Opinião

Passaporte de vacinação: questões sobre constitucionalidade (Parte 2)

Autores

  • Richard Pae Kim

    é doutor e mestre em Direito pela USP pós-doutor em políticas públicas pela Unicamp juiz de Direito do TJ-SP professor do curso de mestrado em Direito Médico da Unisa e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).

  • Georghio Alessandro Tomelin

    é doutor em Direito do Estado pela USP advogado consultor e parecerista em Direito Público e professor dos cursos de pós-graduação da ITE-Bauru e da Unisa.

6 de janeiro de 2022, 9h11

Continuação da Parte 1

5) Uma realidade de fato a enfrentar: liberdade privada que impacta nas liberdades públicas
Sob o ponto de vista prático, não há dúvida de que a exigência de apresentação de certificado ou passaporte de vacinação há de restringir a livre circulação de pessoas e, consequentemente, acabará por elevar o nível de segurança e de prevenção do coronavírus. Tanto é que diversos estados federados, conforme informação da Agência CNN [10], já optaram por exigir em eventos, por exemplo, a apresentação de "certificado de vacinação" ou a sua substituição por exames negativos de infecção. Por sua vez, o Parlamento Europeu e outros 30 países já adotaram o uso de "passaporte da vacina", "certificado verde" ou "coronapass", seja para o ingresso nesses países, ou para ter acesso a ambientes fechados [11]. O Conselho Constitucional Francês, por exemplo, pela Decisão nº 2021-824 DC, de 5 de outubro de 2021, afirmou que tais restrições são válidas exclusivamente por estarmos diante de um estado de urgência sanitária [12].

A exigência de certificado ou comprovante de vacinação para realizar qualquer atividade, inclusive a laboral, é tema que tem recebido atenção por parte de diversos países. Nos Estados Unidos, por exemplo, a U.S. Equal Employment Opportunity Commission EEOC Issues Updated Covid-19 Tecnical Assistance [13] concluiu que as leis federais de igualdade oportunidade de emprego não impedem um empregador de exigir que todos os seus funcionários que tenham de estar presentes fisicamente no local de trabalho estejam vacinados contra o coronavírus.

Sobre o tema, a nossa Suprema Corte, em decisão monocrática recentemente proferida pelo ministro Roberto Barroso, nos autos da ADPF 898 MC/DF [14], decidiu por suspender os efeitos da Portaria MTPS nº 620/2021, que proibia o empregador de exigir documentos comprobatórios de vacinação para a contratação ou manutenção da relação de emprego, pois a portaria equiparava a exigência de documentos a práticas discriminatórias em razão de sexo, origem, raça, entre outros. O ministro Barroso entendeu não haver falar em discriminação quando o que está em jogo é a saúde coletiva. Por outro lado, pela ADPF 756, em 31 de dezembro de 2021, o ministro Lewandowski suspendeu o "despacho de 29 de dezembro de 2021 do Ministério da Educação, que aprovou o Parecer 01169/2021/CONJURMEC/CGU/AGU, proibindo a exigência de vacinação contra a Covid-19 como condicionante ao retorno das atividades acadêmicas presenciais".

Em resumo: não pode haver discriminação negativa de acesso a cargos e empregos por questão sanitária, mas existe, sim, a possibilidade de se exigir comprovantes sanitários para fins de garantia de proteção da comunidade de trabalhadores, como por exemplos os professores. O passaporte vacinal para entrar e sair dos países nada mais é do que o correlato documental do mesmo fenômeno.

Se por um lado não existe vacinação à força, a exemplo do que ocorreu na revolta da vacina da varíola em 1904, as cortes de Justiça têm rechaçado medidas públicas que impeçam os corpos intermediários e as categorias profissionais públicas e privadas de se autoprotegerem. O mundo pós-Covid é um novo cenário no qual vacinados e não vacinados irão, sim, conviver, sem que os segundos imponham seu contato aos primeiros sem um mínimo de garantias sanitárias. Não existe o privilégio de ir e vir para qualquer lugar se e quando isto puder gerar riscos para a coletividade presente. O poder público não é segurador universal, mas tem o dever de fornecer os mecanismos de proteção e informação que melhor protejam a população no estado da arte para o momento presente. A exigência de passaporte vacinal é medida juridicamente válida que se contém nos limites da Constituição do Brasil.

6) Conclusões
Não há dúvida de que, qualquer que seja o resultado em termos normativos, o resultado deve levar em consideração três objetivos: realizar controle sanitário, a fim de garantir o direito à saúde da população; reduzir o tempo de vida da pandemia; e evitar que haja a necessidade de serem adotadas medidas ainda mais restritivas de direitos fundamentais, como é o caso do lockdown.

Há outros argumentos metajurídicos que o Direito precisa considerar. A decisão de uma pessoa de não se vacinar não impõe riscos somente a si mesma. Isso porque, como se sabe, algumas vacinas previnem a infecção sintomática a níveis que podem chegar a 95% dos casos [15]. Em relação aos não vacinados, essa decisão, em verdade, também gera efeitos coletivos [16] ao colocar em risco até mesmo os vacinados, que podem acabar se reinfectando [17].

Alguns poderiam, por outro lado, afirmar: a porcentagem dos vacinados de serem infectados por não vacinados é mínima e, por isso, seria desproporcional impedir os não vacinados de gozarem suas liberdades constitucionais, como o direito à liberdade de ir e vir, de exercer atividade econômica, atividade laboral e até mesmo de participar de cultos. Ocorre que se centenas de milhões de indivíduos forem rotineiramente expostos a indivíduos não vacinados, muitos — provavelmente muitos milhares de pessoas — acabarão por ser infectados e, então, uma considerável fração daqueles poderão sofrer efeitos colaterais graves que poderão levá-los à morte.

Não se olvide, ainda, que quando os não vacinados transmitem o vírus para outras pessoas, a pandemia acaba por se prolongar, aumentando até mesmo a probabilidade de que haja o desenvolvimento de novas variantes. E isso tudo ocasionando nefastas consequências econômicas, que continuam a estrangular a vida das pessoas e os cofres públicos. Daí nossa preocupação sobre como compatibilizar as liberdades públicas de locomoção e saúde de vacinados e não vacinados.

A nova portaria interministerial, que consolida e cumpre importantes decisões judiciais sobre o tema, consagra o estado da arte, mas não garante que a restrição de locomoção não possa gerar problemas econômicos adicionais que influenciem transversalmente no combate à pandemia. A vacinação obrigatória precisa ser operacionalizada, estimulada e fiscalizada como meio de ampliar a retomada das atividades econômicas, sociais e culturais, e ao mesmo tempo preservar a saúde pública e o direito fundamental à saúde e à vida de cada um dos cidadãos brasileiros.

 


[12] Dizem os comentários que integram o referido acórdão do Conselho de Estado: "Le Conseil a également relevé que ces mesures ne peuvent être prononcées et mises en oeuvre que dans le cadre de l’état d’urgence sanitaire.". Disponível em chrome-extension://efaidnbmnnnibpcajpcglclefindmkaj/viewer.html?pdfurl=https%3A%2F%2Fwww.conseil-constitutionnel.fr%2Fsites%2Fdefault%2Ffiles%2Fas%2Froot%2Fbank_mm%2Fdecisions%2F2021824dc%2F2021824dc_ccc.pdf&clen=582990&chunk=true. Acesso em 08.12.2021.

[13] Documento emitido em 28 de maio de 2021. Disponível em https://www.eeoc.gov/newsroom/eeoc-issues-updated-covid-19-technical-assistance. Acesso em 21.11.2021.

[14] DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO. DIREITO À SAÚDE. ARGUIÇÕES DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL. PANDEMIA DE Covid-19. PORTARIA MTPS Nº 620/2021. VEDAÇÃO À EXIGÊNCIA DE VACINAÇÃO. ATO INFRALEGAL. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A Portaria MTPS nº 620/2021 proíbe o empregador de exigir documentos comprobatórios de vacinação para a contratação ou manutenção da relação de emprego, equiparando a medida a práticas discriminatórias em razão de sexo, origem, raça, entre outros. No entanto, a exigência de vacinação não é equiparável às referidas práticas, uma vez que se volta à proteção da saúde e da vida dos demais empregados e do público em geral. 2. Existe consenso médico-científico quanto à importância da vacinação para reduzir o risco de contágio por Covid-19, bem como para aumentar a capacidade de resistência de pessoas que venham a ser infectadas. Por essa razão, o Supremo Tribunal Federal considerou legítima a vacinação compulsória, não por sua aplicação forçada, mas pela adoção de medidas de coerção indiretas. Nesse sentido: ARE 1.267.879, Rel. Min. Luís Roberto Barroso; ADIs 6.586 e 6.587, Rel. Min. Ricardo Lewandowski. 3. É da natureza das relações de trabalho o poder de direção do empregador e a subordinação jurídica do empregado (CF, artigo 7º c/c CLT, arts. 2º e 3º). O descumprimento, por parte do empregado, de determinação legítima do empregador configura justa causa para a rescisão do contrato de trabalho (CLT, artigo 482, h). É importante enfatizar que constitui direito dos empregados e dever do empregador a garantia de um ambiente de trabalho seguro e saudável (CF/1988, artigo 7º, XXII, e artigo 225). 4. Acrescente-se, ainda, que a extinção da relação de trabalho, mesmo sem justa causa, é um direito potestativo do empregador, desde que indenize o empregado na forma da lei (CF/88, artigo 7º, I). Do mesmo modo, a atividade empresarial sujeita-se à livre iniciativa e à liberdade de contratar, competindo ao empregador estabelecer estratégias negociais e decidir sobre os critérios de contratação mais adequados para sua empresa (CF, artigo 170). 5. Ato infralegal, como é o caso de uma portaria, não é instrumento apto a inovar na ordem jurídica, criando direitos e obrigações trabalhistas (CF, artigo 5º, II). Tampouco pode limitar o sentido e alcance de normas constitucionais. Até mesmo a lei encontra limites na restrição de princípios e direitos fundamentais. 6. Note-se, por fim, que o reconhecimento da inconstitucionalidade de dispositivos da portaria apenas restabelece o direito do empregador de rescindir o contrato de trabalho. Não significa, porém, que ele deva necessariamente fazê-lo, cabendo-lhe ponderar adequadamente as circunstâncias do caso concreto. 7. Deferimento da cautelar, para suspender os dispositivos impugnados. Fica ressalvada a situação das pessoas que têm expressa contraindicação médica à vacinação, fundada no Plano Nacional de Vacinação contra a Covid-19 ou em consenso científico, hipótese em que se deve admitir a testagem periódica.

[15] O que significa que cerca de 5% das doenças sintomáticas não são prevenidas, cf. Estudo científico denominado "Covid-19 Vaccines and Vaccination, CDC (July 27, 2021)". Disponível em: https://www.cdc.gov/coronavirus/2019-ncov/science/science-briefs/fully-vaccinated-people.html. Acesso em 20.11.2021.

[16] "Os cidadãos precisam sentir segurança no atuar da Administração Pública. Se estão em situação de emergência, é legítima a expectativa de que alguém vá agir em seu socorro com as forças de propriedade da coletividade. A emergência pode gerar atropelos e desrespeito a direitos, no afã de bem curar do interesse coletivo. Os prejudicados terão sua indenização e os infratores serão responsabilizados no caso de abuso. Tudo para que os carentes sejam socorridos rapidamente." Cf. Georghio Tomelin, em "Escassez geral nas catástrofes: cidadãos sufocados pelas prerrogativas da administração pública", na obra coletiva "As consequências da Covid-19 no Direito Brasileiro", coord. Warde e Valim, Editora ContraCorrente, 2020.

[17] Aliás, conforme estudo desenvolvido por cientistas britânicos da Universidade de Oxford, as pessoas que foram vacinadas contra o Covid-19 possuem muito menos probabilidade de espalhar o vírus, ainda que se encontrem infectadas. Vide estudo denominado "Impact of vaccination on household transmission of SARS-COV-2 in England": Disponível em https://khub.net/documents/135939561/390853656/Impact+of+vaccination+on+household+transmission+of+SARS-COV-2+in+England.pdf/35bf4bb1-6ade-d3eb-a39e-9c9b25a8122a?t=1619601878136. Acesso em 20.11.2021.

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    é doutor e mestre em Direito pela USP. Pós-doutorado em políticas públicas pela Unicamp. Juiz de Direito do TJ-SP. Professor do Curso de Mestrado em Direito Médico da Unisa. Ex-conselheiro do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) e supervisor do Fonajus (Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, 2021-2023). Editor-Chefe da revista de Direito da Saúde Comparado (Comparative Health Law Journal).

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    é doutor em Direito do Estado pela USP, advogado, consultor e parecerista em Direito Público e professor dos cursos de pós-graduação da ITE-Bauru e da Unisa.

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