Opinião

Decisão coordenada é instrumento de simplificação do agir administrativo

Autor

  • Marcelo Monteiro Bonelli Borges

    é procurador federal e mestrando em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) com especialização em Direito Tributário pela UFRN e especialização em Direito Administrativo pela Universidade Cândido Mendes.

6 de janeiro de 2022, 15h31

O ano de 2021 trouxe mais um instituto jurídico para o Direito Administrativo brasileiro. Trata-se da decisão coordenada, inserida na Lei de Processo Administrativo Federal por meio da Lei nº 14.210/2021. Deve-se ao então senador Antonio Anastasia a iniciativa do projeto de lei que positivou em lei federal mais um instrumento auxiliar em tomadas de decisão pela Administração Pública.

Nos últimos tempos, muitas normas foram editadas para permitir que o administrador tenha melhores condições e efetivo suporte legal para se adaptar a necessidades que se apresentem nas repartições públicas. Nesse sentido, destacam-se: a reforma promovida na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Lindb) pela Lei nº 13.655/2018, com a positivação de critérios consequencialistas em tomadas de decisão administrativa; medidas de racionalização, simplificação e desburocratização em procedimentos administrativos, nos termos da Lei nº 13.726/2018; e a análise do impacto regulatório na Lei nº 13.848/2019.

O contexto normativo construído pelos diplomas legais mencionados promove um melhor ambiente para decisões e refinamento nas escolhas públicas, especialmente em casos inusuais e difíceis. Para cenários em que a carga decisória de um processo administrativo é distribuída por vários agentes, a complexificação tende a aumentar ainda mais em função das diferentes visões dos envolvidos e pelos ruídos que podem prejudicar a comunicação entre os participantes.

O processo administrativo consiste no conjunto ordenado de trâmites e exigências legais posto pelo ordenamento jurídico para disciplinar o sequenciar de fatos e atos administrativos que envolvem a tomada de decisões pela Administração Pública [1]. As regras que disciplinam o processo administrativo estabelecem a sucessão organizada de eventos e atos acessórios anteriores à conclusão administrativa.

No conceito de processo administrativo é possível identificar a sua nota característica de separação organizada de eventos no tempo e espaço. Firmar essa ideia é fundamental para compreender o caráter excepcional da decisão coordenada. Imaginar que a concentração de atos administrativos fosse a regra tornaria a Administração Pública um grande e confuso protocolo congestionado.

Por outro lado, o sequenciar de atos e fatos havidos na Administração Pública não pode perder de vista a necessidade de referibilidade efetiva com a realidade e a resolução de problemas que reclamam um agir estatal. Cenários de circularidade não propositiva em processos administrativos — autos sendo devolvidos, consultas protocolares e vazias, indicativas de ausência de compreensão do problema posto — certamente se distanciam dos objetivos que se espera da Administração. Do mesmo modo, em situações urgentes, a demora para conclusão do processo pode colocar em risco direitos e bens jurídicos relevantes. Para essas e outras situações, o legislador brasileiro optou pela decisão coordenada.

O recém acrescido artigo 49-A da Lei do Processo Administrativo Federal apresenta a decisão coordenada como um procedimento de simplificação de tomadas de decisão, em que se faculta a concentração de todos os envolvidos em um dado processo para que seja possível avaliar possibilidades de composições, superações de entraves e esclarecimentos necessários a um encaminhamento específico.

Da definição legal do instituto, destaca-se a simplificação do agir administrativo como elemento normativo para a compreensão do futuro da Administração Pública. A simplificação, enquanto diretriz, foi positivada no Direito Administrativo brasileiro com a Lei nº 13.726/2018, com o objetivo de conferir maior racionalidade, redução de custos e estabelecer uma rotina de revisão e criticidade a formalidades e exigências identificadas na prática de atos da Administração Pública. Trata-se de valor que orienta os gestores a atuarem em prol da diminuição da complexidade em ambientes de decisão, valorizando os contextos, evitando abstrações e desenvolvendo claras regras ao funcionamento das repartições públicas [2]. A decisão coordenada, em si, já representa, em algum nível, a concretização do mandamento de simplificação, uma vez que desponta como instrumento vocacionado a reduzir cenários de complexidade e de superação de determinados problemas de entendimento administrativo e de diálogos intersetoriais

Complementando a definição, o artigo 49-A, em seus incisos I e II, estabelece quatro requisitos para a instauração do procedimento de decisão coordenada. O primeiro deles é o envolvimento de três ou mais centros de decisão (setores, órgãos ou entidades). Observa-se a pouco usual menção a "setores" como participante do processo decisório. A positivação, no entanto, reforça a vocação da decisão coordenada de pontualmente afastar as finas e algumas vezes intransponíveis divisórias das repartições públicas, superando entraves em problemas complexos e pluritemáticos.

Exemplificando, tem-se as políticas de atenção a idosos, parcela da população que apresenta demandas setoriais plurais, como saúde, assistência social, alimentação e educação, especialmente para os que estão em contexto de vulnerabilidade. Estimular departamentos de uma mesma Administração Pública a reverem posições que não mais se adequem com alterações havidas em outros setores poderá garantir uma visão holística do problema, de modo a eleger prioridades em uma determinada política pública plurissetorial e pluritemática, considerando a escassez de recursos e de servidores [3].

O segundo requisito é a relevância da matéria. Conceito aberto, a caracterização de um assunto como relevante impõe um ônus argumentativo ao administrador para densificar nos casos concretos a importância de se instaurar o procedimento de decisão coordenada.

Quanto ao terceiro requisito, o legislador aponta que a discordância a ensejar a coordenação será a que impuser ônus à célere conclusão do processo administrativo. Em relação a esse ponto, já se percebem notas críticas à decisão coordenada, no sentido de que, ao contrário do que promete, ela impõe uma maior morosidade aos processos administrativos. O fundamento básico da observação está no apontamento de que, diante de uma discordância específica entre centros de decisão, a instauração da decisão coordenada representará uma nova etapa processual, resultando em lentidão administrativa [4].

A par da compreensível e relevante preocupação, duas observações devem ser feitas. A primeira é no sentido de que a instauração de um procedimento incidental pode, sim, representar um ganho de celeridade. Basta imaginar um cenário de circularidade processual, com autos sendo devolvidos para atender questionamentos mal feitos e respondidos de forma lacônica. A decisão coordenada e sua vocação para a consensualidade e para o estreitamente de agentes públicos distanciados pode interromper esse ciclo vicioso. A segunda reflexão demanda a compreensão da comum multiplicidade de processos administrativos com o mesmo objeto, como as demandas envolvendo direitos dos servidores públicos. O alinhamento de perspectivas e expectativas dentro da Administração em um determinado processo paradigmático tem o condão de ser replicado em outros semelhantes. A celeridade ganha, nesse caso, é sistêmica, escalável e efetivamente atenderá ao interesse público globalmente considerado.

Finalmente, o requisito da compatibilidade da decisão coordenada com a natureza do objeto e com a legislação pertinente figura como relevante exigência, verdadeiro alerta do legislador para evitar que a inovação seja utilizada em processos decisórios com o escopo de forçar um determinado encaminhamento administrativo, enviesadamente escolhido. Basta imaginar uma situação em que uma das autoridades envolvidas seja dotada de influência ou prestígio, e identifique, na concentração de atos, uma possibilidade de pressão ou até mesmo assédio para que órgãos discordantes alinhem suas manifestações ao que lhe interessa.

Há de se rememorar que a separação dos atos e o natural distanciamento de gabinete dos envolvidos, regra do processo administrativo, não existe desmotivadamente, representando claro prestígio à organização administrativa, a procedimentalização do agir administrativo e ao princípio da impessoalidade. Não se revela factível ou eficiente que todas as fases, expedientes e envolvidos nos processos administrativos sejam concentrados num único evento processual, resumindo a Administração Pública a uma fábrica de brainstormings. A decisão coordenada deve ser compreendida como medida excepcional a demandar uma fundamentada razão para ser aplicada, qual seja, a identificação de um entrave superável entre os agentes decisores para consecução de um fim público específico e legalmente alinhável.

Concluindo o artigo 49-A, o parágrafo sexto apresenta situações em que a decisão coordenada não poderá ser utilizada, como nos processos licitatórios, os relativos a poder sancionatório e nos que estejam envolvidas autoridades de poderes distintos. Em relação à redução legal do âmbito de aplicação da decisão coordenada, destacam-se críticas fundadas, especialmente na identificação de experiências atuais de procedimentos de concertação e cooperação relativos aos temas afastados legalmente [5].

Dando sequência, identifica-se a exigência estabelecida no artigo 49-E para que os órgãos envolvidos no processo decisório apresentem documentos com os pontos que ensejaram a instauração do procedimento de decisão coordenada. Essa medida tem o claro intuito de fazer com que o ambiente criado com a decisão coordenada seja de amplo, profundo e efetivo debate dentro da Administração Pública, para se alcançar um consenso ou delinear claramente as divergências.

Em complemento, o artigo 49-F estabelece que as situações de dissenso entre os envolvidos deverão ser postas de forma clara e fundamentada. As resistências apresentadas pelos órgãos envolvidos não podem resumir-se a negativas genéricas, exigindo do discordante a consignação de razoáveis fundamentos para divergir do alinhamento pensado para a decisão coordenada.

A limitação à apresentação de matérias estranhas ao objeto da convocação, contida no parágrafo único do artigo 49-F, tem o objetivo de garantir que o procedimento seja propositivo, resolvendo de modo simplificado problemas passíveis de composição. Um encaminhamento conclusivo, um desfecho administrativo específico, é melhor que um cenário de indefinição. Logo, a limitação aos temas pertinentes ao debate tem uma razão de ser.

O último artigo relativo à decisão coordenada é o 49-G, que trata do principal documento produzido pela decisão coordenada, qual seja a ata. Na ata serão consolidadas as contribuições de cada um dos órgãos ou entidades que participaram do procedimento, com as conciliações alcançadas e as discordâncias não superadas.

Caso se atinja a plena concordância entre os convocados ao procedimento, o processo se encerra, aglutinando todas as fases abreviadas. O consenso entre os envolvidos no procedimento resultará na edição de um ato unitário, de autoria e conteúdo complexo, consistindo numa decisão positiva coletiva, apta a abarcar temas gerais (a promover a uniformização de todos os envolvidos) e temas especiais (relativos a competência de cada instância decisória) estampados na ata-decisão [6]. Em caso de parcial concordância ou nenhum avanço nas fases de discussões, a ata contemplará o que se concordou e cada uma das decisões contrárias, com seus respectivos fundamentos.

Do que foi exposto, conclui-se que o objetivo da decisão coordenada é permitir a efetiva participação de todos os envolvidos no processo de tomada de decisão, concentrando-se as diversas fases em uma, de modo a não apenas acelerar o procedimento, mas alcançar unidade nos encaminhamentos administrativos antecedentes à decisão final. Instala-se um ambiente de experimentação administrativa e incrementam-se os níveis de diálogo e legitimidade democrática, possibilitando a diminuição dos conflitos entre órgãos decisores e os custos decorrentes da circularidade processual. O fim maior é favorecer soluções consensuais dentro da Administração Pública, o que é excelente.

Como todo instituto novo, é difícil avaliar se e quando a decisão coordenada entrará efetivamente na rotina dos responsáveis pela instauração, instrução e conclusão dos processos administrativos. As profundas alterações operadas pela reforma legislativa que atualizou a Lindb em 2018 ainda estão sendo assimiladas e resistidas pelos administradores e juristas (isso quando não permanecem desconhecidas). De todo modo, trata-se de mais uma tentativa do legislador em conferir novas formas de abordagem a velhos problemas.

 

Referências bibliográficas
MODESTO, Paulo. Decisão coordenada: experimentação administrativa processual. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em:  https://www.conjur.com.br/2021-dez-02/interesse-publico-decisao-coordenada-experimentacao-administrativa-processual. Acesso em 17 de dezembro de 2021

MOREIRA, Egon Bockmann. Breves notas sobre a "decisão coordenada". Jota. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/breves-notas-sobre-a-decisao-coordenada-04102021. Acesso em: 17 dezembro de 2021

MOTTA. Fabrício. Decisão coordenada: a boa novidade. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-21/interesse-publico-decisao-coordenada-boa-novidade. Acesso em 17 de dezembro de 2021

SAAD, Amauri. As decisões coordenadas na Lei nº 14.201/2021. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-14/amauri-saad-decisoes-coordenadas-lei-142102021. Acesso em 17 de dezembro de 2021

SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2014

SUNSTEIN, Cass R. Simpler: the future of government. Nova York: Simon & Schuster, 2013


[1] SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2 ed. São Paulo: Malheiros, 2014. p. 299.

[2] SUNSTEIN, Cass R. Simpler: the future of government. Nova York: Simon & Schuster, 2013. p. 12

[3] MOTTA. Fabrício. Decisão coordenada: a boa novidade. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-21/interesse-publico-decisao-coordenada-boa-novidade. Acesso em 17 de dezembro de 2021

[4]SAAD, Amauri. As decisões coordenadas na Lei nº 14.201/2021. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-14/amauri-saad-decisoes-coordenadas-lei-142102021. Acesso em 17 de dezembro de 2021.

[5] MODESTO, Decisão coordenada: experimentação administrativa processual. Consultor Jurídico, 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-02/interesse-publico-decisao-coordenada-experimentacao-administrativa-processual. Acesso em 17 de dezembro de 2021.

[6] MOREIRA, Egon Bockmann. Breves notas sobre a "decisão coordenada". Jota. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/breves-notas-sobre-a-decisao-coordenada-04102021. Acesso em: 17 dezembro de 2021

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