Opinião

Sobre vetos novo Marco Legal de Ferrovias

Autor

  • Amauri Saad

    é doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP. Master of Laws pela University of Toronto. Advogado e parecerista.

5 de janeiro de 2022, 17h04

O novo Marco Regulatório do Setor Ferroviário, introduzido pela Lei nº 14.273/2021 (resultante da conversão da Medida Provisória nº 1.065/2021), tem sido, com toda justiça, bem recebido. Entre os seus méritos, está a adoção da figura da autorização para a outorga de ferrovias, um modelo mais flexível e aberto, que permite à iniciativa privada propor ao poder público a construção e operação de ferrovias em áreas de seu interesse, com liberdade tarifária e assunção de praticamente todos os riscos do projeto, em um regime que, na prática, é equivalente ao das atividades econômicas privadas. O grande interesse que o modelo gerou na iniciativa privada mostra o acerto da sua adoção e sinaliza que vultosos investimentos privados deverão ser realizados, em médio e longo prazos, no modal ferroviário.

A escolha entre um modelo concessional tradicional e um modelo competitivo, próximo do que se verifica na iniciativa privada, rege-se por um princípio de liberdade de formas, conforme pude apontar em um trabalho específico [1], e por isso admite inclusive o recurso à atipicidade, com o uso de modelos híbridos e diferentes dos tradicionais. As competências administrativas (e, nessa linha, as competências relacionadas aos serviços públicos) constituem, como também defendo em obra anterior, esta escrita com Sérgio Ferraz [2], um problema a ser resolvido pelo administrador público: cabe a este último, num juízo de eficiência, fazer uso dos instrumentos jurídicos disponíveis que considere mais adequados para resolvê-lo. Portanto, do ponto de vista da escolha do modelo, nenhum problema se coloca. O ponto que merece reflexão é outro: como compatibilizar modelos que obedecem a lógicas diferentes quando se produzirem, na realidade fática, os inevitáveis atritos e tensões entre um e outro?

Um desses pontos de contato inevitáveis consiste nos efeitos que o modelo de autorização trará para as concessões ferroviárias em vigor. Atualmente, existem cerca de 30 mil quilômetros de ferrovias federais concedidas, a enorme maioria à iniciativa privada [3]. Os contratos de concessão em vigor de modo geral impõem às concessionárias o que é usual na técnica concessória: obrigações de investimento (muitas vezes acrescidas do pagamento de outorga), controle tarifário (pelo menos quanto ao teto), dever de prestação do serviço adequado, limitações para o exercício da exceptio non adimpleti contractus pela parte privada, entre outros aspectos. De outro lado, conferem-lhes o direito à manutenção do equilíbrio econômico-financeiro. Os (altos) ônus de uma concessão comum de serviço público só se justificam se houver essa garantia (que de resto conta com proteção constitucional [4]).

Dois parágrafos do artigo 64 da Lei nº 14.273/2021 — dispositivo que disciplina a conversão consensual (na dicção da lei, "adaptação") de concessões em autorizações — tratavam do tema do equilíbrio econômico-financeiro das atuais concessões e foram vetados. O primeiro é o §11, que estabelecia que, se não optassem pela conversão em autorização, as concessionárias de ferrovias teriam "direito à recomposição do equilíbrio econômico-financeiro quando provado desequilíbrio decorrente de outorga de autorizações para a prestação de serviços de transporte dentro da sua área de influência". O segundo é o §12, que previa as formas de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro (redução do valor da outorga, aumento do teto tarifário, supressão da obrigação de investimentos e a ampliação do prazo contratual).

Na mensagem de veto, foram deduzidos os argumentos que determinaram a exclusão de tais dispositivos. Um primeiro argumento é de que tais dispositivos contrariariam o interesse público. A uma, porque dariam a entender que só teria direito ao reequilíbrio econômico-financeiro a concessionária que requeresse a conversão da sua concessão em autorização. A duas, porque criariam um "direito aparentemente automático e inequívoco ao concessionário que não estava previsto, o que implicaria a alocação de risco fiscal para a União ao criar a possibilidade desta arcar com eventual despesa referente ao reequilíbrio, caso não ocorra a adaptação do contrato de concessão para autorização, uma vez que o concessionário ao não requerer a adaptação, manteria as obrigações financeiras perante a União, em virtude do disposto no inciso II do §5º do artigo 64, quando da migração do contrato". Assim, os dispositivos poderiam "gerar interpretações que causariam prejuízos ao erário, a depender das cláusulas já pactuadas entre Estado e concessionários, além de que os contratos de concessões em vigor já trazem as possibilidades de reequilíbrio possíveis".

Outro argumento é o de que se estaria a criar uma "área de influência" para as atuais concessões, que "seria um tipo de restrição geográfica de atuação e, como tal, é uma prática eivada de efeitos anticompetitivos, uma vez que impediria que outros concorrentes atuassem nesta localidade". De acordo com a mensagem de veto, a "Lei nº 12.529, de 30 de novembro de 2011, tipifica no inciso III do § 3º do artigo 36 que toda prática que limita ou impede o acesso de novas empresas ao mercado é uma conduta anticompetitiva". Daí porque não se poderia "falar em área de influência, sob pena de a nova legislação contradizer o comando da livre iniciativa e o princípio da livre concorrência insculpidos no artigo 170 da Constituição".

Tais justificativas, renovadas as vênias, não nos parecem corretas e, pior, não dão conta do real problema que representa a introdução de um modelo de autorização em um setor que adota um modelo de concessão comum.

Em primeiro lugar, os dispositivos vetados (em especial o §11 do artigo 64) não estabelecem qualquer direito automático do concessionário. A própria redação do §11 estabelece que o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro só restará configurado se e quando "provado desequilíbrio decorrente de outorga de autorizações para a prestação de serviços de transporte dentro da sua área de influência". Se é dependente de prova, o direito não é automático. E mais, também não é novo: vai depender dos termos do próprio contrato de concessão. Um exemplo basta: o impacto da autorização no contrato de concessão pode ser mínimo ou inexistente, havendo simultaneamente um desequilíbrio em desfavor da Administração: os créditos e débitos recíprocos haverão de ser devidamente compensados antes que se saiba se há efetivamente um desequilíbrio a ser recomposto em favor da concessionária. Dito de outro modo: o fundamento do direito ao reequilíbrio será sempre o contrato de concessão, e não a lei. A matriz de riscos contratual e as condições efetivas da proposta é que balizarão a análise, e os dispositivos vetados não alterariam, se tivessem sido mantidos, essa realidade. Trata-se, portanto, de um falso problema o que se pretende enfrentar com esse tipo de argumento.

Ainda, a menção do §12 às formas de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro não representa, em si, nenhuma inovação sobre os contratos em vigor. Infelizmente é ainda muito comum a confusão entre o conteúdo de uma obrigação e as formas do seu adimplemento. A previsão, por instrumentos normativos posteriores, de novas formas de adimplemento de obrigações existentes, em nada afeta o seu conteúdo e a sua conformação jurídica. O quantum debeatur não se confunde com a forma solucionis, e é exclusivamente desta última que trata o dispositivo em questão. Já tratei, em trabalho específico [5], desse problema, que é particularmente grave em matéria de serviços públicos. O veto ao §12 do artigo 64 não indisponibiliza as formas de recomposição do equilíbrio econômico-financeiro por ele previstas, nem impossibilita que novas modalidades sejam empregadas pelas partes. Tais aspectos dependem do consenso das partes e das circunstâncias fáticas de cada caso. O Direito, por força dos princípios da moralidade e da eficiência (artigo 37, caput, da Constituição), impõe que o Estado cumpra com as suas obrigações e, exceto as modalidades de pagamento expressa e inequivocamente vedadas, todas as demais estão na mesa.

O último argumento da mensagem de veto é o que parece ser o mais importante: o §11 do artigo 64 representaria o reconhecimento de uma "área de influência" em favor das atuais concessionárias e isso seria uma violação à livre concorrência. Será?

Começando por este último aspecto: a livre concorrência é um princípio que se aplica às chamadas atividades econômicas em sentido estrito, ou seja, áreas que são especialmente reservadas à iniciativa privada e em que o Estado só pode entrar em hipóteses especialíssimas e para as quais o planejamento estatal é meramente indicativo (ex vi, respectivamente, dos artigos 173 e 174 da Constituição). Os serviços ferroviários não pertencem a essa categoria de atividades; como se sabe, são serviços públicos de titularidade do Estado. Isso não quer dizer que não possam ser prestados pela iniciativa privada em um regime muito próximo ou mesmo idêntico ao privado; o debate que havia em torno do assunto já foi superado. O problema é outro: como a titularidade do serviço impõe ao Estado decidir o seu modelo de exploração, a livre iniciativa não vige, ali, desde sempre, originariamente, mas por empréstimo: entra em cena como consequência de uma escolha estatal. Por isso é que ela não pode ser predicada do ambiente das concessões comuns, mas apenas do das autorizações. É, pois, uma contradição em termos pretender vigente a livre iniciativa em uma concessão comum de serviços públicos, nos exatos termos em que vigeria em um nicho estritamente privado ou mesmo no regime de autorizações. O reconhecimento de "áreas de influência" nas concessões ferroviárias não é, nem sequer remotamente, uma questão de defesa da concorrência.

A questão verdadeiramente relevante, portanto, das "áreas de influência", é saber se elas realmente existem nas atuais concessões e como apurar o impacto das autorizações. Do ângulo das concessionárias, não há dúvida de que a decisão de apresentar uma proposta em uma licitação se ampara, entre outros fatores, em que parcela daquela atividade será reservada à concessão. Somente assim poderá estimar se os investimentos exigidos no projeto serão devidamente remunerados pela demanda, atual ou potencial, dos serviços. É comum, em outros modais, que haja, ao longo da operação, frustração dessas expectativas: um sistema de ônibus em uma região metropolitana pode sofrer a interferência ulterior de outros modais (metrô, por exemplo) ou mesmo de outras operadoras do mesmo modal (quando um sistema urbano, por exemplo, sofre a interferência de um sistema metropolitano e vice-versa), mas nesses casos dois cuidados se colocam: na fase de planejamento, o objeto é definido com um mínimo de precisão (por áreas geográficas, "bacias" etc. — ou tipo de atividade: linhas "alimentadoras" versus "troncais"), e, em paralelo, o concedente assume, explícita ou implicitamente, totalmente ou em parte, o risco de demanda [6]. Sem esses cuidados, um regime instituído pelo Estado canibalizaria outro, igualmente instituído pelo Estado, o que tornaria todas as garantias do regime concessório perfeitamente inúteis.

Se não houvesse "áreas de influência" das atuais concessões ferroviárias, não haveria a necessidade da "adaptação" dos contratos de concessão em contratos de autorização, uma preocupação evidente da lei (artigo 64). É desejável, do ponto de vista regulatório, a uniformidade de regimes, e, portanto, que as concessões se transformem em autorizações, e possa enfim ser introduzida a competição entre prestadores. Entretanto, isso se faz com incentivos e não "na marra": os vetos aos §§11 e 12 do artigo 64, além da proibição, no §5º, II, do mesmo artigo, da revisão dos compromissos financeiros (investimentos e outorga) assumidos perante o poder público não contribuem para esse processo. O que seria desejável discutir são os critérios para uma indenização justa às concessionárias que forem impactadas pelo novo modelo.


[1] Ver o meu: Liberdade das formas nas contratações públicas. Porto Alegre: Sergio Fabris, 2019.

[2] Cf. Autorização de serviço público. São Paulo: Malheiros, 2018.

[4] Cf. o art. 37, XXI.

[5] Cf. o meu "Subsídios em mobilidade urbana: direito dos delegatários e dever do poder concedente (considerações a partir do art. 9º da Lei Federal nº 12.587, de 03.01.2012)", Revista de Direito Público da Economia — RDPE, Belo Horizonte, ano 19, nº 74, abr./jun. 2021, pp. 9-40.

[6] Cf.: "Concessão de serviço público de transporte coletivo de passageiros por ônibus. Risco de demanda (parecer)", Revista de Contratos Públicos — RCP, Belo Horizonte, ano 7, nº 14, set. 2018/fev. 2019, pp. 209-237.

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