Defesa da Concorrência

Retrospectiva de 2021, perspectivas e tendências para 2022 no Cade

Autor

  • Mauricio Oscar Bandeira Maia

    é advogado parecerista na área de Direito Concorrencial e auditor do Tribunal de Contas da União. Foi Conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica entre 2017 e 2021. É Mestre em Direito pelo Instituto de Direito Público (IDP).

5 de janeiro de 2022, 16h26

A sabedoria milenar chinesa nos ensina que "se queres conhecer o passado, examina o presente que é o resultado; se queres conhecer o futuro, examina o presente que é a causa", frase célebre atribuída a Confúcio. Uma boa análise do presente, portanto, requer um olhar para o passado, assim como para se fazer um prognóstico do futuro, é necessário voltar nossos olhos para o presente.

Spacca
Os anos de 2020 e 2021 trouxeram enormes desafios para todos, diante do cenário de pandemia causado pela Covid-19, forçando empresas e instituições públicas a se reinventarem, a ajustarem rapidamente suas práticas às novas necessidades sanitárias e de distanciamento social, moldando novos modos de trabalhar e de perseguir e conquistar seus objetivos. O mundo todo sofreu um grande abalo.

Nesse novo contexto, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica respondeu prontamente à nova realidade, mudando paradigmas de gestão e instituindo o home office em tempo recorde, alterando-se a percepção anterior de que o trabalho remoto era um privilégio ao servidor para, ao invés, vê-lo como uma necessidade da administração, devendo propiciar as condições operacionais e técnicas para que tanto.

E isso tudo aconteceu imediatamente após o início da pandemia, e de forma bem satisfatória e eficiente, resultando no reconhecimento do Cade como instituição na vanguarda do serviço público.

No campo concorrencial propriamente dito, a autoridade de defesa da concorrência também deu sinais claros de que estava em condições de enfrentar a crise pandêmica, ao dar pronta resposta à sociedade logo em maio de 2020, quando aprovou acordo prevendo a formação do "Movimento Nós", entre empresas concorrentes, e autorizou a atuação conjunta com o propósito de empreender ações de recuperação de atividades de pequenos varejistas atuantes na distribuição de produtos comercializados pelos signatários do acordo.

Tal medida, para além de demonstrar a celeridade, responsividade e responsabilidade do Cade para com a economia nacional e com o mercado, bem assim o seu alinhamento a boas práticas internacionais, se fez também acompanhada de alertas acerca da transitoriedade dessa autorização e do fato de não se tratar de uma imunidade antitruste, de modo que eventuais ações consideradas como infrações à ordem econômica continuariam sendo objeto da persecução administrativa do Conselho, que não esmoreceria em sua missão de fiscalizar a economia contra possíveis abusos de posição dominantes e outras condutas anticompetitivas.

Esse cenário de pandemia e de intensa adaptação do Cade, contudo, não pode ser dissociado de um outro, relativo à composição do Conselho. Com efeito, o marco inicial desse distanciamento social no início de 2020 coincidiu também com o ingresso, então recente, de quatro novos conselheiros no Tribunal Administrativo do Cade em outubro e novembro de 2019, alteração essa tão substancial que, por si só, já seria motivo de incertezas e inseguranças no mercado e na comunidade antitruste. Ocorre que o distanciamento acabou por repercutir posteriormente na dinâmica relacional entre os membros, com o acirramento de divergências no campo técnico e, por vezes, com extrapolações para o campo pessoal.

Em vista disso, projetos importantes, a exemplo da edição do Guia de Dosimetria de Multas, então em vias de ser votado e publicado pelo Conselho ainda em 2019, ficaram parados, por falta de consenso interno sobre a conveniência de sua continuidade.

Veja-se que algo semelhante ocorreu no passado recente também do Federal Trade Commission dos Estados Unidos, em que Conselheiros apontados pelo Partido Democrático apresentaram posições contrárias à aprovação do Guia de Atos de Concentração Vertical e foram publicamente contra a posição do ente em relação a atos de concentração aprovados pela maioria.

É certo que a divergência técnica é algo salutar e esperado, pois formações e valores distintos tendem a gerar análises e conclusões também diversas, sendo essa pluralidade de concepções e de compreensões uma das grandes forças de um colegiado. Construir uma visão majoritária e resultante de experiências variadas costuma enriquecer a atuação de um órgão plural, além de trazer maior solidez a suas posições, após serem elas definidas pela maioria.

Portanto, esse cenário de cizânia não é exclusividade do Brasil e de nossa autarquia concorrencial. Porém, é importante que as divergências se restrinjam à esfera técnica e, portanto, não adentrem ao campo da vida pessoal do julgador, pois esse tipo de ataque acaba por minar os pilares de seriedade, tecnicidade e profissionalismo que ajudaram a forjar as fundações do Cade. Demais disso, é preciso evitar mudanças radicais nos rumos da política antitruste, especialmente se consideramos que a Autarquia tem uma avaliação positiva de seu trabalho no cenário internacional.

Vimos sobretudo um 2021 com movimentos pouco ortodoxos por parte de alguns conselheiros, com a cobrança de atuações da presidência por meio de instrumentos impróprios, com pressões em plenário para interferir na organização da pauta e com tentativas de atrair para o colegiado decisões oriundas do presidente, em um jogo de forças sem qualquer benefício para o órgão e, pior, sob uma falsa premissa de que o colegiado pode tudo, esquecendo-se que há competências legais privativas e exclusivas do presidente, e portanto monocráticas, sem a necessidade de referendo ou de homologação pelo pleno. Para além disso, também é preciso ter em mente que os conselheiros não têm competência para intervir em processos não distribuídos, sendo inadequada a situação de um membro do tribunal atravessar despachos ou ofícios em processos nem sequer em trâmite naquela instância.

E nessa toada, já me antecipando na análise prognóstica, me parece que lidar de uma forma ordeira e firme com esse acirramento de ânimos e de divergências certamente será um dos grandes desafios a ser enfrentado pela nova composição que se formará para o ano de 2022, sob a competente presidência do doutor Alexandre Cordeiro.

Espera-se que com a renovação do Conselho com dois novos nomes a serem indicados e/ou confirmados, assim como com a definição das vagas para a Superintendência-Geral e a Procade, esse jogo de forças se estabilize e a autarquia consiga retomar o rumo firme e estável de tantas outras composições passadas, pautando suas decisões de forma técnica e impessoal, sem deixar que rusgas entre seus membros afetem a qualidade de suas ações e as diretrizes basilares da política concorrencial.

No tocante a sua atuação, em 2019 o Cade teve 442 atos de concentração notificados, refletindo transações da ordem de R$ 1,3 trilhão [1]. Em 2020, primeiro ano da pandemia, o número de notificações cresceu para 471, muito embora com um visível decréscimo no valor total das operações notificadas, para R$ 501,7 bilhões transacionados [2]. Já em 2021, embora esses números ainda não estejam divulgados, estima-se 575 notificações e um montante de R$ 1,7 trilhão.

Tais números são expressivos e denotam que a autarquia vem conseguindo dar vazão à crescente demanda ocorrida nos atos de concentração, em um ambiente macroeconômico propício a aquisições e fusões, panorama esse que deve se repetir para 2022.

De outro turno, sob o aspecto meritório de suas análises, conquanto o Conselho não tenha rejeitado mais operações em relação ao passado recente, mantendo-se na casa de seis rejeições por ano em 2021 (esse número foi de cinco em 2018, oito em 2019 e sete em 2020), o que se tem visto é a ocorrência de mais rejeições em razão de descumprimentos de acordos em controle de concentração (ACC), como aconteceu no caso Videolar/Innova [3] e mais recentemente na reprovação da carteira a ser desinvestida no caso Hapvida/Plamed [4], situação essa bastante incomum anteriormente. Desse modo, imagina-se que este Conselho deva recrudescer seu juízo de cumprimento de cláusulas acordadas, recaindo sobre a Procuradoria Federal do Cade a incumbência de realizar monitoramento cada vez mais minucioso e abrangente, de modo a subsidiar as análises subsequentes.

Outrossim, pode-se prever que o Cade terá um olhar mais restritivo em relação a alguns mercados, conforme atos já analisados nos últimos anos e alertas emitidos em plenário por diversos conselheiros, em especial nos seguintes: Hospitais e planos de saúde, caracterizado muitas vezes por aquisições pequenas, fora do radar da autoridade concorrencial, mas que por sua proliferação nos últimos anos tem chamado atenção do Conselho; vigilância e transporte de valores, área que o Plenário já manifestou sua menor tolerância a novas aquisições por parte dos 3 grandes players; farmacêutico, pois há uma percepção da importância desse setor para a economia e de seus impactos para o consumidor, de modo que deve haver uma vigilância atenta nesse segmento; e, por fim, o de telecomunicações, especialmente marcado pela venda em leilão judicial dos ativos de telefonia móvel do Grupo Oi para as empresas Telefônica Brasil (Vivo), Claro e TIM, operação já examinada pela SG e com parecer de aprovação após remédios, mas que deve vir a ser analisada minudentemente pelo tribunal.

No tocante ao controle de condutas, vê-se que o Conselho atual tem apreciado menos processos de conduta, com redução expressiva no montante das contribuições auferidas pela via dos Termos de Cessação de Conduta (TCCs) e uma variação muito significativa nas multas aplicadas entre 2019, 2020 e 2021. Esses números podem ser visualizados comparativamente com os anos de 2019 (28 processos de conduta apreciados, R$ 792,5 milhões em multas aplicadas e R$ 167,5 milhões em contribuições pactuadas em TCCs), 2020 (17 processos julgados, R$ 137,5 milhões em multas e R$ 140,9 milhões em contribuições pecuniárias em TCCs) e 2021 (25 processos, R$ 1.3 bilhão de multas e R$ 58,8 milhões em contribuições pecuniárias).

A queda vertiginosa na arrecadação pela via dos acordos (TCCs), cumulada com o aumento também expressivo nas multas aplicadas, se tomados os anos de 2019 e 2021, denota uma tendência desse Conselho em ser menos propenso a soluções negociadas, tão exitosas no Cade nos últimos anos, e, ao mesmo tempo, de pesar a mão nas sanções aplicadas, valendo-se neste último ano de 2021 de multas baseadas em vantagem auferida, cuja manutenção na esfera judicial ainda é uma grande incógnita, e, portanto, de eficácia duvidosa no futuro.

Ainda sobre as condutas, há algumas questões jurisprudenciais mal resolvidas no âmbito da Autarquia, o que tem gerado na comunidade antitruste um sentimento de insegurança jurídica e de falta de previsibilidade, de afastamento da jurisprudência até então consolidada e até mesmo de incertezas quanto à continuidade da política de acordos, como refletido acima no valor arrecadado via TCCs.

Uma questão diz respeito à impossibilidade de aplicação de multa a "não administradores", tese suscitada em 2020 para um problema absolutamente inexistente. E digo inexistente porque além de a lei ser clara sobre o tema (vide artigo 37, II, da Lei nº 12.529/2011), essa questão nunca foi sequer objeto de contestação administrativa ou mesmo judicial por parte dos Representados e de seus advogados, de modo que a tese foi construída meramente como um exercício teórico de interpretação, muito embora com potenciais prejuízos à detecção de carteis.

A tese levantada também introduziu a figura da teoria da aparência para possibilitar a punição dessas pessoas em determinadas hipóteses, ou seja, quando aparentassem estar agindo como administradores, poderiam ser punidos, e quando não, estariam livres da jurisdição do Conselho. Essa conformação, caso prevaleça, trará mais subjetivismo à atuação da Autarquia, descolando-se de uma jurisprudência pretérita sólida de punir todo aquele que tenha participado do cartel, independentemente de ser administrador ou não, para se ter que perquirir da aparência de se agir como administrador (sem quaisquer critérios para tanto até o presente momento).

Outro ponto polêmico e indefinido é o da vantagem auferida, já tratado em artigo pretérito.

Passando à atuação da Superintendência-Geral, acredito que ela deva dar continuidade aos esforços de investigações de condutas unilaterais, sem prejuízo de sua tradicional apuração de carteis, com foco nos seguintes setores: de tecnologia, avaliando condutas exclusionárias praticadas pelas Big Techs; portuário, recentemente palco de condenações no Conselho e também de Acordo celebrado com a Antaq e com os Operadores Portuários e os Terminais Retroalfandegados; recursos humanos, ante a abertura da primeira investigação sobre condutas anticompetitivas no mercado de trabalho, devendo tal tema entrar no radar da Autarquia doravante; farmacêuticos, setor considerado sensível em todo o mundo e que no Brasil não tem sido alvo, até o momento, de investigações mais contundentes da Autoridade, mas que no mês de novembro de 2021 foi instaurado um processo investigativo na área; licitações públicas, tendo a SG aberto recentemente dois processos para apurar carteis em licitações ocorridas para o fornecimento de materiais, equipamentos e serviços para substituição e ampliação do cabeamento estruturado da Rede Lógica Local (LAN) dos edifícios do Superior Tribunal de Justiça e o para o fornecimento de serviços de transporte escolar de alunos do ensino fundamental e médio da rede pública de ensino do Estado de São Paulo, além de ter deflagrado operação conjunta com a Polícia Federal, com o apoio do Ministério Público Federal, no mercado de coleta, transporte, tratamento e destinação de resíduos em sua maioria hospitalares.

Esse, em breve sobrevoo, o cenário resumido do passado recente e também que vislumbro para 2022, ano que promete ser bastante desafiador para todos os membros e colaboradores do Cade e, também, para a comunidade antitruste, que procura na consolidação da nova composição um ambiente estável e mais previsível para todos os agentes econômicos, ao menos na parte que toca à autoridade concorrencial.

 


[2] Anuário do Cade de 2020, disponível em: https://indd.adobe.com/view/f30f80e3-23b2-4370-9314-41a50b625073

[3] Embora a decisão inicial tenha sido revertida posteriormente em sede de Embargos de Declaração, tal circunstância não modifica a percepção de que a Autarquia tende a ser mais rígida na análise do cumprimento das exigências pactuadas em ACCs, pois a reversão da rejeição veio acompanhada de novo ACC. Vide processo 08700.009924/2013-19.

[4] Vide processo 08700.001846/2020-33, no qual o Tribunal, por maioria, não homologou o despacho da presidência, para, ato contínuo, declarar descumprido integralmente o ACC e reprovar a operação, vencidos o presidente Alexandre Cordeiro e o conselheiro Luiz Hoffmann.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!