Opinião

Da Boate Kiss aos temas tributários: quem guarda o guardião?

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6 de janeiro de 2022, 17h33

Os temas são diversos e de esferas do Direito que se unem na matriz constitucional, ou seja, por sua fonte direta (direitos de primeira geração, liberdades fundamentais), mas que se separam no conteúdo — na linha defendida pelo professor Aury Lopes Júnior, e aqui adotada, contrária a uma teoria geral do processo [1].

Mas o que, então, promove elos entre os assuntos neste texto? Ambos refletem julgados na última instância do Poder Judiciário, no vértice da pirâmide de nosso modelo jurisdicional que culmina nas competências atribuídas ao Supremo Tribunal Federal, como sói ocorrer em Estados democráticos de Direito se considerarmos como nucleares para tanto a exigência de Constituição rígida e de corte constitucional.

Durante a semana que antecedeu o recesso judiciário de 2021, acompanhamos os movimentos do processo que julga os acusados pelos trágicos acontecimentos da Boate Kiss. Houve a condenação dos acusados pelo Tribunal do Júri e o magistrado ordenou o recolhimento imediato dos condenados à prisão [2].

Ocorre que a defesa dos acusados manejara um Habeas Corpus junto ao Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS), que concedeu a liminar para que os acusados pudessem recorrer em liberdade [3].

O Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul (MPE-RS), então, ajuizou uma suspensão de segurança junto ao STF para cassar os efeitos da liminar concedida pelo desembargador do TJ-RS. Não iremos nos ater ao movimento do MPE-RS, por escapar ao propósito desta análise.

Queremos chamar a atenção para dois pontos: o primeiro é o salto de um procedimento que — podemos dizer — foi claramente um sucedâneo recursal, em desafio a uma decisão monocrática proferida por um desembargador membro de tribunal local, ofertado diretamente para… a Corte Constitucional; o segundo, eis que o presidente do STF (ministro Luiz Fux) conhece do pedido e acolhe no mérito a pretensão, determinando a suspensão da liminar concedida, restabelecendo a ordem de prisão imediata dos acusados [4].

A decisão causou surpresa por algumas razões [5], entre as quais destacamos: o STF, que há tempos reduz o espectro de sua competência para se amoldar às definições de corte constitucional, proclama sua competência; e por aceitar apreciar o mérito sem considerar nenhuma supressão de instância.

O MPE-RS, ao perceber que o julgamento do Habeas Corpus poderia ser julgado em favor da liberdade dos acusados, pediu ao ministro Luiz Fux que obstasse os efeitos de uma eventual concessão do Habeas Corpus pelo tribunal gaúcho. Mais uma surpresa: o ministro concedeu a suspensão de efeitos de uma "eventual decisão" concessiva de Habeas Corpus.

Ato contínuo, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça concedeu o Habeas Corpus aos acusados. Na prática, isso significa que não se tratava mais de uma liminar, uma decisão monocrática, mas uma decisão colegiada do tribunal.

Com a decisão do Habeas Corpus em mãos, o advogado dos réus foi ao juízo requerer a expedição do alvará de soltura de seus clientes, convicto de que uma decisão de concessão de Habeas Corpus importa na soltura de quem teve sua liberdade tolhida.

Ocorre que o alvará de soltura não foi expedido, porque a decisão do presidente do STF impediu a liberação dos acusados. Já se ouve dizer que foi o primeiro Habeas Corpus natimorto da história — eis que não gerou liberdade dos pacientes beneficiados.

Não podemos afirmar isso, mas causa estranheza esse desfecho, a despeito de decisão do ministro Dias Toffoli no último dia 17 ter reafirmado o vaticinado pelo ministro Fux, que "em nada inovou ao reconhecer o cabimento do pedido, que está em absoluta conformidade com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. (…) Sob todos os aspectos, a bem fundamentada decisão do Presidente do STF não evidenciou resquício de ilegalidade, de abuso de poder ou de teratologia".

Mas e o que isso tem a ver com temas tributários?

É que, já há muito, temos acompanhado decisões da cúpula do Poder Judiciário que surpreendem não somente pelos seus conteúdos, mas pela forma e principalmente pelos critérios (ou falta deles) de as alcançar e, posteriormente, para modulação temporal de seus efeitos.

O que pretendemos demonstrar nestas poucas linhas, e nossa preocupação é esta, é que não se percebe, atualmente, estabilidade e coerência nas decisões da Suprema Corte — especialmente quando tomadas em Plenário Virtual, ausente o componente deliberativo mister à democratização do processo decisório em um colegiado.

Nossa inspiração é claramente Dworkin, mas poderíamos nos arvorar de diversas teorias interpretativas para chegar ao mesmo resultado. Talvez aqui resida o grande problema: não há uma teoria seguida pelo STF ou por ministros considerados isoladamente.

A retirada da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 49/RN [6] (ADC 49, em que se reafirmou a inviabilidade de incidência de ICMS sobre meras transferências entre unidades da mesma pessoa jurídica) do julgamento virtual no último dia demonstra o quanto, em uma sessão virtual, acabamos tendo não o julgamento de um colegiado, mas até 11 julgamentos, de ministros que não conversam entre si e que podem produzir arrazoados tão distintos ao ponto de inviabilizar-se o reconhecimento sobre o que de fato ficou decidido pela corte, em quais pontos houve a necessária maioria.

Observamos, de há muito, a flutuação das filiações teóricas, circunstância que só pode desembocar em um dos maiores vilões do Direito (rectius, da própria humanidade): o casuísmo, a arbitrariedade que torna a sociedade um império de homens, não de normas.

Cada magistrado, esteja ele em juízo singular ou colegiado, fundamenta conforme aquilo que já decidiu; assim, pode adotar desde o positivismo mais exegético, primitivo, textual, até formas mais sofisticadas de neoconstitucionalismo, como as ensinadas por Robert Alexy.

O resultado será sempre o mesmo: completa falta de previsibilidade e surpresas semanais, como no caso da Kiss, na ADC 49/RN e no RE 714.139/SC [7] (em que foi apreciado e fixado o tema de Repercussão Geral nº 745 — TRG 745 [8]).

Já tratamos, em outra oportunidade, da ADC 49 [9], quando já alertávamos para os riscos que a decisão poderia trazer para os jurisdicionados e como seria mais simples se as decisões vinculantes que a precederam fossem observadas pelas mesmas cortes que as prolataram (o STF julgara, em 2020, o ARE nº 1.255.885/MS, do qual exsurgiu a TRG 1.099 sem qualquer modulação temporal: "Não incide ICMS no deslocamento de bens de um estabelecimento para outro do mesmo contribuinte localizados em estados distintos, visto não haver a transferência da titularidade ou a realização de ato de mercancia").

O mesmo pode ser dito sobre o TRG 745. A seletividade do ICMS passa longe de ser tema novo nos debates tributários constitucionais; no entanto, ao decidir aquilo que parece óbvio a qualquer transeunte — energia elétrica e telecomunicações são essenciais na atualidade —, o STF inovou ao definir a partir de quando a decisão surtirá efeitos: apenas em 2024 [10]!

E mais: inovou no critério de corte para proteção de demandas em curso ao dispor que a data de divisão entre as ações atingidas e as não atingidas pela modulação não será para aquelas iniciadas antes da finalização (novembro de 2021), mas aquelas deflagradas anteriormente ao começo do julgamento do mérito (fevereiro de 2021) [11].

Notadamente, a Constituição perde sua força na medida em que qualquer argumento no sentido de que as unidades federativas (UFs) que tributam o ICMS irão perder arrecadação de tal maneira que suas finanças serão comprometidas, padece diante da obrigação constitucionalmente imposta a que essas mesmas UFs promovam a previsão deste risco fiscal e apresentem medidas mitigatórias ou de enfrentamento do risco.

Tome-se como exemplo o estado do Mato Grosso, que, logo após o fim do julgamento de mérito pelo STF, em novembro, adotou medidas normativas tendentes a reduzir substancialmente as alíquotas de ICMS sobre produtos e serviços essenciais — energia elétrica, gás industrial, combustíveis e serviços de telecomunicação [12].

Em outras palavras, ou o risco não existe (como materializa o exemplo de Mato Grosso) e os estados se equivocam ao justificar o pedido de modulação de efeitos; ou o risco existe e alguém precisa explicar como os riscos fiscais estão sendo mensurados, bem como seus efeitos no orçamento público.

Obviamente não pretendemos abstrair a situação financeira calamitosa das UFs e a realidade orçamentária, principalmente após os impactos da pandemia da Covid-19, mas tal qual nos preocupa a forma de decidir da Suprema Corte, o orçamento público e a falta de integração das normas tributárias com orçamento nos assombram.

A projeção de realização de receita com sua efetiva realização não são objeto de debates técnicos aprofundados, e a frustração de receita e suas causas raramente são abordadas quando estados em situação financeira problemática são instados a "constitucionalizarem" sua tributação, como foi o resultado do TRG 745.

Os temas se reúnem e se imbricam para apontar um estado de coisas preocupante: não sabemos como agir até que o resultado da decisão seja proclamado. Mesmo após a proclamação do resultado pelo STF, estamos sujeitos a alteração da coisa julgada, como a possibilidade de ajuizamento de ação rescisória pelo Fisco, também por nós já abordado.

Processo penal e processo tributário, afirmamos no início, são matérias distintas, mas convergem à matriz constitucional e lidam com espectros importantes da existência do Estado (imposição da força e financiamento). É por isso, aliás, que são os primeiros e os que mais sofrem com o casuísmo e oportunismo judiciais.

Não à toa, a Magna Carta de 1215 [13] destacava a imposição de freios ao monarca em ambos os temas; não acidentalmente, a elevada carga tributária somada a penas cruéis foram os móveis para revoluções por todo o mundo, como a americana e a francesa, além da Inconfidência Mineira em solo pátrio; não por acaso, tributaristas e penalistas vêm alertando para a escalada de decisões casuísticas e consequente aumento da insegurança jurídica causadas pelos tribunais brasileiros, conduta esta que viola, como se vê, direitos consagrados há muito tempo e escritos a sangue nas páginas da história da humanidade.

A segurança jurídica, vale dizer, se materializa em previsibilidade; ela é fundamental para que se construam as bases suficientemente sólidas para que capital e investimentos retornem ao Brasil, e possamos como nação refletir a seriedade elementar a qualquer nação institucional e em efetivo desenvolvimento.

Isso só será possível quando a sociedade e os três poderes do Estado trabalharem em coordenação e harmonia, em constante debate prévio às decisões, com fortalecimento do componente democrático sempre que possível.

Só será uma realidade brasileira a institucionalização do Direito e dos preceitos constitucionais quando não houver mais uma última palavra ou uma suprema autoridade incorrigível, isto é, quando todos formos ao mesmo tempo guardiões — e protegidos — uns dos/pelos outros, como ensina o professor Peter Häberle [14].


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