insurance, especialmente no caso de sociedades cotadas, deve evoluir para um seguro cuja contratação é imposta por lei. Na Alemanha, a Comissão Governamental sobre a Governação Societária pronunciou-se contra o seguro obrigatório de responsabilidade civil dos administradores. No Reino Unido, o Relatório Higgs de 2003 [10] aponta na direção oposta.

Em si mesma, a imposição legal de contratação de seguro D&O não é suficiente para proteger os terceiros lesados, porque, inexistindo sub-limites para despesas de defesa, o capital seguro pode esgotar-se no pagamento de despesas de defesa de administradores, caducando o contrato de seguro. Além disso, o D&O Insurance obrigatório não pode ignorar que o tecido empresarial português é constituído por pequenas e médias empresas, que necessitariam de condições adequadas ao seu grau de risco e às suas limitações financeiras. A fixação geral e abstrata, por via legal, de capitais seguros pode mostrar-se excessiva para determinadas sociedades e insuficiente para outras. Por fim, a alternativa de exigir que o seguro seja financiado total ou parcialmente pelos administradores pode representar entraves ao recrutamento dos mais capazes. E não devemos ignorar que num contexto internacionalizado e de "concorrência de regulações", como é o das sociedades cotadas, a imposição nacional de D&O Insurance obrigatório pode constituir um fator de desvantagem para as sociedades de direito português.

Assim, de momento, parecem não existir razões que fundamentem a evolução para a obrigatoriedade do D&O Insurance.

5) Conclusão
O modelo contratual de regulação do contrato de seguro parece dar resposta às questões suscitadas pela franquia, pela antecipação de despesas de defesa e pela decisão de contratação do seguro. Sendo a liberdade de iniciativa privada um direito econômico consagrado constitucionalmente, parece não haver fundamentos ponderosos que justifiquem, quanto àquelas matérias, a intervenção do legislador.


[2] Disponível em https://cgov.pt/base-de-dados/codigos-de-governo (consulta em 20.12.2021).

[3] Na versão original "Allgemeine Versicherungsbedingungen für die Vermögensschaden-Haftpflichtversicherung von Aufsichtsräten, Vorständen und Geschäftsführern (AVB-AVG) (D&O-Versicherung)", conhecidas na prática como "D&O-Vers", disponíveis em https://www.gdv.de/service/suche/de/4422?query=AVB-AVG%29+%28D%26O#more.

[4] Fleischer, "AktG § 93 Sorgfaltspflicht und Verantwortlichkeit der Vorstandsmitglieder", Spindler/Stilz, Aktiengesetz, 4. Auflage 2019, Stand: 15.01.2020, Rn, 288. l.

[5] Fleischer, "AktG § 93 Sorgfaltspflicht und Verantwortlichkeit der Vorstandsmitglieder", Rn. 294.

[6] Fleischer, "AktG § 93 Sorgfaltspflicht und Verantwortlichkeit der Vorstandsmitglieder", Rn. 294.

[7] Koch, "AktG § 93 Sorgfaltspflicht und Verantwortlichkeit der Vorstandsmitglieder", Hüffer/Koch, Aktiengesetz.

15. Auflage 2021, Rn. 58-59.

[8] Margarida Lima Rego, "Adiantamento de custos de defesa nos seguros D&O", Colóquio Internacional Governação das Sociedades, Responsabilidade Civil e Proteção dos Administradores, coord. Maria João Antunes e de Alexandre de Soveral Martins, Coimbra: Instituto Jurídico, 2018, p. 88.

[9] Koch, "AktG § 93 Sorgfaltspflicht und Verantwortlichkeit der Vorstandsmitglieder", Hüffer/Koch, Aktiengesetz. 15. Auflage 2021, Rn. 58-59, Beckonline.

[10] Review of the Role and Effectiveness of Non-executive Directors, 2003, nº 14.19.

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    é doutora em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, professora auxiliar da Faculdade de Economia de Coimbra, com agregação em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade do Porto, investigadora do Centre for Business and Economics Research (Ceber) e vice-presidente de Aida Portugal.

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